Polidez
Eu queria ser menos, pelo menos um pouco menos, de vez em quando. De que me adiantava ser assim? Qualquer coisa me deixava á flor da pele, eu era puro nervo, eu repetia, puro nervo. Eu queria alguma proteção, qualquer coisa que me fizesse sentir menos, mesmo que por alguns momentos, uma anestesia, um curativo. As pessoas gostavam disso em mim. Nyx, você sempre percebe tudo, não dá pra esconder nada de você. Mas será que eles pensam que eu gosto disso? Ver a hostilidade, as brigas, toda a dor do mundo. Pessoa atrás de pessoa se corroendo em violência. Eu queria não enxergar.
Eu era uma fênix. E existem muitas coisas boas em ser uma fênix, a imortalidade, a força para resolver qualquer coisa, o fogo interior que brilha e aquece. Mas eu morro. Volta e meia eu morro, minhas penas caem e minha pele carboniza, eu sinto o fogo me consumir, me destruir, me sufocar. Não é tão bonito quando eu estou queimando, quando eu sou uma confusão de fumaça e gritos no meio da noite. E depois eu renasço, nua, exposta, confusa, e começo tudo do zero. Eu acordo de manhã uma pessoa completa, mas no final do dia eu sou apenas uma sombra, me refazendo e me construindo em cima de algo que eu não entendo, um instinto primordial, algo que me promete um futuro bom e calmo. Eu não precisava sentir tanto. Eu poderia acordar de manhã e ser a mesma pessoa do começo ao fim do dia, sem mudanças, sem sofrimento. Mas eu precisava mudar, precisava sofrer, precisava ser mais forte que todos, e ao mesmo tempo mais fraca. Você é só nervo.
Eu preciso de pontas, ser uma pedra bruta, eu preciso de alguma proteção, qualquer coisa. Não aguento mais ser uma pedra polida, indefesa, que alguém joga no rio e observa enquanto pula. Eu só espero que tenha algum motivo, que eu tenha algum propósito, que minha existência tão frágil seja boa pra alguém, eu penso enquanto subo as escadas, talvez eu seja somente isso, uma fênix brilhante para aquecer os outros e morrer no meu próprio fogo.
Eu encontrei a porta que passei tanto tempo procurando, e para a minha surpresa era uma porta normal de madeira com uma maçaneta de cerâmica. Mas como entrar? Como ir até alguém depois de tanto tempo e oferecer ajuda? Existem tão poucas coisas que eu era capaz de fazer, eu era tão pequena, cada vez menor e diminuindo com o passar do tempo. Minhas mãos tremiam enquanto batia na madeira, mas não parecia que ninguém estava ouvindo, gritei seu nome desesperadamente e senti meu corpo se tornar forte, rígido. Era como se algo dentro de mim estivesse novamente acordando e se desprendendo, virando as placas da minha pele em placas de pedra, girando em volta dos ossos como uma armadura.
A porta se abriu e eu não pude acreditar no que estava na minha frente, seu cabelo castanho, seus grandes olhos caídos e seu corpo pequeno dentro da roupa larga. Mica ainda era o mesmo após todos esses anos, algo em seus olhos me dizia, gritava, que ia ficar tudo bem agora que estávamos juntos. Eu o apertei com força e senti sua pele gelada se esquentando contra a minha. Suas lágrimas me encharcaram e seu corpo tremia, ele era um bloco de gelo se derretendo em cima de mim, e eu era a responsável por tirar sua alma do abismo.
- Eu te procurei por tanto tempo. - Eu disse. - Achei que você tivesse ...
- Eu estou me escondendo fazem anos. - Mica respondeu entre soluços. - Se eles me encontrarem vão dizer que eu enlouqueci.
- Você não enlouqueceu, eu sei que não. - Eu apertei sua mão com força. - Nós não enlouquecemos.
- Você também viu, não é? - Ele me encarou.
Eu vi. Eu vi a silhueta se movimentar lentamente por entre as pessoas no incêndio, encarando a cena com calma e andando na direção contrária como se procurando por algo ou alguém. Muitos acreditaram ser um pai preocupado em busca de seu filho, mas a figura nunca saiu. Eu seria capaz de reconhecer seus rosto, seus olhos, sua expressão em qualquer lugar do mundo.
- Eu pretendia continuar escondido. - Ele procurou algo no apartamento. - Mas fazem algumas semanas que eu recebi uma carta com informações sobre o dia, e resolvi sair.
- Você se deixou ser descoberto pela polícia? - Perguntei. - Isso é brilhante Mica.
- Não exatamente. - Ele suspirou. - Eu não tinha nenhuma garantia de que você iria vir atrás de mim.
- Claro que você tinha. - Eu me estiquei. - Eu nunca te abandonaria. Eu te encontrei não encontrei? Agora nós podemos resolver isso juntos.
Seus pequenos dedos estavam repletos de curativos, como se suas mãos sempre sofressem pequenos cortes. Rapidamente ele me entregou uma pequena carta, que certamente fora lida e relida diversas vezes pelas dobras do papel. Era um endereço, não muito longe, de algo que parecia ser uma loja de coisas usadas, por algum motivo, a letra no papel era estranhamente parecida com a minha letra. Mica pegou suas coisas e saímos os dois para a rua, pisando com cuidado pelo asfalto como duas pessoas de outra realidade tentando se camuflar.
Eu não sabia o que Mica tinha, ou como tinha acontecido, mas eu sabia que ele tinha um problema semelhante ao meu, e ao ver seu rosto se contorcer quando os carros passavam, eu comecei a entender. As linhas embaixo de seu rosto pareciam muito fundas, e eu me perguntei qual foi a última vez que ele teve paz, qual a última vez que ele pode relaxar e explicar para alguém o que estava acontecendo. Era uma existência solitária.
Conforme andávamos em direção ao endereço no papel, senti algo me puxar, de uma forma estranha para algum lugar, como um ruído me chamando, me convidando. Mica também parecia estar ouvindo, as suas feições repentinamente relaxaram e seus olhos se abriram para encarar a mesma direção que eu procurava instintivamente. E logo onde eu menos esperava, Eros em pé ao lado de um terrível acidente de carro, metal e chamas se consumindo.
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