50
Naquele dia, cheguei em casa com um peso a menos. Eu estava mesmo tratando o Daniel como se ele fosse uma taça de cristal, mas foi por gostar muito dele. Aquele momento constrangedor para nós dois precisou acontecer para que aquela conversa surgisse. Precisávamos colocar os pingos nos "is" e seguir em frente sem lacunas entre nós. Fomos, somos e sempre seremos amigos independente das curvas que tivemos pelo caminho.
Na terça-feira, Douglas e eu passamos no apartamento dos meus pais para uma visita rápida. Mais uma vez o congresso virou assunto e agora meu pai está insistindo bastante para que eu vá, pelos mesmos motivos do Daniel. O Douglas não só está ciente sobre a possível viagem, como me incentiva a ir também.
Hoje já é quinta-feira e eu ainda não decidi nada. Durante a semana toda, fiquei analisando minha ida enquanto meu coração, meu corpo e minha alma querem ficar. Não sei se é por causa dos hormônios, mas não quero ficar longe do Douglas mais do que o necessário.
— Não dá mesmo para você ir comigo?! — pergunto ao Douglas pela milionésima vez enquanto ele para o carro em frente à clínica.
— Não, pequena — responde com paciência. — Eu estou atolado de trabalho e seria muito tempo fora.
Faço uma expressão triste e decepcionada a fim de que isso o faça decidir ir comigo, mas de nada adianta, ele apenas me beija com carinho.
— Virei te buscar mais tarde — diz ele. — Tenha um bom dia.
— Você também — devolvo tristonha e saio do carro.
Eu sempre consigo convencê-lo a qualquer coisa com minhas caras e bocas, mas esta tarefa está me dando muito trabalho. Ele disse que está atolado de trabalho, e está mesmo. Até quando ele consegue chegar em casa cedo, fica em frente ao computador por longas horas estudando aquela maldita investigação. Se for para isso ter um fim logo, eu aceito que ele fique.
Tem estado um clima bem agradável no trabalho. Marcela e Daniel têm se dado bem e acho isso muito bom. Independente de se tornar algo sério ou não, o Daniel precisa tentar encontrar o amor de sua vida. Ele é um homem maravilhoso, educado e carinhoso. Sem contar que consegue fazer uma mulher gemer seu nome em várias notas diferentes.
O dia passou envolto por pensamentos misturados sobre a ida ao congresso, ficar longe do Douglas por dois dias, e a cena que vi há alguns dias na sala do Daniel. Agora vejo que minha reação foi estranha. Não, minha reação foi normal, estanho foi eu ter questionado o Daniel sobre ele e a Marcela. Não é da minha conta, independente de nossa amizade.
Enquanto finalizamos o sistema da clínica, meu celular toca. É uma ligação do Douglas.
— Só mais cinco minutos e estarei saindo — atendo já justificando meu atraso.
— Não estou aí, pequena — diz ele. — É por isso que estou ligando, para avisar que vou demorar. — fico um pouco chateada e logo um desânimo toma conta de mim.
— Sério?! — indago triste. — Por que não me avisou mais cedo?
— Porque eu só soube agora, amor.
Fico em silêncio tentando contra-argumentar. Paola gesticula ao meu lado querendo saber o que está acontecendo.
— O Douglas não vai poder vir me buscar — respondo à ela.
— Vamos para minha casa então — diz ela. — Vou pedir uma batata turbinada com Coca para a gente.
— Vai, amor — fala ele, concordando com a Paola. — Quando eu sair daqui, te busco na casa dela.
— Tá bom — respondo ainda revoltada, mas só um pouco, pois uma batata frita agora seria perfeito.
• • •「◆」• • •
Não sei se é por fome ou olho grande, mas essa batata parece estar demorando uma eternidade para chegar. Os minutos passam lentamente e Paola e eu resolvemos arrumar a mesa de centro para acomodar nosso lanche. Enquanto isso, o Wesley chega aos berros no telefone.
— Que se dane! Eu não quero saber, Bianca! Quem é o dono da porra do salão?! Então relaxa e vai viver a sua vida!
— Nossa, Wesley! — Paola exclama quando ele desliga.
— Minha lindeza! — diz ele com animação vindo até mim. — Você nem imagina quem esteve no salão hoje.
— Minha mãe?! — digo com incertezas.
— Não, amore. Sua mãe só aparece lá quando os fios de cabelo branco começam a aparecer mais que os loiros — diz ele sorrindo. — Aquele nojo de pessoa que atende pelo nome de Samara.
— Mentira!!! — Paola fala abismada. — Quando ela te viu, enfiou o rabo entre as pernas e se mandou, não é?
