57
Liguei para Marcela e falei que tive um compromisso de última hora e que não tinha previsão de qual horário eu estaria na clínica. Assim terei menos uma preocupação. Foi mais uma noite mal dormida, mas desta vez, eu sabia como seria o meu amanhã. Eu teria feito isso mesmo se o Douglas não concordasse, mas não seria a mesma coisa. Pesaria no meu peito e na minha consciência fazer isso pelas suas costas.
— Você tem certeza que é isso que você quer?! — ele me pergunta antes de batermos à porta do delegado.
— Tenho certeza absoluta — respondo com segurança.
Sinto um misto de emoções. Alívio por poder expôr isso da maneira certa à pessoa certa. Medo por saber que meu futuro é incerto, mas estou confiante de que esse é o primeiro passo para provar minha inocência. Estou em paz por tirar o Douglas do olho do furacão. Sei que a vontade dele não era essa, e sim, matar o Alejandro e pôr fim à uma ameaça direta à mim, à nós. Mas é preciso diferenciar nossas vontades das nossas obrigações.
— Bom dia, Da Matta — Douglas cumprimenta o delegado. Rapidamente ele se levanta para um aperto de mão.
— Bom dia, Sant'Anna — ele responde com um tom de voz firme, que lembra o do meu pai. Seus cabelos escuros contrastam com vários fios brancos denunciando talvez uns cinquenta e cinco anos. — Quem é esta linda moça?
— A Dra. Karen Blanchard, minha noiva. — o delegado me olha surpreso e um tanto encantado ao mesmo tempo. — Karen, este é o Delegado Pedro Henrique Da Matta.
— Prazer em conhencê-lo, senhor Delegado — digo e nos sentamos em seguida.
— O prazer é todo meu, Dra. Karen — responde ele e logo franze o cenho. — Esta é a aquela médica que te operou, Sant'anna?!
— Sim — Douglas refuta sorrindo e com o olhar voltado ao meu. — É ela.
— E estão noivos! — ele exclama surpreso. — Estão aqui para me convidar para o casamento?! — sorrio sem jeito.
— Eu preferia que fosse, mas temos um assunto bem sério para tratar hoje — Douglas responde contra a vontade me causando um suspiro pesado e amedrontado, em seguida olha para mim como se estivesse me passando a palavra.
— Eu posso ajudá-los em alguma coisa?! — o delegado questiona intrigado.
Respiro fundo, pigarreio, encaro o teto buscando um jeito de não perder o controle antes de revelar tudo.
— Eu quero colaborar com a polícia para chegar até um... — hesito sem saber se estou passando a segurança necessária. — Uma pessoa que... — vendo minha hesitação, Douglas segura em minha mão.
— Quer que eu fale, Karen? — nego com a cabeça enquanto o Sr. Da Matta nos encara perplexo. Prefiro eu mesma falar, pois se já é difícil para mim, para o Douglas é ainda mais.
— Há cerca de um ano mais ou menos, eu me relacionei com um homem que atendia pelo nome de Ygor Hernández Quispe — inicio e travo outra vez. Cruzo as pernas e coço a testa pensando em como continuar.
— Eu imagino que possa parecer melhor falar comigo por ser amigo do Douglas — diz o delegado —, mas se for muito desconfortável para você, existe a Delegacia da Mulher...
— Não — diz Douglas entendendo a confusão. — Não é isso.
— Então... — fala ele tentando fazer com que eu prossiga, mas o Douglas toma a frente.
— Eu descobri que o Ygor Hernández, na verdade, é o Alejandro González. — o delegado ergue as sobrancelhas e alterna o olhar entre mim e o Douglas. — Eu estava tentando resolver um problema técnico no notebook da Karen quando vi uma intensa atividade de emails e mensagens destinadas à Colômbia, aos Estados Unidos e ao México. Era ele usando as contas dela.
— Espera... — pede o delegado entrecortando as palavras do Douglas. — Você tem certeza de que se trata da mesma pessoa?
— Depois de analisar muito, posso afirmar que sim — ele fala de um modo como se quisesse dizer o contrário. Como se preferisse que isso não estivesse acontecendo.
— Certo — diz o delegado. — Onde está esse notebook?! — retiro o aparelho da minha bolsa e o entrego. — Douglas, me deixe à sós com a Dra. Karen. — meu coração se aperta um pouco, mas eu já sabia que esse momento seria necessário. Douglas não se move e parece se recusar a sair.
— Da Matta, ela não sabia quem ele era, não sabia o que ele fazia e que estava usando suas contas para chefiar o...
— Você virou advogado dela também?! — ele indaga em tom ríspido por não ter sua ordem acatada. Douglas me olha brevemente como se sentisse dor por ter que sair. Todos os sons seguintes me fazem tremer. A cadeira range no assoalho, os passos pesados do Douglas ecoam pela sala, a porta bate com um pouco mais de força que o necessário.
• • •「◆」• • •
Foram mais de três horas de depoimento. Me forcei a lembrar de toda e qualquer coisa que pudesse dar pistas de onde o Alejandro pode estar, ao mesmo tempo em que expliquei com detalhes que eu não sabia do que se tratava o tal negócio que ele chefiava. Contar isso para alguém como o Delegado Da Matta, me fez sentir vergonha de ter entrado no carro do Alejandro naquela maldita tarde. Como alguém em sã consciência entra no carro de um desconhecido? Como eu namorei um homem que evitava tocar em certos assuntos sem notar o quanto isso era grave?
Nessa instauração, o foco principal foi a entrega da prova e um paliativo sobre tudo que possa somar à investigação. O delegado me informou que será aberto um novo inquérito para verificar um possível envolvimento meu com as transações do Alejandro enquanto ele estava morando comigo.
Logo que o delegado me liberou do depoimento, foi a vez do Douglas ser ouvido. Eu saí da delegacia, almocei, fiz hora na praça e retornei. Mesmo assim, ele ainda estava lá, contando sua versão dos fatos. Ao mesmo tempo em que eu queria aguardá-lo, me sentia sufocada e incomodada naquele ambiente. Sentia que todos tinham a curiosidade de saber o motivo da noiva do agente Sant'Anna estar ali, de ficar mais de três horas na sala do delegado, e do próprio agente ter entrado logo depois de mim, demorando tanto ou mais que eu lá dentro. Mandei uma mensagem para o Douglas avisando que eu estava voltando para casa.
Enquanto espero por ele, resolvo ligar para o meu pai e avisar que já posso solicitar os serviços do advogado que ele me recomendou.
— Como foi com o delegado? — ele atende deixando evidente sua preocupação.
— Assustador, pai — admito. — Em certos momentos, parecia um julgamento.
— Acho que o próprio delegado também se encontra em uma situação que precisa de imparcialidade — ele opina. — O Douglas está aí com você?
— Não, ele ficou prestando depoimento. Está demorando tanto...
— Fique calma, é necessário — pede ele. — Eu pensei em procurar o Dr. Gilberto, já que ele e o delegado são amigos...
— Não! — digo interrompendo-o. — Ele adoraria ver o Douglas envolvido em outro escândalo.
— Não é assim, filha — diz ele como se eu tivesse uma ideia distorcida de seu amigo. — Quando ele me contou sobre o Douglas, estava preocupado com você, só isso.
— Pai, o Dr. Gilberto não é esse homem que o senhor pensa. Ele é corrupto e eu não quero nenhum tipo de favorecimento. Descarte isso e marque uma reunião com aquele advogado.
— Não se preocupe, marcarei o mais rápido possível — fala ele prontamente.
— Obrigada, pai — digo suspirando e grata a Deus pelo pai que eu tenho.
— Eu queria poder fazer mais, filha. Mas não sei o quê — diz desapontado.
— O senhor já está fazendo muito me dando apoio — argumento. — Eu cometi um grande erro confiando em um desconhecido. Agora estou pagando o preço.
— Não está. Ele é quem vai pagar por isso — fala de forma absoluta. — Fique tranquila.
Ouço o barulho da moto e sinto alívio por finalmente o Douglas ter chegado.
— Ele chegou, pai. Amanhã nos falamos.
— Até amanhã.
Encerro a ligação e vou até a porta sem controlar minha ansiedade. No semblante do Douglas, noto que ele está... frustrado, talvez. É difícil decifrar seus sentimentos. Ele me beija ternamente e adentra a casa.
— O que ele falou? — pergunto e o sigo até o quarto. Não sei porque ele não se sentou para conversarmos.
— O que eu já sabia que ele diria — responde de forma forçada. Fico em silêncio tentando lembrar a que se refere, mas ele percebe que não entendi. — Entre outras coisas, ele disse que estou fora do caso, Karen — ele fala e entra no banheiro. Saio do quarto e volto a deitar no sofá.
O Douglas já havia falado isso e nós dois sabíamos que seria assim. Porém, mesmo que saibamos das possibilidades, quando elas se concretizam, trazem consigo uma carga pesada de frustração e revolta.
Eu me arrependo de ter entrado no carro do Alejandro assim como me arrependo de ter saído de casa naquele dia. Era minha folga e eu havia ido comprar alguns congelados para facilitar minha vida no decorrer da semana, com meus horários loucos no hospital. Malditos congelados. Não quero nunca mais confiar nas pessoas com tanta facilidade. Minha liberdade está em jogo por conta disso.
Vejo o Douglas saindo do quarto e indo até a cozinha. Fico em dúvida se seria uma boa ideia tentar conversar sobre nossos depoimentos. Há tantas coisas que eu quero perguntar e entender sobre o que pode acontecer comigo... Eu sinto medo. Às vezes sou atormentada pelas palavras da Vivian sobre o nosso filho vir ao mundo dentro de uma prisão. Toco minha barriga suavemente e acaricio, imaginando que talvez o bebê já consiga sentir meu toque.
— Me desculpe, bebê — digo baixinho, com um nó apertado na garganta. — A mamãe te colocou em uma situação complicada, mas nós vamos sair dessa.
Suspeito que o Douglas não tenha gostado do que cozinhei para o jantar e esteja preparando outra coisa. Não seria a primeira vez que isso acontece. Decido ir para cozinha também, ficar sozinha só me faz ter lembranças de pessoas e coisas ruins. Caminho a passos silenciosos e quando chego à cozinha, me surpreendo ao vê-lo sentado à mesa virando um copo de whisky, com a garrafa ao lado. Ele vê que eu cheguei, mas nada pronuncia. Sua expressão é ilegível e isso me destrói mais um pouco.
— Não gosto de te ver assim — falo quando me sento à mesa de frente para ele. Ele despeja mais bebida em seu copo e o mexe fazendo os blocos de gelo baterem uns nos outros. — Eu sei que não foi assim que você escolheu. Seu plano era encerrar esse caso e sair, mas...
— Não é qualquer caso, já falamos sobre isso — diz ele, pensativo. — Não estou nem um pouco preocupado com a minha reputação ou com coisa parecida. É só que... — ele começa a falar e cessa suas palavras.
— Só que o quê? — questiono.
— Nada... Não é nada — diz e toma mais um gole.
— Douglas, você sabe de alguma coisa que eu não sei??? — indago sentindo meu coração acelerar com o medo.
— Não, Karen — fala imediatamente. — Tudo o que eu sei é também o que você sabe.
— Não sei... — falo confusa. — Já tive muitas experiências com você que me fazem achar que está me escondendo algo. — ele franze o cenho.
— Não estou escondendo nada de você, Karen — diz ele balançando a cabeça em negação. — Eu não sei... — ele faz uma pausa com o olhar perdido pelo cômodo. — São quatorze anos nessa profissão. Acho que eu desenvolvi um faro... Sinto que... — seu olhar perdido, agora encontra o meu e mais uma vez ele para de falar. — Devo estar confundindo minha preocupação com algo mais, amor. Eu era um cara sozinho... Sozinho, não, mas eu não tinha ninguém de verdade. Alguém para chamar de meu. Agora você se tornou meu tudo e estou com medo de... — suas palavras são interrompidas por um longo suspiro.
— Você também é o meu tudo agora — falo segurando em sua mão. — Não consigo mais imaginar minha vida sem você. — faço uma pausa acariciando seu rosto. — Acho bom que eu tenha descoberto sobre o Alejandro. Apesar de tudo, estava sendo injusto você carregar todo esse peso sozinho.
— Esse também é um dos problemas. Achei que estivesse escondendo tudo numa boa. Não queria te ver desse jeito, com um par de olheiras. Eu poderia continuar com isso sem o menor problema, perdendo o sono por nós dois, me preocupando por nós dois... Eu queria fazer isso sozinho. — uma lágrima quente escorre pelo meu rosto ao ouvi-lo, mas ele a afasta com o polegar.
— Karen, eu não quero mais ver você chorar por causa disso — fala ele como se fosse uma ordem. — Lembra do que você me pediu um tempo atrás?
— Estou me esforçando para lembrar, mas parece que a gravidez me trouxe um pouco de amnésia — justifico e ele sorri pela primeira vez hoje.
— Férias — fala ele e eu sorrio instantaneamente. — Antes de saber de tudo isso, você me pediu para que depois que tudo acabasse, tirássemos uns dias de férias. Não acabou como eu imaginei, mas podemos passar uns dias em algum lugar tranquilo e esquecer isso um pouco. O que acha?
— Acho ótimo! — exclamo animada.
— Então pode começar a escolher o lugar — diz ele contemplando minha animação. Em seguida, vira o restante da bebida em um só gole.
Pego meu celular e começo a pesquisar por destinos com praia. É a minha fascinação. Daqui do Rio, já conheço todas, ou quase. Preciso conhecer outras pelo Brasil, que sejam inusitadas, exóticas e que me façam esquecer um pouco de tudo o que estou passando.
Douglas continua bebendo, mas dá vários palpites de onde podemos ir. São tantas opções que eu chego a pensar que nunca conseguirei decidir. É quando lembro que posso ser presa e nem tão cedo verei o mar. A cada página, uma nova sugestão de lugar, até que minha atenção se prende a uma praia linda, rodeada de rochas de vários tamanhos que parecem esculpidas com o fim de tornar o lugar em algo encantado. Bem à frente, uma enorme formação rochosa exibe uma pequena passagem, como uma porta. A areia tem tons escuros em alguns pontos me deixando intrigada com essa beleza única. Mostro ao Douglas e seus olhos brilham como os meus devem estar brilhando também.
— Mas onde fica isso? — pergunta ele.
— Não sei — respondo como se não fosse importante. — Vou ver agora.
Alguns cliques mais e vejo que a tal praia se chama Pfeiffer e fica na Califórnia, a uma distância gigantesca e provavelmente, uma das opções com maior custo.
— Eu já imaginava que era bem longe — diz ele. — É muito diferente das praias daqui.
— É verdade — concordo desanimada. — Não pode ser tão longe, eu queria um lugar onde pudéssemos levar o Théo com a gente — digo e volto à página anterior
— Não — fala ele rapidamente. — Volta lá. — estranho seu pedido, mas faço. — Você gostou?
— Nossa... Eu amei! É um lugar lindo. — falo encantada.
— Então é para lá que nós vamos! — fala com determinação.
— Mas e o Théo? Eu nunca viajei de avião com ele...
— Eu vou dar um jeito, amor — diz de forma plena. — E ainda vou encontrar um hotel para animais.
— Acho que você bebeu demais, Douglas — falo achando graça.
— Não bebi demais, escreva o que estou dizendo — pede ele com a fala se arrastando um pouquinho. — Não importa como, nós três estaremos dentro de alguns dias — sorrio e concordo com a cabeça, reconhecendo que isso é uma tremenda loucura.
— Tudo bem. Sorte a sua que está bebendo em casa e não vai precisar dirigir — digo aliviada.
— Dirigir, eu não vou mesmo, mas pretendo pilotar um avião ainda hoje — diz com malícia e gargalhamos.
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