Ruas
Imagine a existência como uma estrada de terra. Eu deixo o resto da criação do cenário para a sua imaginação, seja ele repleto de árvores ou de chuva, a existência é uma rua de terra seguindo em uma única direção. Essa linha é idealizada, absolutamente tudo que você faz ou fala tem o potencial de te jogar em uma bifurcação contrária ao seu caminho, indo para os lados ou para trás. Você é uma pessoa no final dessa estrada, olhando seu caminho e observando cada uma das ramificações que fizeram você chegar até aqui, você errou repetidamente em diversos momentos e se perdeu completamente daquela estrada reta e perfeita, talvez sem nenhuma possibilidade de retorno. Quando você olha para a frente, sua vida é repleta de infinitas decisões, e você é incapaz de saber se cada passo que você dá é o mais correto. Cada palavra poderia ter sido dita de outra forma, cada gesto, cada respiração, toda essa miríade de coisas pequenas se juntam na sua frente, seja liberando seu caminho ou esmagando-o.
Como saber, é a questão. Como saber se eu estou fazendo a coisa certa, ou pelo menos, a mais certa possível em cada situação? Como viver com a ansiedade de saber que cada uma das coisas mais pequenas poderia alterar tudo para sempre, e ainda assim, tudo está fora do meu controle. Se eu pudesse apenas parar o tempo antes de agir, ver o futuro se desenrolar na minha frente como um rolo de pergaminho e escolher entre as possibilidades qual a minha favorita. Se eu pudesse viver a vida sempre sabendo onde pisar, seguindo o trajeto perfeito dessa rua, eu seria feliz. Mas o futuro consegue ser mais complexo do que a minha mente é capaz de compreender. As ruas se afundam e se tornam verdadeiras catacumbas e túmulos de deuses antigos, pirâmides e labirintos repletos de perigos e decisões fatais. Eu tento me guiar cego sem poder ver o que acontece depois, e a sensação é a mais terrível.
Debaixo da fonte os humanos parecem ignorar essa promessa silenciosa jurada por todo ser vivo, seus rostos preocupados pareciam se importar somente com o momento na frente deles, sem contemplações exageradas sobre o passado ou o futuro. Será que é por isso que eles foram escolhidos? Será que a superioridade da sua raça não se deve ao seu intelecto superior e sim à sua inferioridade? Talvez eles sejam sábios em sua ignorância, e menos atingidos por questionamentos fúteis sobre sua vida patética. Talvez esse seja o jeito correto de viver. Os caminhos dessa rua não se dividem com uma facilidade tão grande, essa é a verdade. É preciso um grande evento para que uma bifurcação do tamanho de um universo seja formada, e quando o mundo se formou, nós nos dividimos. Os universos tinham todos as mesmas chances, as mesmas características, até os mesmos habitantes no começo; as repetidas decisões tomadas por eles nos dividiram totalmente, nos tornando irreconhecíveis. O mundo dos humanos, seja ele fraco e seus habitantes estúpidos, é o mundo perfeito. O mundo que tomou todas as decisões corretas desde o início dos tempos, seus habitantes ignorantes de sua própria existência em um universo geminado foram coroados acima de todas as outras formas vivas.
Eu sempre questionei esses termos, sempre questionei que pudessem se tratar de elementos capazes de grandes feitos, mas ainda assim eu me sentia fraco em sua presença. Fazer algo, acreditando que o mundo só poderia ter acontecido de uma única forma, viver uma vida sem questionamentos sobre o resto. Era terrivelmente egoísta e eu tinha inveja dessa liberdade. Passei minha existência inteira cuidando dos problemas entre as dimensões, consertando suas falhas como um pedreiro fiel que conserta uma parede sempre a se quebrar, os outros mundos sempre foram algo do meu interesse, mas essas criaturas eram capazes de feitos muito maiores do que suas diminutas vidas, todos eles sem planejamento ou treino, como se estivessem atirando no escuro. A confiança era insuportável, seu ar de superioridade e uma crença em algo que estava além do meu entendimento. Eu me senti inferior nesse momento, e eu não podia suportar.
Eu precisava que eles ouvissem a voz da razão, sacrifícios seriam necessários para reconstruir as paredes, o mundo deles já havia se misturado muito com o nosso e a devastação era imensa. Quantos dos meus já foram perdidos nessa luta, enquanto eles continuavam em um estado de pura ignorância. O meu mundo jazia em um estado deformado, as alterações feitas seriam capazes de congelar um humano até os ossos, e ainda assim eles não vacilaram quando pulei na frente deles e me sentei. Mesmo a imagem de um inocente gato doméstico parecia ter os colocado em um estado de alerta, e eles encaravam minhas unhas como se eu fosse os oferecer um brutal ataque.
- Eu devo explicações para vocês. - Eu disse.
- Você sabe quem nós somos. - Eros disse. - Mas nós não sabemos quem você é.
- Eu sei quem você é. - Marcos falou agitado. - Você não vai conseguir me enganar.
- Eu não pretendo enganar ninguém. - Respondi. - Eu entendo que apesar de possuir um intelecto reduzido, enganar vocês só me traria problemas a longo prazo.
- Pode começar explicando onde estamos. - Nyx exigiu.
- E onde está Cere. - Mica terminou. - Uma forma de sair daqui também seria bem vinda.
- Sua amiga é uma peça muito importante no jogo. - Eu encarei Mica. - Ela não será machucada, mas também não posso retorna-la tão cedo.
- E qual é o jogo? - Eros retrucou.
- Vocês fazem muitas perguntas. - Eu grunhi. - Nós estamos na minha capital, a cidade principal do meu mundo, ou ela era, antes de ser devastada pela fenda entre as dimensões. Seres menores destruíram a terra e meu povo teve que se esconder.
- Seres menores? - Mica perguntou. - Eles pareciam bem grandes.
- Seres sem consciência. - Respondi. - Não muito diferentes de você e seus amigos. O meu trabalho é consertar a fenda, e vocês são a razão pela qual ela está aberta.
- Mas como? - Nyx se aproximou. - Como somos responsáveis por algo que nem sabíamos que existia?
- A sua existência é um erro. - Continuei. - Vocês são criaturas mestiças, seu sangue não pertence á nenhum lugar, onde vocês pisam a realidade fica mais fina. Mas não é incorrigível, me foi solicitado que eu resolva o problema com o menor número de casualidades possível, então por mais que eu queira, nenhum de vocês vai morrer pelas minhas mãos.
- Pelas suas mãos? - Eros segurou Nyx. - E de outras formas?
- As regras são claras. - Eu me levantei. - Dois de vocês retornam, dois de vocês seguem em frente.
- Nós somos cinco. - Mica tremeu.
- Um de vocês é o sacrifício. - Falei.
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