Corte
Eu me lembro claramente do dia que mudou minha vida pra sempre. E talvez ele seja tão fácil de lembrar por causa dos olhos dela, Nyx queimou minha pele com seus olhos escuros, até hoje espero encontrar as marcas no meu corpo. Depois do incêndio eu achei que seria o fim de tudo, mas eu nunca deixo de me surpreender com a minha vontade de viver, de continuar, de prosperar. E é difícil, muito difícil. A parte mais desafiadora é conviver comigo mesmo e com as minhas vontades, tentar lutar contra os sentimentos que me puxavam em direção ao abismo.
A memória estava firme na minha mente, o fogo, os olhos escuros, eu repetia tudo infinitamente, era a única coisa que me trazia conforto. Mas a realidade é que eu estava esquecendo, lentamente esquecendo tudo que havia acontecido. Quem eu era? Como eu cheguei até aqui? Eu tive família? Nada. O meu nome. Eu ainda sabia meu nome, eu podia repetir ele contra o vazio da minha mente e ouvir ele bater nas paredes. Mica. Era como ouvir o nome de um faraó antigo, uma divindade de uma religião perdida. De que adiantava toda a determinação do mundo, essa enorme vontade de viver, quando tudo me puxava para a não existência. O mundo era injusto, tantas pessoas que jogavam suas vidas fora, lamentavam sua existência, mas eu daria tudo para ser a mais miserável criatura debaixo do sol, se apenas pudesse viver.
Era como estar preso em um transe, a visão ficando mais opaca, o ar se tornando mais pesado, e eu estava envolto em algodão, tentando adivinhar a vida através do tecido. Meus nervos atrofiavam e se recolhiam, meu corpo se retorcia até se tornar uma massa amorfa no chão da cozinha e finalmente cair pelas frestas do ralo. Eu queria lembrar de algo, mas o quê? Era como se eu estivesse lendo um livro, mas as páginas estavam sempre brancas e eu podia apenas vislumbrar as palavras se apagando diante das minhas mãos. Como se minha consciência lutasse para se manter acordada mas estivesse na beira de um sono profundo, e eu não queria dormir. Tudo que eu sentia era deturpado e fraco, e o mundo queria me anestesiar, queria me fazer deitar pela última vez. Mas eu lutava.
Esfreguei o rosto, tentando arrancar o sono dos meus olhos, mas nada mudava. Eu só queria ficar acordado. Tentei me focar nas coisas que me cercavam mas nada era interessante o suficiente para prender minha atenção, tudo girava em volta de mim em uma massa disforme e lenta. Me sentei no chão e cruzei as pernas encostando os joelhos no chão, me estiquei para frente e encostei com dificuldade a testa no chão estendo meus braços para frente. Isso era uma borboleta, eu me lembrava disso. Abri e fechei a mão sentindo a textura lisa da madeira e os contornos em volta se tornavam mais claros, me lembrei de uma voz me mandando levantar, era uma voz conhecida, ela dizia para eu segurar os calcanhares e me embalar para frente e para os lados, isso é o barco, a voz dizia. Eu deixei meu corpo se mexer sozinho e fechei os olhos, era como estar sendo levado pelas ondas.
A proteína é como um fio, o professor segurava uma corda, um fio muito enrolado e muito preso; mas quando esse fio é exposto ao calor em excesso, ele desnatura e se desenrola, perdendo suas qualidades originais. Eu continuava me balançando, para frente e para trás, para a esquerda e para a direita em um círculo. Talvez fosse isso que esteja acontecendo comigo, eu sou um nó muito firme que a cada dia se estica mais. Parei. Eu conseguia ouvir alguma coisa. Saindo do silêncio que eu estava, qualquer som era agradável, mesmo o retrato mais horrendo se tornava maravilhoso nos olhos de alguém que não vê. E assim eu me joguei nos braços daquele som como um marinheiro que se atira ao mar, perfeitamente contente em ter como último suspiro os beijos de uma sereia.
E finalmente eu não estava mais enrolado em algodão, eu estava solto, conseguia olhar tudo que acontecia à minha volta, ver todas as cores e lentamente ser alguém novamente. Segurei meus braços com força, mas não conseguia sentir o aperto. As pontas dos meus dedos formigavam enquanto meus sentidos retornavam, mas os meus braços caíam moles ao toque. Era a minha pele, a minha carne, mas eu a sentia não diferente do que eu imaginaria a carne de um açougue. O som me guiava, me puxava e me empurrava lentamente na direção que ele queria, e eu não tinha escolha a não ser aceitar. O som era metálico, e que material terrível é o metal. Ele pede, implora sempre mais, consumindo tudo à sua volta, cortando, picando, triturando, até que nada mais sobra além dos recortes.
E ele exigia de mim, ele pedia para ser usado. Olhei para a carne mole dos meus braços e senti o que precisava fazer, meu propósito era esse, sempre foi. Eu imaginei uma faca média de cabo prateado, sua ponta bem afiada entrado pela pele e atravessando as veias e nervos até alcançar o osso do pulso. Sua ponta afiada seguia no corte e finalizava um quadrado perfeito, arrancando para fora o objeto do sacrifício, uma oferenda para um Deus invisível, um pedaço de mim para viver na terra, no chão, na pedra. O sangue escorrendo quente e forte retornaria toda a vida para o meu rosto enquanto ele me puxaria para a morte. Eu poderia sentir o corpo pulsando em protesto, a visão se tornando fraca e o abraço final com o meu destino.
Eu sentei olhando para o lugar onde pretendia finalizar a minha vida, aquele pequeno quadrado de pele ainda intocado. Mas por algum motivo, eu era incapaz, eu era medroso. Não, não era medo. Era uma vontade de me manter existindo, mesmo que a existência fosse coberta, mesmo que tudo ao meu redor se apagasse, mesmo que a vida se tornasse opaca. Fechei e abri os olhos rapidamente enquanto via o mundo se apagar, a terrível divindade demandou um sacrifício que eu neguei e agora ela iria me punir, me finalizar sem o meu consentimento. Depois de tanto ter lutado para ser livre, eu morreria uma morte livre, eu poderia sentar e respirar em paz ao invés de me debater no chão como um peixe.
Batidas na porta. Alguém batia na porta com força e gritava meu nome. Me levantei e andei em direção a maçaneta, eu conseguia enxergar as paredes, o chão, conseguia sentir o toque da cerâmica fria nos meus dedos, minha pele tremeu ao ser esquentada pelo sol. Quem seria responsável por me trazer de volta do abismo, quem havia me resgatado tão facilmente? Abri a porta esperando encontrar um anjo do outro lado, mas o que eu encontrei foi de alguma forma ainda melhor. Nyx. Ela me abraçou com olhos repletos de lágrimas, seu corpo era tão quente que eu parecia estar abraçando uma estrela. A mais brilhante de todas as estrelas.
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