Que os jogos comecem
-Priscila! Você está bem? –Sinto o mundo girar à minha volta, minha cabeça dói e sinto falta de ar. Minha boca está extremamente seca, como se há tempos não bebesse água. Contudo, apenas faço que sim com a cabeça para a mulher que me segura, preocupada- Menina do céu, você quase me mata de susto! Eu entro aqui e você está atirada no chão com uma poça de sangue do lado! Pensei até que tivesse morrido.
-Eu... eu estou bem –Minha voz falha por causa da garganta seca, mas consigo recuperar minhas forças e, ignorando a dor de cabeça, me levanto rapidamente, quase caindo logo em seguida pela baixa repentina da minha pressão- Muito obrigada pela preocupação, Dona Carmem, mas já estou bem. Só preciso de um copo de água e uma aspirina e estarei novinha em folha. –Dou uma piscadela para ela, mas a mulher não parece se convencer.
Mesmo assim ela vai em direção à pia e enche um copo com água fresca. Antes de me alcança-lo, Carmem pega sua bolsa preta, que ainda estava dependurada em seu braço roliço e tira de lá uma cartela de remédios, sorrindo para si mesma. Observo tudo em silêncio e evitando ao máximo me mover, pois a cada segundo sinto como se minha cabeça estivesse prestes a explodir.
-Eu sabia que tinha visto essa cartela aqui dentro. –Voltando-se novamente para o copo ela estende ambos para mim- Tome, Priscila. E depois limpe esse sangue todo aí antes que mais alguém chegue e se assuste como eu. Além disso isso é uma cozinha e necessita de higienização...
Ah, lá estava a verdadeira Dona Carmem, eu estava até estranhando ela ter sido tão boa comigo e me dado o remédio. Talvez ela realmente tenha achado que eu tivesse morrido antes. Por um momento até pensei que aquela bondade pudesse se estender mais um pouco, ou pelo menos a preocupação, mas o sermão e a ordem de arrumar tudo -mesmo com minha atual situação- demonstrava que isso não iria acontecer.
Depois que ela para de falar eu finalmente consigo pegar o copo de sua mão, afinal ela começara a gesticular ainda segurando o objeto, respingando água por todo o chão no processo. Assim que levo o copo à boca e tomo dois goles, minha mente é preenchida por lembranças. Lembranças desse mesmo copo, mas ao invés de água, ele estivera cheio de sangue. Sangue negro e escarlate.
A lembrança de momentos atrás me atinge em cheio e quase caio do banco em que fui colocada, tamanho é meu choque. Ainda não tenho certeza se realmente tudo aquilo aconteceu ou se estou apenas ficando louca, mas então sinto algo se mexer dentro de mim.
Não se assuste, doce garotinha. E sim, tudo realmente aconteceu.
Dou um grito. Um grito alto e esganiçado de terror diante daquela voz e daquela confirmação. De repente sinto como se eu não fosse mais a dona de meu corpo. Como se gora ele fosse compartilhado.
E agora ele é. Você aceitou o acordo de bom grado, agora compartilhamos o mesmo corpo. Que o mais forte prevaleça.
Náusea me invadiu conforme aquele ser dentro de mim falava. Percebo que Dona Carmem me olhava totalmente assustada, provavelmente achando que estou ficando louca. Na verdade, eu mesma estou achando isso.
Não seja tão tola, no fundo você sabe que isso é verdade, está apenas com medo. Ah, seu medo é tão delicioso, vejo que me manterei muito bem alimentado.
Acho que dou mais um grito desesperado, pois logo em seguido Dona Carmem fala:
-Priscila! Está ficando louca agora, é? Ao invés de um orfanato acho que deveriam te internar em um hospício, garota! Aliás, você parece estar imprestavel o suficiente para dar o fora daqui e voltar para a tua casa. Só não se esqueça de limpar o chão antes, minhas costas não estão em condições de me permitir te ajudar. -Diz ela sentando-se na cadeira em que eu estava anteriormente. Como se ela fosse alguma dia levatar algum dedo gordo pra ajudar alguém. -Priscila, está me escutando garota? Limpa isso daqui e dá o fora para o orfanato!
Sinto o medo me invadir diante daquela palavra. O medo que me assombrava todos os dias na hora de voltar para aquele lugar que precisava chamar de "casa". O ódio também serpenteava entre meus pensamentos. O demônio dentro de mim pareceu se deliciar com esses sentimentos, se agitando.
Orfanato... você não gosta daquele lugar, não é? Aquelas pessoas horríveis que "cuidam" de você. Essa mulher não deveria receber um castigo por querer te mandar de volta para lá?
A tentação diante da oferta é tamanha que me sinto perdendo o controle de meus pés e mãos, então de meus braços e pernas e, quando noto, estou me mexendo sozinha. Não, é o demônio quem está se mexendo. Quem está comandando meu corpo.
