Identidade
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"No princípio era o verbo e o verbo se fez carne"
Para alguns homens eu sou o diabo, para outros sou tratado como divindade, ganho altar, oferenda e faço "milagres". Milagres esses que servem apenas para saciar os desejos mesquinhos dos humanos. Não me entenda mal, por favor, o que eu sou de fato está muito além desse olhar maniqueista, eu estou acima do bem e do mal.
A primeira faísca de consciência que eu tive foi ao lado de um homem. Ele era arrogante, mesquinho, falso e manipulador cumprindo todos os requisitos para ser um excelente obsidiado. Lembro me vagamente que a sua aparência era de um homem de cabeça raspada e uma barba bem grande.
Eu o acompanhei por o longo de sua vida estando sempre ao seu lado desde sua primeira infância. Na escola, eu era o responsável por suas birras e manhãs inspirando-o malcriações e desobediências. Já na adolescência, eu inspirava as rebeldias do jovem garoto e quando qualquer fato lamentável viesse a acontecer, normalmente se ouvia "ele tem um gênio forte" "é só uma fase, depois melhora", dessa forma meu possesso jamais foi responsabilizados por nenhuma coisa moralmente questionável que havia feito.
Quando atingira a idade adulto a minha forma de atuar mudou, agora, eu tentava fazê-lo pensar que ele estava acima de tudo quando na verdade ele só estava acima do peso mesmo. A auto estima era o motor para o orgulho e a soberba, e a soberba que junto a sua péssima personalidade fazia com que o homem provocasse em terceiros sentimentos bélicosos como, raiva, ódio, rancor. O homem fazia com que o clima de qualquer ambiente sempre vibrasse em níveis baixos e assim eu me alimentava e crescia com bastante facilidade aumentando minha influência sobre ele. Nós tínhamos um processo de simbiose perfeita, eu vivia a sombra dele, ou melhor, eu era a sombra dele.
Certo dia o homem se meteu em uma discussão no trabalho. Era hora do almoço, no refeitório da empresa de construção todos almoçavam e riam debatendo um tema comum, futebol. A voz de um senhor grisalho que usava a camisa do Corinthians se sobressai...
_ O timão vai ganhar, porra!
_ Vai nada, cacete! _ rebate um homem magro de pele escura_ Aquilo num ganha nada...
_ Bora apostar? Cinquentão como o Corinthians ganha de três a zero...
Então o barbudo se pronúncia.
_ Eu aposto que o Palmeiras leva...
_ Tu vai apostar o que, barbudim? Tu não tem um tostão furado sequer _ Fala, um rapaz de forte sotaque nordestino.
Um cara gordo retruca.
_ Aposta a mulher dele, aquela gostosa.
_ Ah! A mulher dele eu já tenho, quero outra coisa_ responde o Corinthiano.
Depois que um colega de seu trabalho fez a insinuação de que meu possesso era corno eu insitei o barbudo dizendo que "um homem de verdade não pode ser desrespeitado diante de todos", indignado, o barbudo retrucou com xingamentos e a discussão verbal se intensificou até os dois homens partirem para a agressão física e tudo culminou em demissão. O meu amigo obsidiado perdeu o emprego. A partir daí o álcool passou a ser parte do seu dia a dia, para mim era ótimo pois quanto mais ele ficava embriagado mais eu podia manipula-lo.
Logo mais o meu possesso descobre que era traído de fato e isso resultou no fim do casamento, que já não estava indo bem. Sem a esposa por perto ficávamos em casa à sos, eu, o barbudo e um litro de bebida barata.
Não demorou muito para minha liberdade chegar. Foi numa noite em que esse homem bebeu e ficou mais fácil para mim dizer o que eu gostaria que ele fizesse. Estávamos no bar quando o ex colega de trabalho e pivor de seu divórcio, chegou para assistir a um jogo com a camisa do clube rival ao de meu possesso. Foi assim que a confusão começou. Naquela noite o IML contou sete mortos dentre eles o barbudo amigo meu.
Lembro me de que no último suspiro do homem que eu o acompanhava ele se deu conta da minha presença então eu tive consciência da minha existência. Foi aí que deixei de ser um kiumba para passar a ser um exu, um indivíduo consciente e autônomo.
Eu estava no canto do esquerdo do bar, havia sangue nas paredes, no chão e também no teto. Me ergui e olhei diretamente nos olhos do homem barbudo, ele me olhou de volta tentou puxar o ar para seus pulmões mas a morte o impediu.
Pessoas estranhas iam e viam passando na porta do bar olhando a cena macabra. Umas aglomeravam do lado de fora, elas punham se de guarda sempre cochichando sobre o que havia acontecido ali, outras entravam e tiravam fotos dos corpos estendidos no sobre o piso do bar. Os curiosos, intrigados, observavam os feridos que choravam ou gritavam agonizando de dor enquanto seu sangue escorriam pelos buracos de bala do revólver trinta e oito.
Ali estava eu, sem entender nada, ouvi o barulho de sirene até que a polícia chegou meia hora depois. Logo depois veio a ambulância, os médicos etiquetaram cada um dos corpos mortos, aproveitei para ver o nome do meu possesso, acho que era, Cláudio, Carlos ou Camilo. Eu não sabia ler, então, não posso falar com precisão qual era o nome dele.
Por alguns dias fiquei ao seu lado sem saber o que fazer então eu acompanhei o corpo até o iml e vi a autópsia do meu falecido companheiro. Foi a primeira vez que observei os protocolos e ritos do pós morte e estive diante da finitude da vida terrena. Lá, me pus a observar as reações e comportamentos das almas encarnadas e das desencarnadas também. Era curioso perceber que os encarnados têm total entendimento de que a morte é um processo inevitável mas ainda assim eles recusam a aceitar a passagem.
As pessoas com vida observavam os corpos mortos de seus entes, choravam e lamentavam o fim da vida terrena, as almas também faziam o mesmo.
Tão logo, aparecia um Guialem, um encarregado astral que levava a alma dos desencarnados para outro plano. Alguns deles até tinham trato para consolar as almas inquietas, eles as instruam para que fizessem a passagem tranquilamente, outros simplesmente as levavam mesmo contra a vontade do falecido. Então os espíritos desapareciam diante de meus olhos.
Eu até entendo, a relação de apego entre as pessoas e seus entes, eu por exemplo, ainda me pego pensando no barbudo, gostaria de saber aonde está a alma dele. Aliás, gostaria de saber seu nome completo...
Mesmo depois de muito tempo já se ter passado visitei o iml na esperança de descobrir seu nome escrito em algum lugar. Procurei ele pelo cemitério público e lá achei sua cova mas não havia lápide ou sepulcro, pois, destruí tanto a vida do homem que ele acabou sendo enterrado numa vala comum. Ninguém foi reclamar seu corpo, não houve enterro, velório ou sepultamento. O homem morto foi esquecido, pela família e, aos poucos também foi sendo esquecido por mim.
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