O Homem loiro
Eu me lembro a primeira vez que eu ouvi. A professora estava na frente da sala, dobrando pedaços de cartolina colorida, e em cada uma das mesas com quatro cadeiras, tinha uma delas. A nossa era vermelha, com pontas arredondadas e duas pernas brilhantes. A tesoura estava sendo passada cuidadosamente de mão em mão, cortando diversos pedaços de cartolina em corações e flores. Mas quando ela chegou perto de mim, eu ouvi a sua súplica, um som baixo e agudo, mas as palavras nunca eram claras o suficiente, sempre se esquivando e escorrendo da minha mente, como se a qualquer momento fossem formar uma palavra, uma frase e na minha frente, se desfaziam e se apagavam da minha memória. Enquanto olhava a tesoura, ela era todo o meu mundo, me chamando para ela, mas tão logo ela sumia da minha vista, o mundo retornava a seu estado anterior.
Esse momento marcou a minha vida de uma forma que eu jamais esperava, o exato momento em que o metal tocou minha pele, eu senti, segurando a tesoura entre os dedos, eu decifrei os hieróglifos mentais que se projetavam em minha mente, e descobri o seu propósito, o meu propósito. Foi como se o grito agudo tivesse se tornado uma bela voz, que ressoava em meus ouvidos implorando por ações, pedindo resultados, coisas que não faziam sentido para uma criança, mas que na minha cabeça se tornaram leis fixas que mexeram com toda a minha existência. E de repente, um fogo começou a entrar pela porta e queimar as paredes. Eu me lembro das chamas, que subiram pelos cabos e escureceram as paredes, eu me lembro de ser carregado para fora no meio da fumaça, e eu me lembro que quando arrancaram a tesoura das minhas mãos pequenas, eu me senti incompleto e vazio.
Depois desse dia, tive que aprender a viver uma vida longe dos barulhos, longe dos gritos que se precipitavam contra mim. Eu descobri que a madeira era silenciosa e calma, enquanto alguns metais quase não faziam barulho nenhum. Moedas de cobre, por exemplo, cantavam apenas pequenos sussurros quando eu segurava elas com os dedos, o asfalto poderia ser evitado com uma sola de borracha, e bicicletas, apesar de incômodas, eram melhores do que carros. Meu apartamento era coberto de madeira e cerâmica, em uma parte isolada da cidade, e eu conseguia passar meus dias fugindo do barulho. Eu precisava fugir. Alguma coisa acontecia quando eu ficava próximo demais do metal, minhas memórias se tornavam confusas, e algum estranho chamado parecia me sugar, pedindo, implorando, algo de mim que eu não sabia o que era. Abri a porta de casa, as chaves estavam cobertas de esparadrapo e a maçaneta era de cerâmica branca com pequenas flores azuis. A cozinha estava vazia, eu não tinha condições de fazer muita coisa, sem fogão, sem geladeira, apenas talheres de plástico e papéis.
Minha sala não era muito diferente, estantes de madeira, sofás e livros, e o meu maior conforto, era a música. Não haviam muitos instrumentos sem metal dentro deles, mas algumas lojas faziam versões antigas que eu podia tocar, violões com cordas de nylon, tambores de couro e flautas. O som deles era mais alto do que qualquer coisa, qualquer som distante de um carro na rua, o ruído dos encanamentos, e o terrível descer e subir do elevador. Eles faziam a minha existência ser mais suportável. Andei até o banheiro, ele estava quase sempre fechado, os canos que subiam e desciam faziam ruídos insuportáveis, mas eu tinha um pequeno ritual de tentar me olhar no espelho todos os dias. O espelho na parede era revestido de madeira, mas isso pouco ajudava no som agudo que ele fazia, espelhos são revestidos de metal, e fazem o exato som de uma flauta desafinada, pulsando dentro da minha mente como pequenos dentes mordendo minha massa cinzenta.
Parei e tentei me concentrar no meu reflexo, um homem loiro, magro, com olhos tristes e abatidos, as feições contorcidas em horror. Meu rosto estava pálido como um papel muito esticado, os tons leitosos se misturavam de forma repugnante. Eu me lembrei de quando os espelhos não gritavam, e muito menos as paredes e as moedas. Quando eu era pequeno, minha mãe repartia meu cabelo e beijava minha testa, Mica, ela dizia, você se parece tanto com o seu pai. Como era o meu pai? Eu não me lembro. Existem muitas coisas que eu não me lembro. Fechei a porta do banheiro e o som do espelho cessou, no meu quarto, nada fazia barulho. As paredes eram revestidas diversas vezes, minha cama era totalmente de madeira, e eu tinha papéis, muitos papéis. Sentei na beira da cama e tirei uma pena de dentro da mesa de cabeceira, molhei ela lentamente no vidro de tinta, afinal granito é algo muito barulhento.
Eu não podia ter um computador, ou um celular, ou nada que os outros seres humanos tinham em suas vidas. As pessoas me achavam louco, antiquado, ou membro de alguma religião restrita. Tanto faz, eu quase não conhecia pessoas, e tenho certeza que elas não gostariam de me conhecer. Desde que minha família morreu no incêndio que destruiu minha escola e grande parte das casas vizinhas, eu conheci pouquíssimas pessoas, e depois de pouco tempo elas desapareciam. Mesmo assim acho que não posso me considerar uma pessoa solitária, eu tenho tantas memórias, todas elas escritas nessas folhas de papel, esses enormes cadernos que eu posso abrir e lembrar quando eu quiser. Eu me lembro de ir até uma praia e mergulhar na água gelada, o mar também não tem som. Eu me lembro de quando toquei minha primeira flauta e de quando aprendi a andar de bicicleta. Eu vivo dessas memórias.
Apoiei minha cabeça no travesseiro macio e fechei os olhos, eu tinha tantas coisas para lembrar, e tinha o dia inteiro para decidir qual momento eu poderia reviver hoje. Me lembrei do dia que ouvi o metal pela primeira vez, esse dia sempre está voltando para as minhas memórias. Eu me lembro a primeira vez que eu ouvi, eu estava sentado esperando a minha vez de cortar, e do meu lado, uma menina da minha idade. Seus cabelos pretos caíam como um mar de cachos por cima de seus ombros, quando as chamas começaram, me lembro que ela foi a única a não se mexer. Me lembro de sua pele escura brilhando nas chamas, como se nenhuma delas fosse capaz de lhe causar qualquer mal, como se ela mesma fosse de fogo, e seus olhos, o brilho deles, como uma ônix do mais profundo preto, e lá dentro, onde deveria ficar sua íris, ou o buraco de sua alma, havia apenas fogo, o fogo refletindo o fogo, ela olhava o fogo e ele olhava pra ela. Abri os olhos novamente. Por onde será que ela está?
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