CAPÍTULO 1
Era o dia do funeral dos que pereceram na Batalha de Arvedui e o mundo sombrio estava ainda mais soturno do que o normal.
Vários elfos se reuniram em frente à pira montada no centro da temida Floresta Sombria.
Um número reduzido de elfos escuros morreu naquele dia, mas ainda assim todo o reino fez questão de prestar as últimas homenagens aos bravos guerreiros e sacerdotes que deram suas vidas para evitar que um elfo branco tomasse o trono escuro.
Entretanto, a maior dor, o luto mais profundo, era pela perda do seu soberano, o temido e amado Rei Turon, que morreu sem ter como se defender ao passar todos os seus poderes para que a neta Ani pudesse derrotar Ereinion.
Infelizmente, não havia um corpo para se despedir, impedindo a execução adequada dos rituais fúnebres. O que tornava o sofrimento do clã ainda mais intenso.
Enquanto isso, há milhares de quilômetros dali, em Arvedui, o comandante Thalion estava atrás da parede de escudos formada por seus soldados. Ao seu lado se encontravam os fiéis companheiros Daena e Faramir.
Os três observavam a movimentação do exército inimigo.
Estavam defendendo Arvedui da invasão de seus antigos parceiros, apoiadores do falecido Rei Ereinion, que queriam recuperar os corpos dos seus entes e, de quebra, retomar o poder.
Havia muitos problemas que precisavam ser resolvidos nos dois reinos, mas nada poderia ser feito enquanto não aniquilassem os inimigos declarados. Aqueles que não se conformavam com a morte dos dois reis e que se revezavam tentando assumir os tronos que pensavam estar vazios.
- Eles estão em menor número. - Observou Daena.
- Será que vão insistir na luta mesmo assim? - Questionou Faramir.
- Não tenho ideia. - Respondeu Thalion forçando sua visão. - Quem sabe o que se passa na cabeça de seus líderes?
O castelo de Arvedui ficava no pico de uma alta colina na Serra da Bodoquena . De onde estavam era possível ver uma boa quantidade de guerreiros agrupados morro abaixo.
Seu olheiro havia calculado que o exército oponente deveria ter entre duzentas e trezentas cabeças. Todos guerreiros que um dia foram comandados por Thalion, antes dele ser torturado e enviado para a casa de Hanna.
Dentro das muralhas do castelo encontravam-se quase mil elfos, brancos e negros, prontos para matar qualquer um que se atrevesse a forçar a entrada. E isso era apenas uma parte do contingente, ⅔ estavam defendendo o reino dos elfos escuros de ataques semelhantes.
- Eles terão que passar pela barreira mágica e depois pelos dispositivos de segurança de última geração, tudo isso para dar de cara conosco. Seria muita imprudência.
- Nós conseguimos fazer isso, Daena, quando viemos resgatar Ani. Por que eles não podem também?
- Porque nós tínhamos vários sacerdotes poderosos do nosso lado, Thalion. Incluindo o mais forte de todos, o falecido Rei Turon Dokkalfar. E tínhamos você, que foi quem implementou todas essas normas de segurança e conhecia cada falha do sistema.
- Daena não deixa de ter razão. - Concordou Faramir. - Os sacerdotes que apoiavam Ereinion estão presos aguardando execução e os outros estão aqui ou no Reino Sombrio.
- Bem, de qualquer forma, é melhor estarmos preparados. Não gosto de subestimar ninguém.
Um guarda se aproximou.
- Comandante, o rei e a rainha o aguardam para uma reunião.
O comandante franziu o cenho. Alguma coisa estava acontecendo para pedirem que ele deixasse seu posto num momento como aquele.
- Certo. Faramir, Daena: fiquem alertas. Qualquer movimentação suspeita me comuniquem na hora. - Apontou para o walkie talkie que carregava na cintura.
- Sim, Senhor. - Os dois responderam ao mesmo tempo.
"O que faria a rainha se teletransportar no estado em que se encontra?" Pensou Thalion.
Com a morte de Turon, a única pessoa capaz de assumir o trono sombrio era Lady Allania, tia de Ani, devido às características que a apontavam como descendente direta dos Originais: olhos e cabelos vermelhos, pele parda e muito poder.
Dessa forma, dias antes da cerimônia fúnebre, ela foi coroada Rainha Sombria.