— Que nada... Ela não me reconheceu e a Bianca foi quem a atendeu. Eu fui para o meu escritório e fiquei observando — começa ele. — Ela queria platinar o cabelo, vê se pode?! Feia daquele jeito... Eu preparei o matizante com uns produtos que estavam separados para ir pro lixo, porque já haviam passado da validade.
— Credo, Wes!!! — falo espantada e rindo ao mesmo tempo.
— É por isso que a Bianca estava dando um ADP no telefone — fala irritado. — Foi ela quem aplicou, está com medo do processo.
— Ela tem razão, Wesley — digo defendendo-a. — A culpa vai cair em cima dela.
— Vai nada — Paola diz convicta.
— Relaxem. A merda que der, eu como — fala ele me causando repulsa.
Nosso lanche chega e começamos a comer. Paola coloca uma música de fundo animada e de repente, parece até uma festinha. Ficamos um tempo debatendo sobre o problema que o Wesley vai ter quando o cabelo da Samara começar a cair. De verdade, com ela eu não me importo. Espero que a marca do meu salto esteja na testa dela até hoje. Me preocupo é com a reputação do salão do Wes, isso, sim.
Já estou exausta de tanto comer e esperar o Douglas quando ele liga novamente.
— Oi, amor — atendo no viva-voz por causa da música. — Já está chegando?
— Estou saindo daqui agora, Karen — fala ele um pouco decepcionado.
— Tudo bem.
— Me diga uma coisa, você decidiu se vai no congresso?!
— Você vai comigo? — tento pela última vez.
— Você sabe que não, Karen — fala em um tom mais rigoroso. — Seu pai está com muitas expectativas de que você vá. Se não for, ele pode achar que o motivo sou eu. Foi tão difícil conquistar a confiança dele...
Ele tem razão. Meu pai sempre teve a sensação de que eu tomo as minhas decisões baseadas no meu relacionamento, e não na minha vontade própria.
— Tá bom — respondo. — Eu vou.
Vai ser bom passar um tempo longe do meu namorado, dá saudade.
— Karen, Karen... — ele pronuncia meu nome com malícia. — Eu sei que foi de propósito.
— Então não vale?! — indago provocando-o enquanto Paola e Wesley ficam perdidos no assunto.
— Vou pensar no seu caso. Daqui a pouco chegarei aí.
— Até daqui a pouco então — digo em despedida.
— Até. Ela vai.
— Quem vai? — questiono confusa.
— Até que enfim — diz uma voz feminina do outro lado da linha enquanto Wes e Paola arregalam os olhos.
— Douglas??? — chamo desconfiando do que possa estar acontecendo.
— Eu pensei que não conseguiria convencê-la, Vivian — ele a responde.
— Ele esqueceu de desligar!!! — Paola fala boquiaberta à medida em que eu perco o chão ao saber que ele está com a Vivian dentro do carro e falando de mim, sobre a viagem, sobre me passar a perna.
Wesley corre para abaixar o volume da música e eu tapo minha boca para abafar tanto o meu suspiro de decepção e tristeza, quanto alguma palavra de ódio que possa escapulir.
— Eu também duvidei da sua capacidade, grandão — ela fala com sarcasmo.
— Então, temos o final de semana todo — ele fala de forma impassível.
Meu ódio aumenta no mesmo minuto, pois este era o motivo de tanta insistência da parte dele. O mundo parece desabar sobre a minha cabeça, mas a dor é no coração.
— Não, Douglas. Eu só tenho a sexta e o sábado livres.
— Que seja. O que importa, é que não passará deste fim de semana.
— Quando ela vai?
— Amanhã à noite.
— Perfeito. Ela vai sair e eu vou chegar, você sabe. Isso estava demorando muito para acontecer e eu estou ansiosa. — Paola e Wesley ficam chocados, assim como eu.
— Eu sei. Parece que você está mais interessada que eu!
— Talvez eu esteja mesmo. Ah, vê se compra um bom energético, Douglas! Da última vez, eu mal consegui trabalhar no dia seguinte. — ele gargalha alto. — Você me dá muito trabalho. — meu estômago se revira e uma forte náusea se apossa de mim.
— Mas é um trabalho que você gosta, sua safada! Não reclame! Na verdade, você deveria...
A ligação cai e eu corro para o banheiro para libertar o que aprisionei nos últimos minutos. O nojo de cada palavra que ouvi me faz vomitar de repulsa. Queria dizer que eles são repugnantes, dois infelizes, que se merecem mesmo. Lavo o rosto e volto para a sala.
— Karen, você está bem? — pergunta Paola com uma expressão tão triste quanto a minha.
