Vergonha, sangue e memórias
Quando acordo o lado de fora já está iluminado, na medida do possível. O inferno em si é escuro, mais do que outras dimensões, mas ele ainda tem horários em que é possível enxergar o que tem a sua frente, e horários em que não é.
Estico meus braços para o alto e deixo minha coluna expandir para me alongar, mas sinto muita dor no corpo e logo paro. Minha cabeça também dói, mas eu não lembro muito bem o porquê disso. Tiro a coberta de cima de mim para poder me vestir com algo, já que estou nua, o que não é do meu costume também, tudo está muito estranho essa manhã. Me sento na cama olhando ao meu redor, o meu mestre não se encontra no quarto, mas acredito que logo ele vá voltar, então melhor eu me apressar.
Ao me levantar e me virar para a cama para arrumá-la noto uma poça de sangue no lençol, sangue vermelho vivo, humano. As memórias da noite anterior parece bater de uma vez só em mim, fazendo com que todas as sensações vividas e pensamentos que se apossaram de mim sem minha permissão retornem com tudo.
Eu sou fraca
Eu sou incapaz de me ajudar
Eu sou só uma serva
Eu sou dele
Não minha
Dele
Me deito novamente na cama, ansiando por um conforto que apenas o cobertor e as lágrimas são capazes de dar, eu as derramo aos montes, como duas cachoeiras cujo ritmo eu não posso ditar. O único barulho que ás vezes soa pelo quarto é meu estômago reclamando da falta de comida, minha última refeição havia sido o achocolatado tomado na biblioteca.
Não tenho a menor noção de quanto tempo passou quando o demônio entra no meu quarto segurando uma bandeja com alimento.
- Imaginei que se eu fiquei com fome você também deve estar. - Ele se sentou ao meu lado e colocou a bandeja na cama. Com suas mãos livros ele as esticou para me tocar mas eu me encolhi com a aproximação. - Você não pode ficar levando as coisas aqui tão seriamente. Torturas são comuns. Além disso, foi culpa sua.
- Como pode ser culpa minha? - Olhei para ele com raiva.
- Você me diminuiu. Me tratou como nada. - Ele se levanta irritado, o que faz eu me encolher ainda mais, torcendo para que o cobertor seja capaz de me proteger de sua fúria. - Porra, você não pode sair falando o que quer.
- Mas foi o que você pediu. - Lágrimas escorriam pelo meu rosto enquanto eu me sentei para gritar com ele, transformando todo o meu sentimento em ódio do ser a minha frente.
- Mas eu avisei que se eu não gostasse você ia sofrer as consequências. - Ele gritou de volta. - Ainda fui bom em deixar isso claro. Deveria me agradecer.
- Agradecer por me machucar? - Abaixei minha voz e voltei a me encolher embaixo da coberta. - Isso é desumano.
- Para minha sorte eu sou um demônio, esqueceu? - Ele tem a insensibilidade de sorrir para mim.
- Sim, um demônio por completo. Sem coração, sem compaixão, sem ser capaz de amar ou de cuidar de um ser cuja responsabilidade foi dada a você. - O olho uma última vez.
- Sim, é exatamente isso que sou. - Ele se aproxima de mim com raiva, quando ele levanta a mão eu me encolho instintivamente, mas ele bate na bandeja com o alimento a jogando do outro lado do quarto. Sua mão vai em seguida para o meu pescoço, me enforcando, me deixando mais desesperada e com mais ódio. - Você não sabe nada sobre mim e sobre o que sou capaz de fazer com você.
Ele abre a mão que não está em meu pescoço e um livro caí em sua mão, o mesmo que ele havia me dado na biblioteca antes, "Zoan".
- Leia e veja quem eu sou. - Ele me joga na cama e em seguida o livro em cima de mim. - Vai ficar sem comida até terminar a leitura.
ღღღ
Dia 1
O demônio veio me buscar hoje, e teve audácia de atrapalhar meus planos para o dia, um insolente, brutamontes e sem respeito nenhum pela etiqueta humana. Tenho certeza que não nos daremos nada bem.
Dia 3
Não aguento mais a presença dele. Tudo dele me enoja, se achando um ser superior quando é só um demônio do inferno, nem é da realeza como eu. Esse tal de Kansk teve a capacidade de me dar um soco hoje, meu belo rosto com certeza ficará inchado por uns dias.
Dia 5
Pela primeira vez ele parece digno de ter um servo como eu. Disse que hoje nós iríamos punir algumas pessoas que não estão cumprindo certas leis. O enxergo agora como um homem e não como um demônio.
Dia 10
Ele permitiu que eu mesmo punisse algumas pessoas nesses últimos dias, isso nos fez ficar mais próximos, eu diria que até amigos nos tornamos. Estou ansioso pois ele disse que nessa semana teremos uma punição especial para fazer.
Dia 27
Eu não aguento mais viver nesse inferno. Desde que Kansk começou a me punir por achar que estou sendo um mau servo meus dias se tornaram puro terror. Nunca sei se serei espancado, violado ou qualquer coisa que aquele cérebro tão criativo decidir fazer comigo. Vivo com medo agora. O pior de tudo é que achei que fossemos iguais, mas eu nunca faria isso com um semelhante meu.
Dia 50
Nós conversamos um pouco hoje, eu preciso saber o porquê dele fazer isso comigo, onde foi que eu errei com ele? Ei a resposta dele:
- Pelo mesmo motivo que você chicoteava seu povo em praça pública. Porque eu posso.
Depois disso eu obviamente levei um surra.
Está certo que Zoan sofreu muito durante esse período de servidão, mas sabendo que ele maltratava seu próprio povo estou com um pouco menos de pena do que antes. Mas mesmo assim saber o que ele passou na mão de Kansk me enche de medo.
Dia 83
COMO ELE OUSA! Esse verme me deixou sem comer por 10 dias, me dando apenas água e vitamina na veia para que eu não morresse. Tudo para que eu sentisse o desespero da fome por mais tempo que um humano é capaz. Isso é um absurdo, eu sou um príncipe, eu sou um nobre. Não mereço isso.
Dia 100
Pela primeira vez em meses Kansk me tratou bem, ele me deu banho com carinho e me deu comida na boca já que eu não sinto mais vontade de me movimentar, é isso que chamam de depressão? Esse vazio absoluto na alma, esse buraco quanto a tudo. Me sinto morto mesmo que meu coração siga batendo
Dia 133
No último mês nada aconteceu, eu sinto que pode ser uma calmaria antes da tempestade mas uma parte de mim acredita que a vida pode começar a ser boa daqui para frente, acho que vou me agarrar a essa esperança.
Dia 238
Pela primeira vez eu e Kansk fizemos amor. Não foi o sexo bruto e doloroso a que eu já estava acostumado, ele me deu prazer e não se importou só com ele. Desde que ele começou a cuidar de mim eu venho ficando mais forte e mais positivo com os próximos anos, esse primeiro foi intenso.
Dia 378
Tudo uma enganação, Kansk me tratou bem para poder me colocar em uma espécie de rinha, me jogando em uma dimensão sem dono e que só os piores seres, sem racionalidade nenhuma, vivem. Eu quis morrer durante os dias que estive lá, quando voltei Kansk falou que eu poderia, era só comer uma fruta roxa que crescia lá, mas eu preferi não comer nada durante os três dias, burro!
Dia 396
Eu não sou ninguém. Sou só um saco de pancadas para aquele verme. Não sei se um dia voltarei a ver minha casa, minha terra e família. Não sei se conseguirei aguentar mais um dia aqui. Quem dirá os séculos que faltam.
Dia 28.304
Estou a três dias sem conseguir segurar o que meu corpo defeca. Literalmente saí em qualquer lugar e qualquer hora. Com tanto tempo sendo usado de maneira indelicada, parece que meu corpo simplesmente desistiu.
Dia 40.824
Não consigo mais viver normalmente. Meu corpo está cheio de cicatrizes e não consigo mais me olhar no espelho sem lembrar do que um dia eu já fui. Um homem forte, destemido e poderoso. Eu era temido. Hoje sou só uma sombra do que era.
Dia 69.294
Aquele ser de merda acaba de se tornar príncipe. Mês passado tivemos uma grande festa em sua homenagem onde os outros príncipes foram. Eu conheci todos, de maneira muito íntima. Além de ser usado por Kansk agora sou um ser compartilhável também. Nunca achei que passaria por tal humilhação.
Dia 93.294
Eu definitivamente não sei como estou vivo. Acho que o ódio, primordial e puro, é o que me move todos os dias. Isso e as poucas memórias que tenho do mundo lá fora, muitas esquecidas pelas pancadas que levei na cabeça, eu acho. Mau consigo me lembrar dos primeiros dias no inferno, tudo parece um borrão.
Dia 103.294
Eu acho que vou me matar. Kansk já me mandou tantas vezes para um domínio sem dono, um local onde os seres mais bestiais estão e que agem sem consciência nenhum. Sei que lá tem uma planta que pode me ajudar, ela mata na mesma hora e nasce em um arbusto verde, é a única coisa com cor lá, ele já me falou dela mas eu nunca a encontro. Tenho certeza que ele me jogará lá de novo, e quando acontecer continuarei procurando.
Dia 164.024
Eu nunca tive coragem para me matar. No final das contas, acho que agora gosto do que está acontecendo, mas me sinto confuso. Quando Kansk me tortura não é só dor que eu sinto. Teve vezes que cheguei a ter um orgasmo, mas não acho que isso seja normal, né?
Dia 174.237
Estou apaixonado por Kansk, não sinto mais o rancor de antes e acho que agora entendo ele. Eu sou um ser insignificante e submisso, todo o meu ser pertence a ele e é assim que sempre deve ser. Será que assim ele me deixa ficar aqui ao seu lado depois? Sou capaz de tudo por ele.
Dia 182.500
Hoje é meu último dia no inferno. Faz meses que Kansk se distanciou e não me procura mais para tortura ou sexo, eu gostava tanto e agora me sinto um lixo humano. Não mereço nada nem ninguém. Preciso de alguém para suprir minhas necessidades, sem Kansk como poderei sobreviver?
Agora eu sei quem é o meu mestre e o que eu devo fazer.
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