Apesar do luto, os elfos escuros comemoraram a coroação com muita festa, bebidas e orgia, pois a rainha foi o braço direito do irmão durante séculos, com o prestígio de ser uma sacerdotisa dotada de muita força e inteligência.
Todavia, quando sua gravidez veio a público muitos ficaram descontentes ao descobrirem que o pai da criança era o elfo branco Cirdan, filho do abominável Ereinion. O casal havia se apaixonado no período em que a fêmea esteve aprisionada no reino branco.
Assim como aconteceu com Lady Allania, Cirdan foi coroado Rei de Arvedui por linhagem de sucessão. Desde então, os dois buscavam meios de unir os reinos e resolver a pilha enorme de problemas que o antigo monarca criou.
Muitos boatos se espalharam sobre o que aconteceu na Sala Real daquele fatídico dia e tudo foi piorado devido ao sumiço de Ani.
Assim que voltou a si e percebeu que o avô havia sido vítima do último golpe de Ereinion, Ani o abraçou e o sacudiu como se, de alguma forma, pudesse acordá-lo do sono da morte. Porém, assim como aconteceu com Ereinion, o Rei Sombrio começou a se desintegrar e virou pó em seus braços.
Isso, somado à última transformação que sofreu tornando-se uma elfo de verdade, fez com que seu corpo fosse sobrecarregado de estímulos que nenhum ser vivo normal seria capaz de suportar de uma única vez.
Ani entrou em colapso ali mesmo na sala amarela.
Sua estrutura emocional se desestabilizou de tal forma, que foi necessário se afastar de todos e, em um lugar longe de tudo e perto de nada, ela se exilou a fim de se recuperar e se equilibrar.
Apenas a presença de seu companheiro Cam era tolerada.
No início, Daena e Faramir seguiram com eles, mas toda a adrenalina causada pela batalha de Arvedui produziu uma tensão tão grande aos dois, que eles mal puderam esperar para estarem sozinhos e extravasar tudo... na cama.
Era constrangedor para qualquer um ficar a menos de um quilômetro de distância deles e, dessa forma, foram liberados para ir para onde pudessem atender às suas necessidades, sem incomodar ninguém.
O afastamento da princesa foi o suficiente para que muitas especulações se espalhassem pelos quatro cantos do mundo e ela passasse a ser vista, por alguns, como uma pessoa perigosa que precisava ser abatida.
O mundo havia mergulhado na loucura e ninguém sabia exatamente quem iria colocar as coisas em seu devido lugar, ou até se isso seria possível.
Durante o caminho para o interior do castelo, Thalion tentava adivinhar o que poderia estar acontecendo.
"Talvez eles tenham chegado a um consenso sobre o que fazer com os rebeldes." Concluiu.
Ao entrar na Sala Real, o guerreiro fez uma reverência e aguardou.
- Levante-se, comandante. - Disse Cirdan.
Thalion se recompôs.
Acenou com a cabeça para Zuri, que estava a postos ao lado da Rainha Escura.
O Rei tornou a falar:
- A qualquer momento receberemos a visita da Rainha das Fadas. Não sabemos o que a traz aqui. Precisamos que esteja preparado.
Aquilo era realmente estranho. Em seus mais de duzentos anos de vida não se lembrava de nenhuma situação parecida.
Era fácil perceber a tensão na sala.
De repente, uma luz intensa surgiu do lado de fora da parede de vidro, invadindo a sala e cegando a todos.
Com a mão esquerda, Thalion puxou a cimitarra presa às suas costas.
Zuri também assumiu posição de defesa.
Em sincronia, os dois se aproximaram da luz que estava se transformando em um túnel através do vidro.
Então, inúmeros seres pequenos invadiram a sala, voando.
Eles mantinham uma formação de círculos concêntricos ao redor de uma única fada, que Thalion deduziu ser a rainha.
Os recém-chegados pararam a uma boa distância dos elfos.
A Rainha das Fadas atravessou a formação.
- Obrigada por me receber tão prontamente. Faz mais de um século que não retorno para essa dimensão.
Lady Allania se aproximou:
- Seja bem-vinda ao nosso reino, Islodel. Ficamos felizes em acolhê-la. A que devo a honra dessa visita?
A fada riu.
- Ora, vamos direto ao ponto, então? Isso é bom, não tenho desejo em me demorar por aqui.
- Queremos que fique a vontade. - Incluiu Cirdan - Como minha companheira falou, é bem-vinda ao nosso lar.
- Venha sentar-se conosco. Que tal um pouco de chá gelado? - Perguntou Lady Allania tentando amenizar seus modos rudes.
Os três se deslocaram para os sofás, com seus comandantes ao redor.
- Pelo que vejo, vocês são os novos reis?
- Sim, fomos coroados a poucos dias.
A fada, apesar de não alcançar cinquenta centímetros de altura, possuía uma presença gigantesca.
- Vejo que carrega uma criança. - Apontou para a barriga da Rainha Sombria. - Ele é o pai?
- Claro que sim. - Lady Allania pareceu ofendida. - Nos acasalamos antes da coroação e firmamos nossos votos perante a Grande Deusa.
Islodel se ergueu de supetão, voando direto para a fêmea. O que acabou provocando reações instantâneas em todos na sala:
Thalion e Zuri cruzaram as espadas entre as duas rainhas, enquanto apontavam armas de fogo com a outra mão para os soldados fadas.
Os soldados fadas, por sua vez, apontaram as suas mãos na direção dos comandantes e bolas de fogo surgiram nelas.
Com uma rapidez espantosa, Cirdan puxou sua amada para trás dele.
A rainha fada interrompeu seu percurso e fez sinal para que seus guardas se acalmassem.
-Desculpem-me. Posso prometer que não tenho intenção de causar mal a vocês.
Os dois comandantes continuaram na mesma posição.
Suspirando, Islodel explicou:
-Vim aqui em nome da Deusa. Ela me pediu para abençoar essa criança que está para nascer.
A Rainha Sombria debochou:
- Você tem um canal direto com a Mãe?
- Sempre tive, pois nunca me afastei dos seus propósitos. E vocês também teriam se não estivessem com suas almas tão poluídas.
- Cuidado com o que fala, senhora! Não vou admitir que ofenda a minha companheira em nossa própria casa. - Esbravejou Cirdan.
- Nossa, vocês são muito raivosos! Deve ser por conta desse monte de água suja e carne podre que consomem.
"Isso não está caminhando nada bem." Pensou Thalion antes de ouvi-la continuar.
- Estou dizendo: vim em paz. Minha única missão é abençoar esse novo espírito que aguarda para nascer e depois vou embora imediatamente. - E fungando o nariz, completou - Tudo aqui fede.
A Rainha Sombria se aproximou. Sua expressão raivosa fez o coração do guerreiro disparar, mas foi o Rei que se pronunciou:
- Por que meu filho precisa da sua benção?
- A Deusa apareceu em meus sonhos e ordenou que o abençoasse. Dessa forma, ele será um verdadeiro representante de todas as raças élficas e poderá transitar entre nossas dimensões livremente.
- Mas no que isso pode ser útil para ele? - Continuou Cirdan a indagar, desconfiado.
- Não cabe a mim questionar os desígnios da Mãe. Vocês esqueceram nossos costumes?
Segundo a tradição élfica, era uma honra receber uma benção, que deveria ser aceita com alegria em sinal de agradecimento.
-Abaixem as espadas! - Ordenou Lady Allania. - Não serei eu a desrespeitar as escrituras, mas escute-me, Islodel, se alguma coisa acontecer com minha cria a partir de agora, eu te matarei lentamente com as minhas próprias mãos.
A rainha fada bufou:
-Se não fosse pela Deusa...
Irritada pela falta de educação da outra, a fada se aproximou da elfo escura com as mãos estendidas.
Zuri se remexeu incomodada. Nem ela, nem Thalion estavam confortáveis com o que estava acontecendo.
O guerreiro não entendia como Cirdan poderia aceitar aquilo.
"Eu jamais permitiria que uma rainha esquisita se aproximasse da minha companheira com uma história sem pé nem cabeça como essa." Refletiu.
Assim que Islodel tocou a barriga de Allania, uma luz intensa cobriu as duas, cegando todos ao redor.
Em segundos tudo voltou ao normal, mas quando recuperaram a visão perceberam que a Rainha Sombria estava chorando.
Cirdan a pegou nos braços.
-O que você fez com ela? - Ele rosnou para a fada.
Mas Lady Allania chamou sua atenção segurando seu rosto com uma ternura anormal.
-Eu a vi, meu amor. A Mãe veio falar comigo.
Cirdan se assustou.
- Você tem certeza? Foi tudo tão rápido.
A rainha apenas confirmou com a cabeça, totalmente emocionada.
- Isso é uma grande honra, minha amada!
- Sim, é. Ela disse que o nosso bebê terá uma importante missão que definirá o futuro da nossa raça e devemos fazer o impossível para que ele cresça e cumpra o seu papel.
Horas depois que as fadas foram embora sem que mais nenhum conflito tivesse surgido, Thalion foi novamente convocado pelo casal real.
- Como está a situação fora das muralhas? - Cirdan inquiriu.
- Sob controle, Majestade. O exército inimigo não tem número suficiente para seguir com o cerco ou nos invadir. Será aniquilado se o fizer.
- Estou achando tudo isso muito estranho. - Ponderou o rei, coçando o queixo - Continue observando atentamente, eles devem ter um plano.
- Executem todos! - Bradou a rainha, surpreendendo aos que estavam na sala.
- Esposa... - Tentou começar o rei.
- Não seja condescendente, Cirdan. Eu estive com a Deusa, sei o que tenho que fazer. - E depois de uma pausa repetiu - Executem todos!
- Desculpe-me, Majestade, mas não vejo necessidade disso. Eles não têm chances contra nós. Bás perceberá isso e levará seus seguidores embora. Se não o fizer, vamos lidar com o que vier. - Contemporizou Thalion.
- Serão mortos antes que sequer tenham a chance de tentar!
Apesar da entonação raivosa, a Rainha Escura transparecia calma controlada. O que a tornava ainda mais apavorante. Nem mesmo o pequeno arredondamento da barriga, que indicava uma gravidez entrando em seu segundo trimestre, fazia com que os outros tivessem um sentimento mais afetuoso com ela, como acontecia com as outras fêmeas gestantes.
A Rainha Allania era toda escuridão e sombras. Tão sinistra quanto o seu falecido irmão.
Thalion olhou apreensivo para o rei. Ele era um elfo branco, não receberia ordens de uma Rainha Sombria. Ainda mais uma ordem descabida daquela.
Cirdan manteve o rosto impassível e não se manifestou.
"Outra vez está deixando tudo por conta da sua fêmea." O comandante não gostou da leitura que fez disso.
Limpou a garganta, antes de tornar a falar.
- Não quero parecer impertinente, porém preciso atentar para o fato de que eles têm direito a um julgamento justo.
Zuri se manifestou pela primeira vez desde que entraram naquela sala:
- Eles serão condenados de qualquer maneira, comandante. Nós não fazemos prisioneiros.
O guerreiro se recusava a acreditar no que estava ouvindo, mas não se sentia tão surpreso.
"O que mais poderia esperar de uma rainha e uma guerreira escura?" Constatou consternado.
- Entendo que deve ser penoso pra você - falou o Rei - afinal há vários antigos companheiros seus do outro lado. Mas pense bem, Comandante Thalion, no motivo que levou os reinos élficos a manter, de todas, apenas essa lei criada por Apollion há tantos séculos atrás.
- A lei que rege que toda traição deverá ser paga com a morte do traidor. - Completou a rainha.
Ele respirou fundo e balançou a cabeça.
- Eu sei que é difícil manter seres imortais, dotados de força e magia, presos.
Mais uma vez Zuri se pronunciou.
- Eles sempre escapam e procuram vingança.
Thalion estava começando a entender toda a resistência de Ani em aceitar como as coisas eram feitas por ali. Estava muito resistente em assassinar elfos que não ofereciam riscos diretos ao Reino.
Porém, era um soldado.
Cabia a ele obedecer e não questionar.
Nunca teve problemas com isso.
Até aquele momento.
Ele cumpriria aquela ordem.
Mesmo que assassinar seus parceiros pudesse rasgar sua alma, ele cumpriria aquela ordem.
Contudo, antes mesmo de fazer o que era exigido dele, sentiu que alguma coisa havia mudado em seu interior.
Algo se quebrou no momento em que visualizou a atrocidade que iria cometer. Algo que, talvez, pudesse pôr em xeque sua lealdade cega à coroa.
- Cumprirei o que me pedem, Majestades, mas espero que estejam cientes de que nada bom pode resultar de uma carnificina.
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