*
Marisa retornou no dia seguinte, nervosa, deixando Cíntia aos cuidados da sogra. Ela encontrou seu pai na frente da casa, recolhendo as folhas.
– Posso saber que papelão foi aquele ontem? – Ela cruzou os braços. – E por que o senhor não atendeu às ligações do Maurício? Poxa, ele só está tentando se aproximar!
Custódio ignorou-a, passando por ela com a vassoura em mãos, a fim de pegar um saco de lixo na área elevada.
– O seu filho mais novo, que mora em outro país, vem fazer uma visita, e é assim que é recebido? – insistiu ela. – Com frieza?
Custódio sacudiu o saco plástico, tentando abri-lo.
– Ah, você viu. – Dando-se por vencido, ele sentou-se na área. – Ele está namorando uma moça de lá, com um nome que eu nem consigo pronunciar.
Marisa aproximou-se e tomou o saco plástico de suas mãos. Ela encontrou a ponta colada e o abriu, sacudindo-o no ar.
– Logo ele vai casar – prosseguiu ele –, vai ter filhos americanos e conseguir o visto permanente... E vai acabar ficando lá de vez.
– E qual é o problema nisso? – Ela se sentou ao seu lado. – Devemos torcer pelo sucesso dele.
– Você não entende. – Ele meneou a cabeça. – Eu quero a minha família reunida... Eu preciso que seja assim.
Marisa estudou seu rosto, assumindo um ar preocupado.
– Está tudo bem, pai? O senhor sabe que pode me contar o que for, não é? Estou aqui para cuidar do senhor. Eu sei que agora tenho um bebê... – Ela apertou sua mão, sentindo-a estremecer. – Mas o senhor não vai ficar desamparado, garanto que não.
Vacilante, Custódio pousou a outra mão sobre suas mãos unidas, engolindo em seco diversas vezes. O conflito que se travava em seu interior era quase visível e estava a ponto de tragá-lo. Marisa abriu a boca, porém ele meneou a cabeça, elevando os olhos para a sete-copas.
– Está vendo, lá em cima?
Marisa acompanhou seu olhar até o topo da árvore.
– A sétima copa está quase formada – declarou ele, engolindo em seco.
– Por isso o nome?
– Sabe, um amigo me disse que quando a árvore alcança a sétima copa... – Ele puxou o ar, apoiando a mão no piso. – Eu...
Marisa voltou-se para ele, esperando pela conclusão. Ela estudou seu rosto abatido.
– Não é nada. – Ele fez um gesto de dispensa. – Bem... Acho que terei mais trabalho com as folhas, só isso.
– Por que o senhor não considera cortá-la? Damião poderia ajudá-lo.
Custódio demorou o olhar sobre a filha.
– Não – disse por fim. – Nem pensar.
Ele se levantou e retomou a tarefa. Derrotada, Marisa foi ajudá-lo. Eles prosseguiram na limpeza da fachada em silêncio. Custódio, entretanto, ponderava as palavras da filha.
Durante uma pausa, ele entrou na casa para servir-se de um pouco de café. Enquanto bebericava da xícara, sua atenção recaiu sobre o telefone vermelho. Foi inevitável que ele abrisse um sorriso ao lembrar-se de quando o havia consertado, vinte anos antes.
O pequeno Maurício encontrara seu pai à mesa da cozinha e ficou ao redor, sondando enquanto ele trabalhava. Na ocasião, Custódio o colocara no colo e explicara o que estava fazendo. Quando terminou os ajustes no telefone, Maurício ofereceu-se para testá-lo. A lembrança sobreveio como um alento para Custódio, como um doce afago em seu espírito amargurado. Naquele dia, Maurício declarou que vermelho era a sua cor preferida.
Custódio pousou a xícara na pia, decidido a recomeçar. Quando seu filho voltasse a tentar uma aproximação, ele iria acolhê-lo e agir de forma apropriada, e certamente não deixaria de expor o vazio que sua ausência lhe causava. Reconfortado por esse pensamento, Custódio voltou para fora, a fim de ajudar Marisa.
