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Miséria

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“O homem tem mais necessidade de respeito que de pão.”

Quando comecei a trabalhar no astral o que eu mais recebia era demanda para dinheiro. Eu comecei vendo aquilo com muita estranheza mas logo entendi que faz parte da vida metropolitana, lugar onde a máxima do capitalismo impera sobre o mote que diz que "ter é melhor do que ser" este dizer traduz com sinceridade a verdade por trás da alma Paulistana.

São Paulo abriga pessoas de todos os Estados ou até de certos países vizinhos que vem para a tal "terra das oportunidades" na esperança de mudar de vida, e volta e meia eu posso dialogar com algumas destas pessoas que me contam sua história de vida, e eu jamais as esqueço.

Certa noite vi um homem na calçada de um prédio abandonado próximo a estação de metrô da Luz. Ele estendeu a mão como quem me pedia um trocado eu depositei em sua palma uma moeda de ouro. O homem a pegou e logo foi examinando a moeda com uma feição de estranhamento, já que a mesma não tinha nada entalhado em relevo nas suas duas faces. Eu prontamente abaixei e sentei-me ao seu lado para conversar. De pronto interrogo-lhes perguntando seu nome:

— Senhor, qual é o seu nome?
— Eu não tenho nome, não tenho documento. E você tem nome, meu jovem?
— Se o senhor não tem nome eu também não tenho.
— Ah! – Suspirou o homem.

Houveram alguns segundos de silêncio, especificamente durou a mesma quantidade de segundos que demora para um  semáforo mudar de cor. Até que o silêncio foi interrompidos por mim.

— Conte-me sobre você. Como veio parar aqui?
— Eu sempre estive aqui, sempre pelas calçadas, sou filho de uma prostituta. Tá vendo aquele ponto ali, lá na esquina, vê? – ele aponta para a esquerda.
— Vejo sim, senhor...
— A minha mãe trabalhava ali. Toda noite ela vendia o seu corpo para ganhar alguns trocados.
— Ela tinha nome?
— Tinha sim. Tá com frio, filho? Cubra se com a minha manta, vai fazer frio essa noite. A capital é muito fria nessa época do ano...

Uma leve garoa começa a cair do céu, aos poucos essa chuva fina vai molhando o chão sem conseguir sequer formar uma poça d'água.

— Como você veio para aqui, meu senhor?
— Eu sempre estive aqui, eu nasci na rua e na rua eu fui criado. A minha mãe veio de longe, ela era nordestina e veio fugida de lá...
— Por quê?
— Ela tinha um problema de família... Eu me lembro dela ter falando que um dia ouviu do pai que "se ele dava o pão era dever dela retribuir com suas carnes" então, ela saiu de lá para vir pra cá. Aqui ela encontrou a mesma proposta de trocar seu corpo por pão.
— Nem sempre a metrópole trás oportunidades para todos... 
— É sim, amigo, é assim.

Por um instante a conversa cessou e víamos que aos poucos a rua se esvaziava. Já era uma hora da manhã e o metrô ia fechando. Dessa vez o silêncio foi quebrado pelo senhor que confessou:

— Na minha infância sempre era tudo muito difícil. No começo minha mãe fazia de tudo por mim mas conforme o tempo foi passando ela já não suportava os abusos que sofrem as pessoas que trabalham nas ruas. Para poder fazer seus programas ela precisava usar drogas e aos poucos ela foi esquecendo de quem era, então quando eu tinha dez anos minha mãe desapareceu. Dizem que a mãe morreu de muita droga na cabeça ou algo assim, e foi aí que eu vim para nas ruas.
— Quantos anos o senhor tem? – Perguntei ao homem.
— Não me lembro, meu jovem... Talvez, setenta.

O movimento do vai e vem dos carros ia diminuindo. Conforme o tempo ia passando a chuva começava a encorpar ficando cada vez mais forte, aos poucos a água molhava o papelão que servia de cama para o humilde senhor.

— E como foi a sua vida, meu amigo? – pergunto.
— Não tenho vida, sempre estive pela sarjeta, catando lixo, comendo lixo, até ser esquecido...

Acendi dois cigarro que tinha no bolso, um eu lhes ofereci e ele aceitou. Foi então que indaguei.

— Para que o senhor quer essa moeda que eu te dei?
— Ora, para comprar comida.
— O senhor está com fome?
— Uhmm, ainda não... Curioso não me lembro de quando foi a última vez que eu comi... Mesmo assim, agradeço e vou guardar para usar depois.
— Porque o senhor guarda dinheiro?
— Ah. Porque ter dinheiro é importante, tá vendo essas pessoas aí, andando para lá e para cá e tendo vidas felizes? Sabe qual é a diferença delas para eu? – perguntou o senhor.
— Nenhuma senhor.
— Hahaha, jovem inocente – disse ele esboçando um sorriso largo. – A diferença é que elas tem dinheiro, elas sempre estão bem vestidas e limpinhas e elas comem sempre, mesmo quando não tem fome, elas são gente e eu não.
— Se o senhor não é gente, o senhor é o que, então?
— Eu sou um nada. Filho, eu não tenho valor. – Afirmou o velho em tom de consternação.
— Se você tivesse muito dinheiro, o que faria?
— Ah, eu faria igual você, eu daria de comer a quem precisa. É tão ruim passar fome.
— O senhor já trabalhou em algo?
— Já sim. Mas depois os tempos modernizaram e não quiseram mais contratar um homem sem documento.

Um ônibus passa rapidamente e quase atropela um transeunte, então pergunto.

— Amigo, você se arrepende de algo?
— Talvez de não ter morrido antes. Jovem, as vezes eu me pergunto porque Deus foi tão cruel comigo. Quando tá frio, como hoje, quando me deito, eu apenas choro e peço desculpas a Deus por querer partir desse mundo.

Ao ouvir essas palavras confesso que eu não tive resposta.

— O senhor não é um lixo... Eu não acho isso do senhor. Agora você é meu amigo.
— Pra mim, isso já vale muito.
— Eu não concordo que o mundo seja desse jeito. Não concordo que alguns tenham conforto e outros não tenham nada.

O homem apenas fez silêncio pois já não tinha voz para falar contra as desigualdades do mundo. Foi então que eu falei:

— O senhor ficaria feliz se eu realizasse a sua vontade de ir para outra vida? Talvez encontre com Deus no paraíso.
— Ah! Então eu morri, né?
— Sim, morreu.
— Você é o anjo que veio me buscar... Quanto tempo faz que eu morri?
— Fazem umas três semanas...
— Eu sou o mendigo queimado do noticiário – ele afirma com sua voz embargada e os olhos cheios de lágrimas_ Eu fui queimado? Rapaz! Eu fui queimado. Como uma pilha de lixo, eu fui queimado... Porque me queimaram? Como um nada. Porque, rapaz...
— Calma amigo! _ Falo oferecendo um abraço – Eu estava aqui com você, você estava dormindo e eu me certifiquei para você não sentir nada...
— Porque fizeram isso comigo?
— Eu não sei, amigo, eu não sei...

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