Corpo
Me sentia sonolento, como se algo dentro de mim estivesse lentamente parando, um véu opaco se colocava sobre os meus olhos e me forçava ao sono. Minhas pálpebras coladas se escondiam do mundo, e por mais que eu tentasse lutar, senti cada músculo se enrijecer e relaxar em uma vibração contínua, me carregando para cima e para baixo como o movimento da água. E por fim, eu era um homem novamente. O corpo humano é algo terrível em todos os aspectos, mas ainda é o corpo que me permite fazer o que eu faço, o meio de transporte que me leva por entre os universos, a única salvação do meu povo. Eu olho para essa mão pequena, os dedos são longos demais, as unhas são muito redondas, e as linhas, parecem cortadas à faca. É uma marionete, algo falso e artificial.
Eu não consigo me lembrar de como eu era antes, as memórias ficam presas dentro da alma, mas a maioria vai embora com a cabeça. Em algum lugar o meu crânio já deve ter virado pó, todos aqueles que me amavam achando que eu morri naquele fatídico dia, de algumas centenas de anos atrás. Ou eram anos? Anos são coisa de humanos, medindo sua vida em rotações da terra. Eu não me lembro mais como nós medíamos o tempo, e apesar de ter certeza que nossa vida era extensa e próspera, nesse momento ela parecia igual. Quem eu era? A minha família? Os meus amores? Meus filhos? Nada. Eu me tornei apenas uma casca, e preciso acreditar que seja lá o que for que eu sacrifiquei valeu à pena.
— Porque sempre um homem Haan? — Cronos perguntou. — Você se torna o mesmo homem de terno todas as vezes.
— Porque na terra, as pessoas não fazem perguntas para homens de terno. — Respondi. — Na maioria das vezes.
— Devo concordar. — Calto riu. — Ainda assim me parece um disfarce gasto.
— Ser um homem ou uma mulher é algo de mísera importância. — Continuei. — Apenas humanos se importam com isso.
— O que você era antes? — Calto perguntou. — Antes da transição?
O que eu era antes. Haviam homens e mulheres no meu mundo? Sim, obviamente. Mas essa diferença era tão pequena e imperceptível que jamais era comentada. Provavelmente da mesma forma que um pássaro macho pode ser identificado pela coloração diferente de suas penas, ou o tamanho diminuto de suas asas. As enormes distinções eram coisa de humanos, assim como suas guerras e massacres. Não consigo me lembrar o que eu era antes, mas me lembro claramente que uma combinação específica de cromossomos e tons de pele é suficiente para que sua vida na terra se torne infernal. O respeito é limitado a essas características físicas, e ser um homem de terno sempre foi a melhor forma de me guiar. Talvez em algumas centenas de anos isso mude.
— Irrelevante, nós não podemos ter filhos. — Cronos explicou. — O que ele era antes morreu.
— Uma habilidade que você perdeu quando se tornou uma de nós. — Eu falei.
— Tentando me assustar? — Calto sorriu. — Eu serei uma excelente tia.
— Você não vai prevalecer. — Eu gritei. — Em algumas horas sua consciência será absorvida por Cronos.
— Não duvide de mim. — Ela apertou meu pescoço com força. — Esse ainda é o meu corpo.
— Pense como quiser. — Eu continuei. — Se te trouxer paz.
— Basta. — Cronos continuou. — Quantos humanos estão mortos?
Nenhum. Cere nesse momento estava respirando ofegante dentro de seu transe, todos os humanos passavam por provações e testes, seus corpos estirados em pilares de pedra pela sala. Mica se convulsionava de forma violenta e Nyx dormia pacificamente. Tudo dependeria de sua habilidade de acordar, se suas mentes fossem fortes o suficiente, conseguiriam acordar. Mas humanos não tinham como vencer nesse cenário, sua proeza marcial terminava com suas pistolas e bombas nucleares. Nenhum deles seria capaz de ganhar em um confronto de inteligência, algo minimante pensado, escavando as profundezas de sua mente para encontrar medos e inseguranças.
— Nenhum deles morreu, eles são mais fortes do que você pensa. — Calto falou encarando Cere. — O que acontece se eles ganharem?
— Eles não vão. — Eu falei nervoso. — Nenhum humano é capaz de ganhar o jogo.
— Se eles não fossem capazes, seria injusto não? — Ela continuou. — Você sabe muito bem que eles podem conseguir.
— Não são jogos normais, criança. — Eu continuei. —Humanos não tem capacidade intelectual para compreender o nosso mundo. Vocês não enxergam nossas cores, não entendem nossa natureza ou nossa arquitetura. Humanos são terríveis em entender os outros.
— Isso eles são. — Cronos riu. — Sua visão é individualista, por isso nenhum deles nunca se sacrificou por seu mundo.
— Vocês dois são confiantes demais para quem perdeu um conflito recentemente. — Calto brincou com seus anéis. — Sua superioridade pode ser real, mas seu ego certamente altera sua visão.
— Não venha falar de ego para mim. — Eu gritei. — Vocês são apenas insetos, diante da grandeza de nosso mundo.
— Prove-me. — Ela me olhou confiante. — E se os humanos ganharem?
— Não vai acontecer. — Eu me virei de costas.
— Assustado demais para considerar a possibilidade? — Ela continuou.
— Nunca! — Eu respondi.
— Se eles ganharem, você me ensina tudo que você sabe. — Ela pediu.
— E se eles perderem? — Eu perguntei.
— Se eles perderem, eu deixo meu corpo para Cronos. — Ela ofereceu.
Uma barganha excelente considerando nossas chances, mas não consegui deixar de pensar que havia algo além do que ela me contava. Seus planos pareciam tomar um rumo que eu não conseguia prever e a ideia me deixou irritado. O que essa humana estava pensando em fazer, jogando com deuses? Cronos jamais seria subjugado por ela, e nenhum dos humanos iria conseguir passar por suas provações. Era perfeito, tudo iria ocorrer conforme os meus planos, e ainda assim, algo em seu olhar era aterrorizante, um frio descia pela minha espinha todas as vezes que ela em encarava com seus olhos verdes, como duas pedras lapidadas e espelhadas, onde eu via somente a mim mesmo. O que essa humana tinha, de tão diferente?
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