Chamado
Eu sentia falta, de quando o meu mundo era um lugar livre de corrupção. Os humanos, eles são cheios de morais, como sacolinhas de justiça e julgamento. Existe pouco que você pode fazer para sustentar suas noções e objetivos dentro de você quando seu mundo está em colapso. Quando a vida te corta ao meio, tudo que você acredita é vomitado, como órgãos soltos caindo de um tórax aberto, e pouco adianta o quanto você segure, o sangue nunca é estancado, a ferida fica aberta para sempre. O que eu podia fazer? Eu fiz o que eu precisava. Eu esmaguei todos os inferiores abaixo de meus pés como formigas, eu conquistei e dominei como eu podia, para salvar os meus. E teria feito tudo de novo.
Olho para cima e vejo minha lua, ela é tão linda para mim e para os meus, como uma divindade superior que nos olha de cima. E como os nossos deuses, ela é vermelha e sangrenta, amante da guerra e da morte. Como eles podem me considerar injusto? Como eles podem me olhar e me julgar? Se eu sou mesmo tão cruel, tão errado, porque o mundo foi feito assim? Eu apenas sigo as regras que foram traçadas como estradas no meio do deserto, o único caminho para a minha sobrevivência, me arrastando em direção à água como um sedento amaldiçoado, a vontade de beber maior que a minha consciência. Eu já fui como eles em algum momento, talvez se eu me esforçasse eu conseguiria me lembrar, os tempos em que minha vida eram livres de problemas cósmicos e as vidas dos meus não eram sacrificadas como carne de abate.
Será que eles compreenderiam? O que é ver o tecido do universo partido e rasgado, monstros horrendos escapando de seus fios, destruição e morte que alteravam o físico, o próprio chão se contorcendo como a visão de um pesadelo. Quantos dos humanos não fugiriam em terror? Quantos deles não iriam apenas correr sem preocupação, abandonando família e amigos sem nenhum pensamento, apenas para se salvar? Eu sei quantos deles fariam, porque eu vi com os meus olhos enquanto as mães abandonavam seus filhos e os jogavam no abismo, velhos eram jogados no fogo como lenha, e as crianças eram engolidas inteiras por monstros abissais. E eu fiz a única coisa que eu podia fazer, eu corri na direção do caos.
E foi lá, que eu encontrei ele, meu grande amigo, meu mentor, a pessoa mais pura de todo esse maldito universo. Ele segurou minha mão e me ajudou, evacuamos a cidade e entramos diretamente na fenda, abandonando para sempre nossa vida e trocando nossa carne pela possibilidade de consertar o erro. Quando reparamos a primeira fenda eu me senti feliz e satisfeito, mesmo sabendo que jamais poderia viver uma vida calma, eu sorria em saber que o meu povo conheceria tranquilidade e uma vida fácil. Eu olhava por cima da cidade durante a noite, tendo somente a lua como companhia, e me sentia completamente feliz. Mas as fendas continuaram, uma após a outra como larvas saindo da terra, e conforme elas destruíam as bordas do mundo, os habitantes que sobraram se escondiam, inconscientes dos seus salvadores.
O corpo que troquei pelo meu é volátil, estranho, uma cópia. Eu podia me camuflar por entre os mundos, os 4 universos eram meus para entrar e conquistar, mas eu jamais poderia andar entre os meus novamente. Minhas cordas vocais alteradas não eram nem ao menos capazes de falar o meu antigo nome, meus olhos fracos não conseguiam ver as antigas cores, as plantas não tinham cheiro, a comida não tinha gosto. Era uma existência miserável, como um morto que fora amaldiçoado pela terra, se arrastando pelo chão pútrido e sem vida, se alimentando de pedaços de granito e bebendo as lágrimas dos homens em luto.
Essa era a primeira vez que eu fazia tudo sozinho, que eu tentava costurar as bordas do universo sem a ajuda dele, e era insuportável. Eu precisava chamá-lo de volta, mesmo que custasse, eu precisava de sua presença pacificadora, e eu faria algo errado pelos motivos certos. Andei até o prédio principal, a lua iluminava as colunas e fazia o lugar parecer vindo de um sonho, como uma arquitetura antiga feita para os deuses. O chão espelhava minhas patas peludas e era frio ao toque, como se feito de gelo. Encontrei as duas na mesa central, Cere estava deitada no chão, se mexendo de forma febril como se estivesse presa em um pesadelo, e do seu lado, Calto estava sentada olhando para um grupo de cartas dispostas em cima da mesa.
— O que você quer dessa vez? — Ela falou irritada.
— Que estranho. — Respondi. — Vocês humanos são mesmo muito voláteis.
— Muito voláteis? — Ela respondeu olhando para baixo.
— Não fazem nem algumas horas que você daria tudo para estar aqui. — Me aproximei lentamente. — E agora você foge de mim como se eu fosse uma besta terrível.
Seus olhos esverdeados pareciam ter se tornado assustados e ela encarava a carta do diabo como se algo fosse sair de dentro dela. As chamas do desenho eram tão reais para ela como o incêndio do hospital que ela mesma causou, seus gestos eram estranhos e confusos, ela estava entendendo a gravidade da própria situação.
— Sabe Calto, todos os humanos desse mundo estão passando por provações e obstáculos nesse momento. — Eu expliquei. — Você já se perguntou porque você permanece intacta?
— Porque você me protegeu? — Ela falou nervosa.
— Você é uma de nós agora. — Eu continuei. — E o preço para ser um de nós é alto.
— Você não vai fazer isso comigo. — Ela gritou. — Eu não vou permitir.
— E que poder você tem? — Eu ri. — Você assinou um contrato quando bebeu meu sangue, e você devia ter pensado melhor.
— Eu ainda sou humana, mesmo que parcialmente. — Ela começou a correr.
— Uma gota de água no meio do óleo ainda é água. — Eu falei. — Mas não o suficiente para limpar toda a sujeira.
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