E assim, a tarde avançava.
Marisa era quem estava mais próxima da casa quando o telefone tocou. Ela sentiu uma pontada no peito, como um presságio, acompanhada por um calafrio. Apenas um seleto grupo de pessoas tinha acesso àquele número.
– Estou ligando do celular de um rapaz – explicou uma voz urgente, carregada de pesar. – Este número está salvo como contato de emergência, eu não consegui desbloquear. Lamento informar... Houve um acidente. Dois rapazes foram encontrados dentro de um carro...
A confirmação de que se tratava de Maurício veio quando foi citado seu moletom vermelho e a foto de um casal de bailarinos na tela bloqueada do celular. Marisa sentiu faltar-lhe o chão, temendo que o telefone caísse de suas mãos, porém obteve forças para anotar as informações que o homem lhe passava. Custódio soube que havia algo de errado e adentrou a cozinha, ficando inconsolável ao receber a notícia. Marisa cuidou de tudo, deixando seu marido em companhia do pai.
Logo, a família e os amigos estavam reunidos para despedir-se dos jovens.
– A última coisa que eu fiz foi brigar com ele... – lamentava Custódio, entre soluços, abatido. Ele se debruçava sobre o caixão onde jazia Maurício, recusando-se a deixá-lo. A expressão do jovem era serena, como se ele estivesse dormindo.
Marisa abraçou seu pai, incapaz de dizer algo que pudesse consolá-lo, e eles choraram juntos. Os dois rapazes estavam sendo velados no mesmo local. As famílias e conhecidos de ambos faziam fila para demonstrar seus pêsames.
Marisa entregou Cíntia para sua sogra e conseguiu convencer seu pai a sentar-se. Ela saiu para buscar um pouco d'água e encontrou-o agitado quando retornou.
– É tudo culpa da sete-copas. – Ele segurava com força os braços de um homem. – Eu havia sido alertado, mas não dei ouvidos. Eu sei que você tem uma no seu quintal. Corte-a enquanto é tempo – dizia ele com os olhos esbugalhados. – O filho do Sérgio também morreu, e ele tem uma em casa... Não pode ser coincidência.
Marisa tinha dificuldades para avançar por entre a multidão e constantemente era detida por aqueles que queriam dar-lhe seus sentimentos. Quando ela conseguiu chegar até o pai, ele já havia espalhado para muitos a respeito da árvore, causando constrangimento e estranheza a alguns, enquanto outros acataram seu ponto de vista, dando-lhe crédito.
– Acho que não é bom o senhor ficar falando essas coisas. As pessoas têm o direito de ter o que quiserem.
– Não quando é algo prejudicial. Vou alertar o quanto eu puder, Marisa. E você também deveria.
Ela achou por bem não contrariá-lo. Porém, quando Custódio ficou agitado demais, ofereceram-lhe um calmante.
Desse modo, o dia avançou. Embora cansadas, as duas famílias mantiveram-se firmes no propósito de velar por seus entes queridos. Após o enterro, Marisa e Damião levaram Custódio para casa, ainda que ele resistisse. Seu desejo era passar a noite no cemitério.
– E pensar que o número de emergência dele era o telefone fixo daqui de casa... – Custódio olhava para o alto, em busca de forças.
Marisa tocou seu ombro com ternura.
– É porque ele sabia que, se algo acontecesse, o senhor sempre estaria aqui para ele, pai.
– Nem sempre. – Enterrando o rosto nas mãos, ele chorou amargamente, apoiado na mesa. Marisa afagou suas costas.
– O Maurício amava o senhor, pai...
Sufocado em meio às lágrimas, Custódio puxava o ar com força. Do lugar onde estava sentado, ele avistou a sete-copas, e sua expressão angustiada foi substituída pela raiva. De um ímpeto, Custódio se levantou e avançou até ela.
