A calmaria antes da tempestade
Acredito que depois de uma hora e meia sentada esperando ansiosa, qualquer banco ou cadeira se torna desconfortável, mas o motivo de minha ansiedade valia a pena todo aquele desconforto. Felizmente meu melhor amigo finalmente sai da sala de reunião e vem me encontrar, conseguindo chegar antes que eu devore meus dedos -afinal as unhas já foram roídas há muito tempo.
Me levanto rápido demais e, vestindo um calção em um dia extremamente quente e anormal como está o dia de hoje, quase dou um grito quando sinto minhas pernas queimarem ao se desgrudarem do estofado do banco em que estava.
-E então, Carlos? Eles falaram alguma coisa? Nós passamos? -Eu encaro fixamente meu amigo, minhas mãos tremiam e suavam com o nervosismo que eu não sou capaz de disfarçar.
Carlos apenas me encara, o olhar baixo, e dá um sorriso torto que passa longe de chegar a seus olhos. Naquele momento toda a animação que me consumia evapora em um segundo e me sinto prestes a desabar. O garoto moreno na minha frente parece perceber isso e me abraça. Ele solta um longo suspiro de decepção antes de falar:
-É impressionante como você pode ser trouxa Priscila. -Antes que eu entenda o que está acontecendo ele dá um sorriso enorme e brilhante- É óbvio que passamos, Pri!
Quase não me seguro ao ouvir aquilo. A alegria que me atinge é enorme e só tenho a reação de jogar meus braços ao redor de meu amigo e abraça-lo fortemente, enquanto pulamos juntos de alegria no meio do corredor do colégio. Ignoro os olhares de repulsa e de vergonha alheia dirigidos a nós: nada me abala nesse momento.
Quando finalmente a euforia passa o suficiente para que eu volte a mim mesma, a primeira coisa que faço é dar um soco no braço de Carlos.
-Isso, é por ter me enganado e quase me feito chorar -Em seguida dirijo meu pulso para sua barriga- e isso por ter me chamado de trouxa.
Cal reclama da minha vingança, mas sei que é apenas drama, afinal a força que tenho não é párea para fazer seu corpo sentir alguma dor.
-Quando começam os ensaios? -Pergunto ansiosa novamente, a raiva de poucos segundo atrás já havia ido embora.
Meu amigo começa a caminha e a tirar várias folhas de sua mochila, enquanto eu tento acompanhar suas passadas largas com minhas pernas curtas.
-Aqui, pegue -Ele me alcança as folhas enquanto continua procurando algo dentro de sua mochila- Se eu não me engano começa terça que vem, mas o calendário decidiu sumir!
Reviro os olhos diante do drama de Carlos, mesmo sabendo que o calendário provavelmente nunca mais seria visto. Ao menos não se ele estivesse dentro da bagunça que era aquela mochila vermelha de meu amigo. Tudo que entrava lá, raramente saia de novo.
-Desista, Cal, é impossível achar algo nessa bagunça. Depois perguntamos para alguém. -Digo enquanto puxo seu braço em direção à saída do colégio. O garoto finalmente me encara, os olhos avelã brilhando de alegria, mesmo depois da euforia ter ido embora.
-Pri, eu ainda não consigo acreditar que conseguimos os papéis principais! Eu estou me segurando para não sair correndo e gritando de alegria!
Dou uma breve gargalhada antes de responder:
-Também estou morrendo de felicidade, mas acho que é melhor nos segurarmos. Já não somos muito bem vistos nesse colégio normalmente, imagina se agíssemos como dois esquizofrênicos? -Meu amigo dá um risinho e sinto a tristeza surgir diante de meu último comentário. Paro em sua frente fazendo-o quase tropeçar em mim- Ei, não é hora de pensar nisso, OK? Vamos aproveitar a notícia e ignorar nosso passado, fechado?
Carlos aperta minha mão estendida, dando um meio sorriso no processo.
Continuamos caminhando, em silêncio dessa vez. Me amaldiçoo pelo comentário infeliz.
-Até de noite então? -Passo novamente para a sua frente, mas dessa vez ele está preparado e não me atropela. -Você me encontra no restaurante no fim do expediente, combinado?
Cal me dá um abraço apertado antes de sussurrar em meu ouvido:
-Combinadíssimo, nobre dama.
Sorrio para ele em despedida enquanto sigo para meu trabalho do outro lado da rua. Sigo com o olhar o garoto moreno se distanciar e sumir de meu campo de vista cidade à dentro. Volto meu olhar para minha mochila a procura da chave do restaurante. Felizmente eu sou bem mais organizada que meu melhor amigo e, em questão de segundos, encontro o que preciso.
Abro apenas uma fresta, o suficiente para que eu entre, e fecho a porta em seguida. Sinto um calafrio devido ao frio do ambiente e à penumbra, meus olhos ainda tentando se ajustar ao escuro e à procura do interruptor.
Assim que ligo a luz sinto um certo alívio. Odeio o escuro. Ele me traz lembranças das quais tento sempre fugir, aquelas que talvez nunca estejamos realmente preparados para encarar. Como a causa da minha atual situação.
Sigo para o interior do recinto e começo a abrir as cortinas para deixar o sol entrar, tentando afastar ao máximo a escuridão. Quando finalmente acabo de fazer isso, me dirijo para a cozinha antes que o pessoal comece a chegar e eu não consiga almoçar. Ainda faltava cerca de meia hora para o restaurante abrir, então em breve aquele lugar lotaria e meu tempo se esgotaria.
Estou na metade do caminho, ainda desviando de algumas mesas, quando ouço barulho no interior da cozinha. Me pergunto se alguém chegou mais cedo, mas me lembro de que hoje apenas eu tinha a chave, o que riscava essa opção. Decido focar na ideia de ser algum rato ou qualquer coisa do gênero, tentando afastar coisas sobrenaturais da minha mente criativa.
Sopeso se devo ir até a cozinha ver do que se trata e se realmente tenho tanta fome assim. Espero mais algum tempo para ver se o barulho se repete, mas nada acontece. Então finalmente enxugo minhas mãos que estão suadas na minha roupa e crio coragem para seguir até a cozinha, decidindo que preciso comer e que aquele barulho talvez tivesse sido coisa da minha cabeça.
Dou passos lentos e silenciosos, ainda receosa e com medo de me aproximar. No exato momento em que piso nos ladrilhos esverdeados da cozinha sinto meu corpo pesar, como se de repente fosse necessário muito mais esforço para me movimentar. Então, como mágica, sou arrastada -e quando digo arrastada é porque meus pés se movimentam contra minha vontade- para uma pequena mesa posicionada no outro extremo do ambiente. Não lembro de tê-la visto lá antes. Mas com certeza esse último fato é o que menos me assusta no momento.
Sou forçada agora a me sentar em uma das cadeiras que estão posicionadas diante da mesinha. Na minha frente um homem bastante alto, de olhos negros como a morte e pele branca como uma folha nova -exceto pelas dezenas de cicatrizes que lhe marcavam o rosto e todo o corpo visível pelo terno que vestia. A escuridão parecia dançar entorno dele, de forma hipnotizante, graciosa, eterna e assustadora. Engoli em seco, desistindo de gritar depois de ser impedida inúmeras vezes por uma força sobrenatural.
-Olá, doce garotinha. -Sua voz era suave, como água deslizando pelo leito de um rio calmo, me tranquilizando e fazendo com que todo o medo de alguns instantes atrás evaporasse. Agora eu conseguia controlar novamente meu corpo, mas apenas me ajeitei na cadeira entendendo que deveria ficar ali e ouvir. -Vim aqui a pedido de seus pais, eles queriam muito falar com você.
Por um instante o encarei confusa, mas logo a confusão foi substituída por reconhecimento quando aqueles olhos negros encararam os meus. A morte. Ele era a morte e, se meus pais queriam tanto assim falar comigo, deveria ser algo importante.
-Então estarei aqui para ouvir. -Minha voz saiu nítida e leve, sem nada do tremor ou nervosismo habitual. Parecia que eu tinha decorado aquelas palavras durante toda a minha vida para esse momento.
-Fico feliz em ouvir isso. -O homem então para por um instante e apenas encara o nada -Mas primeiro precisamos estabelecer algumas regras, se não se importa, Priscila Rompier.
-Aceitarei de bom grado, Senhor da Escuridão. -Novamente minha voz soou macia e confiante. Como eu sabia como chamar aquele sujeito?
O Senhor da Escuridão me dirige um leve sorriso, contente com minha decisão. O sorriso parece não se encaixar naquelas feições tristes e frias, como se fosse algo tão raro quanto essa própria conversa.
Sem perceber me vi esticando meu braço em sua direção. O homem parecia esperar por isso e, tão rápido quanto se pode perceber, uma pequena faca estava em sua mão. Ela aparentava ser antiga, com entalhes contando histórias em uma língua incapaz de ser lida por mortais como eu.
Antes de pegar meu braço estendido, o Senhor da Escuridão passou aquela lâmina pela própria pele, um filete de sangue negro como o de seus olhos escorreu. O sangue começa a fluir mais rapidamente e cair em um copo, o qual eu nem tinha notado a presença até então.
Quando ele parece satisfeito com a quantidade de sangue preenchendo o copo, sua mão pega meu pulso, enquanto a outra passa delicadamente a faca entalhada em minha pele, assim como ele fizera em si mesmo. Fico esperando a dor do corte, mas sinto como se estivesse apenas passando meu braço em algo gelado, totalmente diferente da sensação dos cortes que já sofri. Meu sague escorre rapidamente e fico observando o escarlate e o negro dançarem naquele copo.
Tão rápido quanto aquela faca apareceu, ela também sumiu, parecendo levar com ela qualquer evidência de sua presença e, quando volto a olhar para meu pulso, resta apenas uma pequena cicatriz, assim como no homem em minha frente. Bem, aquilo explicava a coleção de cicatrizes daquele cara.
Novamente sem perceber, sinto minha mão agarrar o copo e leva-lo à minha boca. Tomo dois goles da substância espessa. Uma explosão de sentimentos acontece quando engulo o líquido. Sinto como se soubesse todas as verdades desse mundo, como se fosse imortal. Por um momento me senti aquela lâmina antiga. Tão antiga quanto esse próprio mundo.
A última coisa que consegui notar foi o Senhor da Escuridão tomando também dois goles daquele mesmo copo e soprando um vento negro em minha direção. Então senti meu corpo pesar e minha consciência se dissipar. Mas não sem antes esbravejar por ele não ter cumprido sua parte do acordo: me permitir falar com meus pais.
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