Sempre existe uma primeira vez
Sem sono e com as feridas latejando, indicando que as ervas falharam em alivia-las, Selene desistiu de dormir e, mesmo odiando os manuscritos sobre magia, pegou um dos encadernados pousado ao lado de sua cama.
No entanto, por mais que forçasse a visão, a leitura dos manuscritos antigos era difícil. A esfera flutuante acima de sua cama tinha pouca luz. A magia de trovão presa nela, que emitia fortes raios esbranquiçados quando cheia, estava quase apagada, provavelmente pelo passar do tempo não tendo sido recarregado para a iluminação não prejudicar o descanso noturno.
Largou o livro e puxou a bolsa trazida por Tristan, remexendo seu interior em busca de algo para distrai-la. Havia algumas peças para distrair, como cartas e jogos, mas precisava de uma segunda pessoa. Observou cada peça com curiosidade, desconhecendo a maioria.
Após a morte de sua Myra, seu pai a proibiu de gastar energia com tolices infantis e concentrar-se em ser tão poderosa quanto sua mãe foi. Era assim que considerava brinquedos, brincadeiras e conversas com outras pessoas de sua idade: perda de tempo e energia. Seus dias e noites eram para estudar e praticar magia, incansavelmente, sem pausas, sem alegria até que a magia lunar eclodisse.
E por mais que tenha se esforçado, sonhando agradar o pai e devolver ao castelo a felicidade e o amor, o poder que Selene tinha quando sua mãe vivia simplesmente cessou.
Pegou uma peça que despertou lembranças de Myra usando-a. Na ponta superior de uma pequena haste de madeira havia uma espécie de copo do mesmo material, na ponta inferior uma pequena corda de sisal conectando-o a uma pequena esfera amadeirada.
Com um sorriso saudoso, segurando a haste moveu a mão em movimentos que recordava para fazer a bola entrar no recipiente. Nas tentativas iniciais a bolinha batia na beira e saia, mas logo pegou o jeito e conseguiu o efeito, a cada vez comemorando efusivamente seu feito, esquecida de onde e em que estado estava.
— Não está velha demais para brincar com bilboquê?
O timbre grave a fez errar o alvo, a bolinha batendo no dorso de sua mão, enquanto seus olhos seguiam temerosos para a porta aberta. Estivera tão concentrada no brinquedo que não notou até a voz carregada de censura alcançar seus ouvidos.
Sem graça, rapidamente colocou o brinquedo na bolsa, presa no suporte ao lado da cama, e se alinhou, encarando a figura gigantesca parada a sua frente com surpresa e medo.
Raramente o via, sendo essas raras ocasiões um vislumbre dele saindo ou entrando na fortaleza, sempre seguido de perto por seus guardas. Mas naquele dia incomum, ele atravessou seu caminho por duas vezes e em uma delas foi para, surpreendentemente, salvar sua vida.
No entanto, apesar dele a ter protegido e levado para a ala médica, não esquecia a tentativa de mata-la após o casamento, nem muito menos a visão da ameaçadora espada com punho de corvo e o ódio palpável nos olhos negros.
Moveu a atenção para a cintura dele, engolindo em seco ao visualizar, como imaginou, a reluzente e afiada arma conectada ao cinturão de couro.
Ergueu o olhar para a esfera acima de sua cama quando a iluminação do quarto aumentou. A contenção mágica do tamanho de um pulso fechado flamejava. Fitou o Rei de Eszter, vendo as íris, antes pretas, brilhando em carmim. Estava focado na esfera de iluminação, a magia deixando-a vibrante como uma bola de fogo.
Fogo, o elemento mágico que ele usava em batalha. Tinha ouvido falar sobre isso, com palavras ofensivas através de seu pai, e com declarações elogiosas vindo de Tristan. Ambos tinham dito que quando em batalha o fogo queimava dele para a espada, tornando-a ainda mais mortífera. A magia do fogo dava a ele um aspecto ainda mais perigoso, quente e belo, admitiu Selene.
Engoliu em seco e sentiu as faces quentes quando o olhar dele recaiu sobre ela.
— Deveria descansar e não perder tempo com tolos brinquedos infantis — ele a reprovou com dureza.
Selene apertou o lençol entre seus dedos, aborrecida pela crítica, porém de seus lábios não saiu nenhuma queixa. Tinha anos de experiência com um rei prepotente e avesso a momentos de descontração.
— Necessita restabelecer suas forças e curar suas feridas — ele indicou. Por um instante Selene divagou que Cedric se preocupava com sua recuperação, que só a repreendia por desejar seu bem. Porém, ele estragou essa impressão ao acrescentar: — Assim que estiver curada, voltará as aulas de magia. Intensificaremos seus estudos e...
— Não!
A negativa pulou de sua boca antes que a controlasse, mas não se arrependeu de verbaliza-la. Estava cansada de reis mandando e desmandando em sua vida, seus passos e escolhas, mas, principalmente, estava cansada de aulas de magia.
— O que disse? — Cedric questionou surpreso com a abrupta interrupção.
Antes mesmo de ser coroado rei, ninguém nunca tinha o interrompido, assim como jamais se negaram a obedecer qualquer uma de suas ordens. Não seria aquela criatura miúda, com o corpo prostrado em uma cama, que ele só salvou por algum demônio atingir seus membros e protege-la, que iniciaria uma rebelião contra ele.
Brava por ele só se importar com as malditas, aborrecidas e inúteis aulas, Selene virou o rosto para o lado e cruzou os braços, ignorando-o.
O que piorou o estado de nervos de Cedric.
Fitou a jovem de longo cabelo loiro platinado, que foi obrigado a aceitar como esposa para selar a paz, com irritação borbulhante.
— Minhas ordens jamais são contestadas — declarou imperativo, porém moderando as palavras, e somente por Selene estar acamada. — Vai se recuperar e logo estará de volta as aulas de magia, comigo avaliando seus passos para garantir que controle seu elemento mágico o mais rápido possível.
— Sempre existe uma primeira vez — Selene desafiou. Agora que conseguiu enfim expressar sua opinião a manteria firmemente. — Não voltarei a ter aulas de magia. Não me recuso a participar das outras, pois são úteis para minha vida solitária que me deu, mas minha paciência para as de magia acabou — declarou cáustica, fortalecida por solitários meses tomando conta de si mesma.
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