– O que o senhor vai fazer? – Marisa e Damião trocaram olhares preocupados. Levantando-se, ela correu atrás do pai.
Custódio deteve-se junto da árvore, erguendo o olhar para ela e percorrendo toda a sua extensão, enquanto proferia xingamentos.
– Maldita! Eu devia tê-la cortado, como meu filho sugeriu! – Ele chutou seu tronco. – Pois eu vou buscar um machado agora mesmo!
– Não faça isso, pai!
Damião colocou Cíntia no chão às pressas e correu ao encontro deles.
– Não, seu Custódio! O senhor está cansado, deixe...
– Agora vai me dizer o que devo fazer? Pateta!
Alarmado, Damião fitou a esposa, que correu para pegar Cíntia.
– Vou arranjar um motosserra, e eu mesmo posso cortá-la para o senhor.
Damião fez grande esforço para convencer o velho a voltar para dentro. Custódio obedeceu afinal, embora relutante, e saiu chutando pedrinhas pelo caminho. A raiva e o ressentimento deram lugar ao choro. Marisa foi alcançá-lo na área, com a filha nos braços, e incentivou-o a sentar-se. Custódio aquiesceu, arrasado, e Marisa ocupou o lugar a seu lado, afagando seu ombro. Cíntia se esticou e puxou uma mecha de cabelo do avô. Em meio à dor, Custódio conseguiu abrir um sorriso.
- Você é a única alegria que me resta, mocinha. – Ele tocou sua pequena mão, e mais lágrimas brotaram. – Dentre todos da casa, eu sou o mais velho... Jamais esperei que o Maurício pudesse ir primeiro.
Marisa lançou um olhar para a árvore, enfim compreendendo suas razões. Ainda diante dela, Damião estudava a melhor maneira de cortá-la.
– Era isso que o senhor estava querendo me dizer naquele dia – concluiu.
Ele assentiu. A família permaneceu algum tempo mais, então chegou a hora de ir. Damião acomodava Cíntia em seu bebê conforto, no banco de trás do carro, enquanto Marisa e o pai se despediam.
A mulher arrastou-se até o carro, fitando a criança antes de acomodar-se. Durante o trajeto, ela estava distante, observando a paisagem com o braço apoiado na janela e a cabeça descansando na mão. As árvores que via pelo caminho traziam-lhe as recordações que tentava suprimir. Preocupado, Damião a olhava de esguelha vez ou outra.
– O que ele te disse quando estavam se despedindo? – indagou.
–Só reforçou que eu preciso espalhar o que aquela árvore supostamente é capaz de fazer.
– Ele acha mesmo que ela é a culpada? Quero dizer, realmente, é uma fatalidade, todos sentiremos falta do Maurício, mas...
– O que eu sei é que meu pai está me escondendo alguma coisa. Mas estou cansada demais para pensar a respeito. – Ela soltou um suspiro. – E com certeza não tenho energia para forçá-lo a falar. Tudo que eu quero agora é cair na cama. – Sua voz ficou embargada. – Você reparou como a minha família está se desfazendo? Logo não vai sobrar mais ninguém. Estou me sentindo tão... sozinha...
Damião estendeu a mão e segurou a dela.
– Você não está sozinha. Eu estou aqui, e tem uma bebezinha ali atrás que depende de você.
Marisa observou a filha, que dormia, com os lábios trêmulos.
– Ela nunca vai conhecer a avó, nem o tio...
Damião refletiu, de olho no trânsito.
– Não sou muito certo com as palavras, mas... Você deve saber que aqueles que se foram não o fizeram por escolha. Eles amavam você e, se pudessem, com certeza prefeririam ficar.
– Obrigada. – Ela apertou sua mão com afeto. – Eu precisava ouvir isso.
Assim, ela recostou a cabeça em seu assento e fechou os olhos, permitindo que mais lágrimas escapassem. Damião beijou sua mão, então a soltou, para segurar o volante.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro