Aldeã comum
Deitada em um mar de peles quentinhas, usando uma camisola de algodão macio e alimentada com um guisado saboroso acompanhado por frutas frescas, mesmo com as dores das feridas, Selene sentia-se uma princesa de verdade pela primeira vez em anos. Só tivera tratamento semelhante quando sua mãe era viva.
Levou um susto quando naquela manhã foi levada para um quarto novo, maior e muito bonito na ala norte do palácio.
Também foi apresentada a Cira, governanta do palácio, e a Patry, sua agora dama de companhia.
No começo temeu o tratamento que receberia, até encarou com desconfiança a tina com uma névoa quente em sua superfície, com medo de ser uma armadilha como a que faziam para o preparo de rã. Mas ao entrar devagar na tina, encontrou a água perfumada e numa temperatura agradável. Só não dormiu durante o banho por ainda restar uma parcela de suspeita de que seria afogada se relaxasse demais.
Em silêncio desde que foram apresentadas, Patry a ajudou a secar-se, colocar a camisola e deitar na cama preparada com várias peles e travesseiros fofinhos. Em seguida a jovem empregada, de cabelo marrom preso em tranças em volta da cabeça, saiu e voltou minutos depois com uma travessa carregadas de diversos alimentos, frutas, suco de amora e hidromel.
Selene aprendeu a arte culinária em aulas com a cozinheira real, mas nada que preparou nas aulas chegava perto daquele sabor e aroma divinos. Era até estranho que fosse feita pela mesma mulher ranzinza, que volta e meia a assustava batendo a colher de pau próximo dela nas aulas e deixava alimentos frios a sua espera quando residia na ala sul. Sempre suspeitou que a cozinheira imaginasse acertar sua cabeça ao fazer o movimento e preparar sua comida.
— Deseja algo mais, princesa? — Patry perguntou parada ao lado de sua cama, cabeça baixa e mãos unidas à frente do corpo.
Era até estranho ser chamada de princesa, Selene concluiu observando sua acompanhante, a primeira de sua vida. Seu pai a tratou como prisioneira na infância; Cedric a renegou após o casamento; o povo de Eszter, incluindo a moça ao seu lado, a desprezava. Tinha até ouvido apelidos nada lisonjeiros quando passava pelo pátio principal.
— Estou bem, obrigada!
A jovem moveu-se para sair.
— Espere! — Selene a chamou apressada. Ao que Patry retornou, ainda de cabeça baixa, e tensa. — Ah... Porque me trouxeram para esse quarto? — questionou, tendo suas suspeitas confirmadas quando Patry respondeu:
— O Rei Cedric ordenou que trouxéssemos todas as suas coisas para as acomodações reais... — A jovem titubeou. — Se sente falta de algo, pedirei que busquem hoje mesmo, princesa.
— Ele também mandou que fosse minha acompanhante? — perguntou ajeitando-se nas almofadas macias.
— Sim, Alteza! Ocuparei o quartinho no anexo ao lado. Basta tocar a sineta que a atenderei de imediato — Patry indicou apontando o objeto ao lado da cama. — Darei o meu melhor para atendê-la, princesa.
— Caso contrário? — Selene indagou curiosa, pois a jovem tremia intensamente desde que foram apresentadas.
— Prometo que cuidarei bem da Vossa Alteza, não terá nenhuma reclamação a dar ao Rei — Patry soltou ainda mais tensa, as dobras dos dedos brancas de tanto que os espremia contra o tecido da saia do uniforme.
— Cedric ameaçou você para me atender? — indagou desconfiada.
— Não, Alteza!
— Não minta! — pediu aborrecida.
Seu tom fez a moça engolir em seco e confessar trêmula:
— O Rei ordenou que cuidássemos bem da princesa ou cortará nossas cabeças como fez com o homem que a atacou.
Ao saber da decisão extrema, Selene ficou incrédula. Não havia meio termo para Cedric. Ou era um marido relapso, que incentivava o povo a rejeita-la, ou ameaçava os outros para cuidar dela, o que aumentaria sua rejeição pelos populares, concluiu exasperada.
A porta abriu-se antes que pudesse acabar com os medos da dama de companhia, e a entrada de Cedric piorou a palidez e tremores aflitivos de Patry.
— Saia!
Não foi preciso nem repetir a ordem. Como um raio a mulher os deixou sozinhos, fazendo questão de fechar a porta para dar maior privacidade a eles.
Selene o fitou, aguardando o que diria, controlando as próprias e duras palavras que tinha a lançar.
Observando-o caminhar devagar até o pé da cama, não conseguiu deixar de admirar as vestes elegantes, em tons de vermelho e preto, com pequenos bordados em fio de ouro, uma pele de lobo cinza jogada sobre o ombro direito. Sempre tinha visto ele com armaduras, completas ou parciais, nem mesmo no casamento ele usou trajes reais. Apertou os lábios, para conter a estúpida vontade de perguntar se usava aquelas roupas só para impressiona-la.
— Precisa de alguma coisa? — Cedric perguntou após um momento de silêncio.
Como ele evitava olhá-la, Selene considerou desnecessário confrontar as ameaças dele aos serviçais, então focou no seu desejo maior.
— Quero morar em uma residência fora da fortaleza, como uma aldeã comum.
Ele a encarou com o cenho franzido, um leve brilho vermelho no centro das íris escuras.
— Já disse que seu lugar é no palácio, ao meu lado — ele recusou categoricamente. — E jamais passaria por uma "aldeã comum" com suas cores.
— Minhas cores?
Ele sentou em uma poltrona ao lado da cama, o olhar crítico fixo nela, deslizando como uma carícia de seu cabelo até as mãos pousadas no colo.
— Cabelo de ouro branco, olhos azuis como um céu límpido, pele clara como porcelana — respondeu com a voz vibrando roucamente, antes de concluir com escárnio: — Cores de Magdala.
Apertando os lábios para não dar razão a ele, Selene admitiu em silêncio sua derrota diante do argumento de Cedric.
Sua aparência - cores como ele chamou - era oposta ao povo de Eszter. Não sabia como eram no restante do reino, mas dentro da fortaleza todos tinham cabelos e olhos do castanho ao preto e tez que iam do bronze ao ébano. Não se camuflaria facilmente entre os aldeões de Eszter. Ainda assim, teimosamente, repetiu seu pedido.
Cedric a observou com desconfiança.
— Por que deseja ser uma simples aldeã de Eszter no lugar de pedir que a devolva para Magdala?
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