Oh não, agora ele não é só seu, esqueceu? Somos um só, Priscila.
Minhas mãos começam a queimar com um fogo negro-arroxeado e a mulher de meia-idade em minha frente grita quando levo aquelas mesmas mãos em direção ao seu pescoço. Tento lutar contra o que está prestes a acontecer, mas o demônio parece se aproveitar do meu medo diante do acontecimento para se tornar ainda mais forte e tomar o controle.
Então apenas observo, como se do "banco de trás" da minha alma, quando aquele fogo envolve o pescoço gordo de Dona Carmem, que começa a se debater freneticamente tentando se soltar de meu aperto. Mas ela não é párea para a minha força extraordinaria, a qual eu não tinha há alguns minutos atrás. Fico aterrorizada diante daquilo. Diante do que eu estou fazendo com aquela mulher, mesmo que muitas vezes eu tivesse dejado isso a ela.
Alguns minutos se passam até que a mulher comece a perder sua força e os movimentos vão ficando mais lentos, ao passo que meu aperto em seu pescoço permanece o mesmo. Aos poucos sua pele vai arroxeando e os olhos pesando. Ela está morrendo. Me desespero e começo a tentar retomar o controle de meu corpo, para evitar o acontecimento iminente. Mas a única coisa que consigo é assustar o demônio, que manda aquela nuvem de fogo negro em minha mão direto para a garganta de Dona Carmem, matando-a imediatamente.
Minhas mãos se abrem e derrubam o corpo no chão, que cai com um barulho que me faz estremecer. Ou ao menos minha alma estremece, pois meu corpo se mantém firme e sob o controle daquele demônio.
-Surpresa com sua força, Priscila?
Me aterrorizo ainda mais diante da voz que sai da minha boca. Das palavras frias e maliciosas. Me enrosco mais e mais na profundeza da minha mente, com muito medo para voltar ao controle. O demônio parece se divertir, enquanto observa o cadáver estatelado no chão.
Não há sequer uma marca que demonstre o estrangulamento.
O ser dentro de mim desliza a mão, agora não mais envolta em fogo negro-arroxeado, para dentro da minha mochila e pega meu celular. Ele... eu –já não sei mais- disca o número da ambulância e pede socorro. Se eu pudesse, reviraria os olhos diante da hipocrisia.
-Se preferia que deixássemos o corpo ali para que fossemos totalmente suspeitos, era só ter me avisado.
Novamente ele usa minha boca e voz para falar, mas dessa vez, mesmo achando estranho, não deixo o medo me invadir completamente. Se é que ainda houvesse lugar para mais medo do que eu sentia agora.
Por quê? Por que está aqui? Por que matou aquela mulher?
Aparentemente, agora que eu estava totalmente "no banco de trás" da minha mente, minha voz sairia apenas na nossa cabeça, pois eu perdi o controle de meus membros.
-A primeira pergunta você já sabe a resposta: você fez um acordo com o Senhor da Escuridão.
Pelo que me lembre o acordo era eu conversar com meus pais em troca de algo que não foi especificado. No momento eu estou apenas sendo possuída pelo Senhor da Escuridão e não estou ganhando nada do que me foi prometido.
-Em primeiro lugar: eu não sou o Senhor da Escuridão, sou apenas um demônio menor convocado para assumir esse papel. Em segundo lugar, o Senhor da Escuridão sempre honra suas promessas. Mesmo que algumas demorem para serem cumpridas, ele sempre o faz.
Hum, não estou convencida
-Felizmente isso não é problema meu, querida.
Agora a última pergunta: por que matou Dona Carmem?
-Nós a matamos porque queríamos. Porque ela merecia.
Me encolhi ainda mais diante daquela afirmação. Nós não matamos ninguém a menos que você queria, docinho. O demônio fala na minha mente, voltando a me assustar dessa vez. Sua mente e vontades não são tão puras assim, Priscila Rompier. Eu vejo o seu ódio, o seu rancor. Nunca te disseram que isso faz mal? Os mundanos adoram estragar nossa alegria dizendo isso. Ora, vamos, diga que estou errado, diga que não sentia raiva e vontade de fazer o que fizemos com aquela mulher. Diga e talvez possamos estabelecer alguns termos para o nosso corpo e seu controle. DIGA.
Não sei se é possível, mas eu estava chorando. Chorando e soluçando encolhida no fundo de minha própria mente. Não, não, não. Minha "voz" não passava de um sussurro. Mas então eu notei a pior coisa da qual poderia me dar conta agora. Eu... eu queria aquilo. Eu... eu sou um monstro.
Senti levemente quando o demônio me deu um sorriso de triunfo com meu corpo. Estremeci, me encolhendo quase ao ponto de desaparecer com tamanha vergonha e medo e desespero. Deixei que o demônio tomasse conta do meu corpo e do controle sobre ele inteiramente. Eu não passava de uma mancha naquele mar de escuridão.
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