Decisões
Era engraçado, de alguma forma. Como estar debaixo d'água, os pulmões inchados, nadando em direção a algo amorfo no horizonte. Uma mísera luz parecia guiar meus olhos cansados, e por mais que o medo tentasse me arrastar, a curiosidade era minha única motivação. A luz me fez chegar até uma gruta, um anel de pedras se formava em volta de mim, e em cima, a lua brilhava em um céu escuro. O cenário inteiro parecia muito real, mas quando saí da água percebi que cada uma das marcas e crateras da lua estavam invertidas, como se esse mundo fosse espelhado ao nosso, o mundo de dentro do espelho; e a água realmente parecia um espelho, sua superfície lisa refletia o céu e as pedras. Encarei o meu reflexo na água, os meus cabelos estavam molhadas e meus olhos vermelhos, mas nada havia mudado. Bom, por fora talvez não, mas por dentro, eu sentia apenas uma tremenda solidão, como se á qualquer momento eu fosse criar escamas e desaparecer nas ondas.
E era palpável como eu conseguia sentir todo o meu corpo pulsando de frio, a sensação era assustadora, minha espinha tremia e meus pelos se levantaram como se eu estivesse sendo observada de todos os lados por aquelas pedras, que na escuridão da noite começaram a criar braços e pernas, e se tornar verdadeiros soldados da noite, com suas lanças e escudos pontudos prontos para me despedaçar. Fugi de seus olhares penetrantes e me foquei em mim mesma, e observando meu próprio reflexo cansado eu me acalmei, fixa em mim, sem me mexer ou mesmo respirar fora do tom, em uma solene espera.
Até que de repente, ele se mexeu de volta. Como se possuído por uma força demoníaca, meu reflexo virou o rosto de lado e começou a se levantar, por um segundo o perdi de vista quando tomou impulso por debaixo das pedras e quando retornou, pulou para dentro da água na minha direção. Caí para trás achando que seria atingida, mas quando olhei novamente, a única coisa que estava refletida na água era a lua, e ela se expandiu de tal forma que cobriu toda a água, que começou a me mostrar aquilo que eu já conhecia, o que eu temia e o que eu amava, ela me mostrou o futuro. Tudo estava ao meu alcance agora, como se conhecimentos ancestrais tivessem sido passados para mim, magias arcanas e poderosas, runas antigas e encantamentos arcaicos. Eu conseguia ver todos eles, Nyx e Eros em sua luta de duplas, Mica se arrastando pelo cemitério de gárgulas brancas, Haan e Calto ao lado de meu próprio corpo inconsciente, e por fim Marcos na frente de sua provação. Todas as cenas se passaram diante de meus olhos, rapidamente e de forma violenta, apenas para se passar de novo com pequenas alterações.
Passos eram dados alguns milímetros para o lado, gestos eram feitos diferentes, palavras eram trocadas e frases inteiras mudavam de sentido. Os rostos sentiam de outras formas, reagiam de outras formas, e alteravam pouco a pouco os futuros possíveis. Sentada na frente da lua, eu era apenas um vaso, algo que absorvia todas as possibilidades sem poder reagir. Fiquei parada pelo que pareciam anos, talvez séculos, vendo as centenas de possibilidades se repetirem, de forma cíclica e organizada eu encarava os movimentos daqueles que eu conhecia tão bem, e via seus possíveis erros e acertos. A grande mentira de tudo, era que cada um desses pequenos futuros parecia diferente, como se cada passo e cada palavra pudesse mudar o curso de todas as vidas. Mas na realidade, as mudanças eram tão ínfimas que mesmo grandes alterações causavam pequenas consequências. No final, haviam apenas duas possibilidades.
Mas ainda assim, como escolher? Como brincar com o futuro dos outros como se eu fosse a senhora do tempo? Talvez Calto estivesse certa, e todos fossem joguetes para nós. Mas o que eu podia fazer? Se eu agarrasse todos os estranhos da rua e contasse seu futuro, eles me tachariam de louca, e mesmo os poucos que acreditassem, ainda iriam querer tirar suas próprias conclusões. Não adianta de nada, fugir de um futuro para acabar se afundando nele ainda mais, gritar para as pessoas que seu caminho é claro como a água, apenas para ser ignorada. Você acha, Calto, que não é doloroso? Dia após dia, mastigar e digerir que mesmo os que você mais ama não podem ser protegidos, e vê-los caminhar para o mesmo abismo que você enxerga. Ver seus pés balançaram no ar por um momento e seu corpo inteiro cair nas pedras, se estilhaçando e se quebrando.
Era uma verdadeira maldição. Saber o futuro me trazia imensas angústias, e uma solidão terrível na certeza que ninguém acreditaria em mim, e todos sofreriam os males que eu previa. E era por isso, que eu não podia contar, afinal Calto, se eu te contasse antes o seu destino de hoje, você certamente me odiaria. Não que você não me odeie, mas assim eu consegui resgatar o mínimo de afeição que restava entre nós. Eu te protejo porque eu te amo, e ainda assim, por mais que eu diga o que vai acontecer, você teima em seguir o mesmo caminho torto. Esse gosto horrível na minha boca não saía por nada, as repetidas agonias pareciam me deixar cansada e dolorida, como farpas debaixo da pele, às vezes eu gostaria de não conseguir ver.
E então eu me levantei, ciente de qual futuro precisava ser escolhido, tomando um impulso e correndo em direção à água, cada passo era pesado, como se o peso de todos os destinos estivesse se enrolando em volta de meu corpo como plantas peçonhentas, mas eu precisava continuar. E quando o espelho de lua refletiu Marcos, tomando sua decisão final em cima da pedra, meus pés atravessaram a água, e eu inteira atravessei, meu corpo liso se encheu de escamas, eu era um peixe, nadando por entre as águas escuras desse oceano do mundo espelhado.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro