54
Parece que eu sou um quebra-cabeças de mil peças, mas que agora removeram trezentas delas. Parte da minha vida, mesmo que seja pequena, agora virou um ponto de interrogação, um espaço turvo, um vão.
— Deve estar havendo algum engano... — digo sentindo uma confusão dentro de mim. As lágrimas ainda rolam, minhas mãos voltam a tremer como no momento em que entrei aqui. — O Ygor não era um narcotraficante. Não falava gírias, não tinha tatuagens de facções... — Douglas e Vivian se entreolham.
— Amor, o nome dele na verdade é Alejandro Gonzáles — ele fala calmamente como se isso fosse me causar uma rachadura. É, ele está certo.
— Como assim??? — questiono em choque.
— Ele não é como os bandidos daqui do Rio de Janeiro. Raramente dá as caras, facilmente se camufla no meio de pessoas de classe média alta, fala outros idiomas... Karen, eu sei que é difícil acreditar que o cara com quem você namorou por dois anos é uma mentira. — fico lembrando do tempo que passamos juntos, dele dizendo que me amava e chego à conclusão de que me engano muito fácil com as pessoas. — Ele veio para o Brasil como foragido da justiça Colombiana, mas enquanto ele esteve com você, ainda gerenciava tudo. Essa era a empresa que ele administrava, um cartel de drogas ligado até à máfia mexicana. Quando você me falou que ele ficava horas no telefone falando em inglês ou espanhol, estava tratando disso.
— Realmente está sendo difícil acreditar, pois ele fez parte da minha vida — digo concordando. — Mas ele é apenas um ex-namorado. Por que não me contou isso antes? — Vivian batuca a mesa com as unhas repetidas vezes e isso começa a me tirar do sério. Ainda não estou convencida de que eles não têm nada. — Você sabe que ainda tem muitas lacunas nessa história, não sabe? — indago limpando as lágrimas e ele franze o cenho.
— Pode me perguntar qualquer coisa, amor, eu respondo — diz ele.
— Você insistiu muito para que eu viajasse... Se vocês estão só trabalhando, por que precisam de toda essa privacidade?! — indago em tom irônico e eles se entreolham mais uma vez.
— Karen, não trabalhamos no mesmo departamento de polícia há muitos anos. Mal nos vemos, só estamos unindo forças neste caso e a maioria das informações que temos, não são oficiais — responde ele. Isso me lembra de fatos que quase deixei passar.
— Não me diga que foi a minha casa que essa piranha invadiu enquanto estávamos em São Paulo?! — grito.
— O quê?! — ela inquire irritada olhando para o Douglas.
— Não, Karen... — diz ele parecendo constrangido. — Esqueça isso.
— Douglas! — ela grita. — Eu estou te ajudando enquanto você fica levantando falsos contra mim?! — ele respira fundo. — Foi ele quem conseguiu tudo! — ela exclama voltando-se a mim. — Eu só dei um pendrive com o vírus e o resto ele fez sozinho!
— VIVIAN!!! — ele a adverte e eu perco a fala abalada demais para reagir.
— Não, Douglas! — grita ela em tom autoritário. — Você não pode inventar essas coisas ao meu respeito para limpar a sua barra sendo que eu estou te ajudando! Não posso levar culpa uma vez que a burra da história é ela! — sinto uma fúria entrar em erupção no mesmo instante em que ela termina a frase. Pego o copo d'água sobre a mesa e arremesso na cara dela.
— Para, Karen — ele diz fazendo um cerco ao meu redor para impedir que a vadia voe em cima de mim, mas ela apenas se levanta limpando o rosto que agora está da mesma cor de seu cabelo.
— Eu poderia ir embora neste exato momento — diz ela enfurecida —, mas o único motivo pelo qual eu não vou, é que eu não quero que o filho de vocês venha ao mundo dentro de uma prisão.
— CALE A BOCA, VIVIAN!!! — ele berra.
— O quê?! — questiono perdida. — Do que ela está falando, Douglas?! — ele leva as mãos ao rosto esfregando-o como se a raiva fosse uma tinta que precisa ser removida.
— Conta, Douglas — ela fala em tom irônico. — Fala que o Alejandro usava as contas dela para se comunicar com os "sócios" dele...
— Vivian, falta pouco para eu perder a minha paciência com você — diz ele censurando-a enquanto entro em um limbo.
— Você não está no direito de perder a paciência com ninguém, cara — fala ela andando de um lado para o outro. — Eu virei a noite acordada vasculhando aquele notebook com você até conseguirmos pegar cada contato que ele fez com as facções de dentro e de fora do país! Aí você fala que eu invadi a casa dela?! — ela para e abre sua bolsa que está encima do balcão da cozinha, retirando um maço de cigarros e um isqueiro.
— Fume isso lá fora, por favor — ele pede e ela sai logo em seguida sem responder.
— Diz que é mentira dela — peço aflita. — Diz que é ela quem está mentindo e não você.
— Eu queria poder dizer que é mentira, Karen... — balanço a cabeça negativamente. — Não podia simplesmente te contar tudo sem saber primeiro quais riscos você poderia estar correndo apenas por saber. Desde a noite em que peguei seu notebook, a Vivian e eu estamos trabalhando no intuito de apagar todos os rastros que ele deixou e que te envolvem nos esquemas dele. — ele faz uma pausa enquanto inspira fundo. — Quando eu precisei te deixar em São Paulo, foi porque ela havia descoberto que teria um encontro de negócios entre outros envolvidos naquela boate e achamos que poderíamos descobrir algo sobre o paradeiro dele, mas ninguém apareceu. Amor, infelizmente, da maneira que ele fez as coisas, dá a entender que você participava dos negócios. — suas palavras provocam uma sensação gélida em meu peito, como se meu coração fosse se desfazer e virar líquido.
— Não pode ser... — falo desolada. — Eu nem sabia de nada!
— Eu sei disso, eu sei — diz ele.
— Douglas, eu não quero ser presa! —um desespero toma conta de mim e meu choro torna-se incontrolável.
— Olha para mim — pede ele e eu o faço. — Você não vai ser presa, eu não vou deixar. Foi exatamente por não querer te ver assim que escondi isso de você, Karen — diz, acariciando meu rosto. — Não queria que você se preocupasse, pois eu estou resolvendo isso.
Vivian para na porta e pigarreia nos olhando, enquanto sopra a fumaça do cigarro na direção contrária.
— Nós — ela fala corrigindo-o. — Nós estamos resolvendo isso. — em seguida ela volta para fora.
— Karen, eu estou me dividindo em dois para conseguir ter tempo para resolver isso. Faço o inverso do meu trabalho com a minha equipe. Afasto os indícios e todos os avanços para manter a investigação longe de você até conseguir uma solução.
— Meu Deus, Douglas — digo apavorada imaginando que a qualquer momento eu posso ser presa por causa daquele canalha do Ygor. Alejandro... Que seja! Vai ser difícil me acostumar.
Então é por isso que o Douglas passa noites em claro, por isso ficou nervoso quando quase abri aquela pasta da Interpol. E pensar que eu fui uma egoísta da pior espécie meses atrás.
— Amor, eu faria qualquer coisa para saber o que está passando pela sua cabeça agora — diz ele me analisando.
— Douglas, você me pediu apenas para fingir que não sabia que você estava passando por conflitos psicológicos, e eu me recusei.
— É diferente, pequena — diz em tom calmo enquanto acaricia meus cabelos. — Nós ainda nem nos conhecíamos direito. Não se sinta assim, porque não é a mesma coisa. — abaixo a cabeça ainda comparando as situações e imaginando que se eu tivesse atendido o pedido dele, as coisas ainda teriam tomado o mesmo rumo. Se seria ele o policial à frente deste caso.
— Eu sei que você está fazendo o seu melhor, Douglas. Mas eu não confio nela — admito.
— Mas eu confio — diz de forma absoluta. — Te garanto que se eu conhecesse alguém em quem eu confiasse e que trabalha melhor que ela, teria outra pessoa aqui agora — diz em tom baixo. — Ela pode ser um pouco doida, mas sabe o que está fazendo e qual é a importância disso para mim. Aliás, seu pai a conhece e confia nela também.
— Meu pai?! — indago abismada. — Ele está sabendo disso???
— Está. Foi contando tudo isso a ele que consegui convencê-lo de que não sou um monstro e nem o homem perigoso que ele pensava que eu fosse. Ele exigiu conhecer a tal policial que está me ajudando e eu os apresentei durante a semana. Inclusive ele sabe que ela estaria aqui, por isso insistiu tanto para que você fosse para São Paulo também.
— Meu Deus... — digo pasma.
— No início eu até me arrependi, pois ele quis contratar o melhor advogado do país para te defender, só que você não está sendo indiciada a nada ainda e nem vai, pois eu não vou deixar isso acontecer.
— Eu nunca imaginei que fosse passar por uma coisa dessas — falo perdida com todas as informações.
— De certa forma, eu estou um pouco aliviado, pois detestava a sensação de estar escondendo isso de você. Agora não tenho mais segredo nenhum, todos os meus fantasmas já se mostraram. Você sabe sobre meu erro de julgamento naquele assalto e foi quem me motivou a assumi-lo. Sabe do suicídio do meu pai, do meu medo de acabar como ele, e que o cara que eu investigo, é o seu ex-namorado.
Eu nunca senti tanto medo na minha vida. Estou grávida e corro o risco de ser presa injustamente.
— No dia em que tivemos aquela briga em frente à clínica, você disse que já tinha tudo para prender o cara que estava investigando. Estava se referindo a ele? — questiono e ele assente. — Então ele está aqui no Rio?!
— Esse é um dos problemas — diz ele. — Quando ele te deixou pela última vez, foi quando um agente o identificou por acaso na rua. Isso ocasionou uma perseguição, mas ele despistou o agente e logo depois sumiu. A investigação já havia sido iniciada, mas como ele estava usando documentos falsos, não constava que ele estava aqui. Através das informações contidas no seu notebook, descobrimos que ele voltou. Hoje tentaríamos localizá-lo, porém, não poderíamos prendê-lo devido a origem da informação ser um objeto do qual não tínhamos um mandado de busca e apreensão, entende? Estamos no escuro.
Sei que o Douglas fará qualquer coisa para me proteger, mas não acho que esse seja o melhor jeito de resolver isso.
— Douglas — pronuncio seu nome analisando se minha decisão pode ser mais eficaz que a dele. — Eu quero me apresentar à polícia e entregar meu notebook como prova.
— Não! — diz ele de imediato. — Você não pode fazer isso!
— Como não?! — questiono. — Eu sei que é arriscado, mas se esse é o único jeito de prendê-lo, eu quero fazer isso. Por que eu não posso? — Douglas se levanta e começa a andar sem rumo pela cozinha.
— Porque eu não quero esse cara preso, quero ele morto!!! — ele esbraveja e vai para a sala em passos pesados.
Permaneço no mesmo lugar abalada com tudo e tentando processar o que aconteceu nos últimos minutos. Vivian a adentra a cozinha e apaga o cigarro na pia.
— Eu já tentei convencê-lo de que essa não é a melhor maneira de resolver as coisas — diz ela. — E se eu não consegui, você também não vai.
Uma mistura de repulsa, raiva e nojo sobem à minha garganta.
— Não me assemelho a você em nada — digo olhando-a com asco da cabeça aos pés. — Posso ter algum artifício que você não tem.
— Boa sorte para encontrar algum.
Ela caminha para a sala, atrás do Douglas. Como isso me irrita! Logo ele surge novamente me olhando assustado.
— Por um momento eu esqueci que a Vivian ainda estava aqui. Ela te fez alguma coisa??? — olho-o de lado e respiro fundo.
— Douglas, tire essa mulher de dentro da nossa casa — rosno e ele me encara apreensivo.
— Mas Karen, ela está me ajudando...
— Não vou falar duas vezes.
Ele se vira voltando para a sala e segundos depois, o som do salto dela vai ficando cada vez mais alto à medida em que ela volta até aqui. Seu olhar direcionado à mim poderia me colocar em chamas, se eu já não estivesse. Ela pega sua bolsa sobre o balcão e some pela porta dos fundos. Instantes depois, ela sai cantando pneu.
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