Band-Aid
Marrom. Ele era muito marrom e muito velho. Eu coloquei ele no meu braço quando um poste da rua me cortou com suas garras de arame. Isso aconteceu há 5 dias. Quando a ferida estava aberta e sangrando, o curativo serviu como uma janela, fechando o meu interior para o mundo de fora, apenas um pequeno círculo de sangue batendo no vidro. Na época ele era bege e liso, esticado sobre a pele em uma unidade perfeita, duas partes de um todo. Mas 5 dias se passaram, e agora ele era marrom, muito marrom e muito velho, com as bordas sujas se levantando em protesto, e a mancha de sangue assumiu um horrível tom de vinho.
Eu precisava tirar o band-aid. Ele estava me implorando, eu pensei enquanto olhava para ele no meu braço, pendurado como um farrapo inútil em volta de um morto. Mas eu não conseguia. Repeti na minha mente o cenário centenas de vezes enquanto estava sentado naquele lugar, me imaginei de todas as posições possíveis agarrando uma borda e puxando com força, um movimento rápido e certeiro, removendo o curativo de forma indolor e deixando para trás a pele exposta. A ferida já devia ter cicatrizado, foi um corte muito pequeno, deixaria para trás apenas a marca da cola, como uma pessoa que depois de décadas tira seu anel de casamento para revelar um círculo de pele clareada e macia.
Mas eu não conseguia, eu repeti na minha mente, eu não conseguia, não conseguia, não conseguia. Porque? Será mesmo que eu era tão fraco? Uma péssima desculpa para um homem, me arrastando por esse mundo em frangalhos, tentando me agarrar a qualquer porto seguro, qualquer sinal de estabilidade. Fechei os olhos e imaginei a cena novamente, as pontas dos dedos pegando levemente na borda podre, hesitando por um segundo, e puxando perfeitamente em uma única direção. Uma atitude decidida e forte, digna de um homem que sabe onde está e o que ele quer, uma pessoa que tira o curativo sem hesitar. Mas eu nunca fui essa pessoa. A sensação de ter me tornado uma árvore imóvel da peça da minha vida me consumiu, era como se eu estivesse preso em um carro em movimento, cada vez mais rápido indo para um precipício, sem ser capaz de me mover ou apertar o freio. Marcos, você é um covarde. Como você espera tomar qualquer decisão importante na sua vida, se você é incapaz do mínimo esforço. O seu medo de se machucar é mesmo tão grande, que você pretende ficar imóvel até o dia do julgamento final?
Abri os olhos, a sala era muito iluminada mas ao mesmo tempo muito suja. O carpete parecia nunca ter sido aspirado, as paredes pintadas da metade para baixo de um laranja vibrante tinham marcas de mãos, e na minha frente no computador, clipes se misturavam com poeira e cabelo dentro de um porta canetas. Era quente e sem janelas, e parecia se diminuir em volta de mim, uma espécie de purgatório em forma de escritório, e afinal, o purgatório deveria ser muito próximo disso. O homem na minha frente estava suando com o calor, seu pescoço era largo e mole, e por alguns minutos me perguntei como ele conseguia estufar toda aquela pele dentro da gola da camisa, sua gravata apertada parecia que iria estourar com a força, ele parecia estar fisicamente derretendo. Fui acordado de meus devaneios pelo som da impressora, como tudo dentro do escritório ela era antiga e suja, e se esforçava para cuspir as folhas, fazendo barulhos terríveis, tossindo como um tuberculoso em seus últimos dias.
- Essa é a proposta final, fique à vontade para ler no seu tempo. - O homem disse sorrindo.
- Muito obrigado. - Eu segurei o bloco de folhas quente entre os dedos. - Me responda uma coisa, você por um acaso sabe porque esse lugar está tão barato?
- Você sabe, o mercado está em recessão. - Ele deu um sorriso amarelo. - Você está com dúvidas por um acaso?
Ele estava me desafiando, esse homem de pescoço grande com seu sorriso de dentes ruins. Ele me trouxe até essa corretora e me deu uma proposta para revisar, uma proposta que ele sabe que eu já li de trás para frente. Ele sabe que eu sou um covarde e está rindo de mim. Nesse momento com o seu sorriso largo ele está pensando "Marcos é um covarde, aposto que ele não vai fechar o contrato hoje." Já era a quinta vez que eu falava com ele, trocamos mensagens e telefonemas, mas dessa vez ele insistiu para que eu aparecesse, porque ele sabia que se eu me sentasse nessa cadeira e olhasse nos seus olhos, eu seria incapaz de recusar. Ele mediu os meus medos, de uma forma que eu jamais seria capaz de fazer, ele entendeu que meu medo de parecer medroso, é muito maior do que qualquer medo que eu tenha, e ele usou isso contra mim. Eu tinha levado um golpe certeiro na jugular e não havia mais volta, ele era um leão de olhos firmes e eu um cervo estupidamente encarando o céu enquanto minha vida se esvaía na grama.
- Estava apenas curioso. - Sorri de volta. - Realmente, o mercado está em recessão.
Segurei a caneta entre meus dedos enquanto eles tremiam, será que ele conseguia ouvir meu coração acelerando? Esse predador que me encurralou em seu escritório? Será que ele sabia, que a cada momento que passava eu contraía mais os músculos da minha testa, para que nenhuma gota de suor denunciasse meu nervosismo. Que as minhas cordas vocais tremiam de uma forma tão intensa, que qualquer resposta sairia como um canto desafinado de um cisne à beira da morte, um pedido de ajuda. Eu podia apenas selar o meu destino, seria então esse o meu fim, que morte gloriosa eu teria, encurralado, preso e amedrontado. Escrevi meu nome nas folhas, assinatura, rubrica, assinatura, rubrica. Depois de alguns momentos eu entreguei de volta as folhas e a caneta que ele usou para perfurar meu coração. Agora eu teria que lidar com as consequências da minha derrota.
Ele sorriu, mas é claro que ele sorriu, ele me derrotou e ele sabia disso. Depois de me passar alguns documentos devidamente dobrados e carimbados, ele se levantou e apertou minha mão. Será que ele notou que minha mão estava fria? Gelada quase? Era a minha vida, saindo lentamente de mim enquanto meu sangue escorria pelo pescoço. Sua mão firme soltou a minha e eu quase caí com o impacto, eu estava fraco e não sentia mais meus membros. Enquanto eu abria a porta e sentia fio por fio o que prendia meu corpo em pé ir se desfazendo, até que estava quase andando em uma nuvem de medo e desespero, uma sensação me acordou do meu transe novamente.
- Aqui! - Ele disse com o meu curativo na mão. - Eu tirei para você.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro