Água
Não existe nada pior que a solidão para alguém que está acostumado com a companhia. Descobri do pior jeito que minha confiança é dependente, e eu, alguém que precisa de aprovação constante para se sentir firme. Como alguém que sabe o futuro pode ter dúvidas? Era no mínimo num cenário engraçado. Eu era a sacerdotisa, todas as possibilidades me diziam que eu conquistaria meus objetivos e as coisas dariam certo no final. Mas eu estava longe do final, nadando no mar infinito de águas escuras, eu queria apenas fechar os olhos e encontrar aquele final, estar em um futuro confortável e certo, mas tudo que eu encontrava eram as águas. Se eu pudesse apenas seguir em frente e bater de frente com tudo, pular por cima das dificuldades e cair em cima do sucesso.
Saber o caminho de alguma forma me tornava mais assustada, eu sabia o que eu tinha que fazer, mas ainda não tinha certeza se era forte o suficiente. Se ao menos o tempo fosse infinito e eu pudesse contemplar todas as escolhas e decisões de forma calma, mas a cada segundo que passa as areias do tempo caem em cima de mim e me enterram. Os olhos de um peixe são em tudo diferentes dos olhos humanos, seu formato achatado e sempre aberto não me permitia entrar na minha mente e pensar a fundo sobre as coisas. Eles me jogavam em um estado de alerta, uma ansiedade constante, revirando os lados como se algo fosse aparecer. Mas eu sabia que estava sozinha, nenhum movimento, nenhum cheiro, nenhuma luz indicava o contrário, mas o medo passava por mim em ondas.
Na minha frente surgiram, como se saindo de dentro da terra, uma série de casas e estátuas de pedra cobertas por plantas e musgo. Os telhados esburacados serviam de pouca ajuda para manter os seus habitantes secos, e as estátuas paralisadas retratavam pessoas em atos cotidianos. Meu tamanho não me ajudou muito, eu era do tamanho de uma mão, e tudo desse lugar parecia letal para mim, mesmo completamente fincadas no chão. Comecei a me perder por entre as portas e janelas esburacadas, até que um som alto começou a vibrar pela água.
Eu não conseguia identificar o que era, mas rapidamente me esquivei, cada vez mais fundo por entre os quartos, passando por móveis e me arrastando por paredes. O verde que saía das algas e do musgo estava diluído na água, e pouco se podia ver das enormes estátuas que com cada vibração assumiam movimentos, seus olhos vermelhos brilhando na imensidão. Suas mãos decepadas quebravam tudo que conseguiam das estruturas, os pedaços de madeira caíam de forma lenta pela água, e até minha corrida parecia ser lenta demais. Os sons continuavam, cada vez mais altos e mais confusos. A areia do chão se levantava conforme os pés se mexiam, os cacos de vidro se misturavam com a madeira e a pedra quebrava fazendo estrondos.
Então eu acordei, meus olhos imediatamente se fixando na lua vermelha, o fundo escuro agora estava repleto de estrelas, suas tonalidades roxas e azuladas me deixaram nervosa e assustada, como se eu ainda fosse pequena, e elas, cada vez mais perto de mim. Respirando fundo e me levantando, fui consolada por um toque ao mesmo tempo familiar e estranho, uma mão fina me segurava e me acalmava o melhor que podia enquanto eu recobrava minha consciência. Estava deitada em um pilar de pedra na sala, os outros pilares estavam em lugares simétricos da sala, Nyx, Eros, Mica e Marcos ainda estavam dormindo.
— Cere! — Calto disse. — Você voltou.
— Como isso é possível. — Eu segurei seu rosto. — Como você ainda é você?
— Talvez o meu futuro não seja tão fixo como você pensa. — Ela sorriu. — Eu não posso fazer muito mais do que isso.
Ela olhou para trás, Haan andou até a outra extremidade da sala, onde uma ameaçadora porta estava se abrindo lentamente. Ela era amarelada e enorme, como se feita para gigantes, ele se esgueirou por entre a fresta e uma lufada de vento veio em nossa direção, a porta finalmente estava aberta e revelava o que se escondia do outro lado. Corri junto de Calto para seu lado, e o que encontrei foi algo que eu já havia visto milhões de vezes, mas que não por isso era menos horrível. A fenda entre as dimensões se encontrava na nossa frente, um enorme precipício no chão nos separava do abismo, o buraco seguia escuro por quilômetros e terminava na luz, o nosso mundo se desprendia do chão e caía para cima, pedaços de prédios e objetos flutuavam sem rumo de um lado para o outro.
Postes e carros, celulares e bolsas, pedaços grandes de concreto e janelas inteiras. Lá embaixo a rua do antiquário permanecia a mesma, seus deslizes e sua estrutura pareciam intocados, o maior estrago se encontrava do nosso lado. Pelo vidro de um prédio que se descolava do chão, consegui ver perfeitamente o reflexo da lua, a nossa lua, prateada e limpa, nada como o brilho doentio da lua vermelha, e essa visão me trouxe consolo e força para continuar. Calto permaneceu parada e eu percebi que quem estava no controle era Cronos, seus olhos verdes me encaravam com desprezo e ódio, e se fosse de algum uso para ele, certamente já teria me jogado no fundo do precipício. Suas motivações eram estranhas, seu futuro, incerto.
Haan estava sentado na beirada, brincando com uma coleira de gato que havia vindo do nosso mundo, seus olhos quase pareciam cheios de lágrimas, e o brilho das duas luas o tornava menos assustador, como uma figura triste de outra era. Corri para dentro do edifício e fiz a única coisa que sabia ser a correta, Nyx estava se levantando de seu sono, Eros parecia prestes a acordar, e Mica, ainda se debatia em pânico. Corri para perto dele e pulei no seu colo, esbofeteei seu rosto quantas vezes foram possíveis e gritei forte em seus ouvidos, quando estava prestes a perder as esperanças, seus olhos se entreabriam, o sangue de um ferimento começou a percorrer suas roupas e passar para as minhas mãos.
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