— Não... Eu não sei — respondo ainda tentando digerir o que ouvi.
Me sento no sofá e enterro o rosto às próprias mãos e choro. Os soluços ficam incontroláveis e eu fico com a sensação de estar perdida, de ter vivido uma mentira. O Wesley me traz um copo d'água e eu mal consigo segurá-lo, pois minhas mãos tremem.
— Eu estou com um ódio desse cara!!! — Paola grita e começa a andar de um lado a outro da sala. — Ele me pediu seu telefone. Eu neguei. Ele insistiu, ficou exatos CINCO dias indo no hospital quando terminava meu plantão. Eu cedi, contei onde você estava trabalhando e PERMITI que ele fosse até você. De lá para cá, ele pisou na bola várias vezes, mas eu continuei ajudando-o sempre que ele precisava. Fui com ele escolher seu anel!!! Eu fui com ele! Fui com ele!
Nem eu, nem o Wesley pronunciamos nada. Me surpreende o fato dele sempre recorrer à Paola, isso parece demonstrar que ele quer encontrar informações importantes sobre mim. Ela é minha melhor amiga e me conhece muito bem. Ninguém melhor que ela para dizer o que me agrada ou não. Mas por que tudo isso?
— Karen, o que você pretende fazer? — pergunta o Wes.
Faço o possível para parar de chorar, pois isso não vai adiantar nada. Em menos de vinte minutos o Douglas vai chegar e eu preciso decidir o que fazer.
— Vou pegar os dois no flagra amanhã — respondo enxugando as lágrimas.
— O quê?! — Paola indaga incrédula. — O pai do seu filho transando com outra? — ela se senta no sofá em minha frente. — Não vou deixar você fazer isso! Você não merece ficar com essa cena na sua cabeça para o resto da sua vida!
— Mas é isso que eu vou fazer! — falo ríspida, decidida.
— Karen — manifesta Wesley em tom baixo —, vai por mim, não é isso que você quer ver. Por mais que as coisas tenham ficado muito claras, no fundo, a gente fica desejando ver qualquer outra coisa, menos a confirmação dos fatos. O que você vai fazer depois de presenciar isso?
Penso por uns instantes enquanto bebo um pouco da água que o Wes me deu.
— Vou pegar minhas coisas e voltar para a minha casa — respondo enquanto recebo o olhar analisador da Paola.
— Não é esse "depois" — diz ele. — Vocês vão ter um filho, Karen. Qual é o seu plano?
É verdade. Vamos ter um filho. Por um momento, penso que não vou conseguir prender o choro que teima em ser mais forte que eu, mas eu o confino.
— Eu vou me mudar para São Paulo. — Paola arregala os olhos. — Ele vai poder ver o bebê quando quiser, mas eu preciso ficar longe dele.
— Karen — Paola começa a falar e inspira fundo —, não se pode decidir nada de cabeça quente. Se você optar por se separar dele, precisa conversar sobre isso e explicar tudo. — eu gesticulo negativamente. — Conte que ouviu a conversa e não quer mais ficar com ele.
— Não, Paola — nego. — Eu quero ver isso. Eu preciso. — agora é ela quem balança a cabeça me reprovando.
— Amore, presta atenção numa coisa — fala Wesley. — Ele te pediu em casamento e parece que o que ele sente por você, é muito forte e sincero...
— Mas está me traindo com aquela vagabunda! — interrompo-o.
— Nós não sabemos, na verdade — ele fala calmamente enquanto eu fico confusa. — Eu acredito que ele vai aproveitar sua viagem para dar um ponto final e definitivo nesse caso deles. Existem pessoas que tem ligações diferentes, que a gente não consegue entender. Eles se conhecem há muito tempo e viveram algo fora da nossa compreensão. É bem capaz de quando você voltar, nem o ouça mais falar dela e vocês estarão prontos para viverem o resto da vida como quiserem.
— Wesley, você está se ouvindo??? — questiono intrigada, pois nunca imaginei que ouviria algo assim dele.
— Ignora, Karen! — pede Paola. — Foca no que estou falando, conte tudo e acabe logo com isso, se assim você quiser.
— Se eu contar o que ouvi, ele vai saber me dobrar — justifico. — Não é a primeira vez que isso acontece. Eu vou embora sim! No começo, posso morar com a Kássia e o Edu. Um bebê dá trabalho e eles vão me apoiar com certeza.
— Flor, vai com calma aí — diz Wes. — Sua irmã gosta de crianças sim, mas dando piruetas nas aulas dela, e não arrancando os bichos de pelúcia daquele sofá e escorrendo catarro do nariz nos projetos do Edu.
— Cala a boca, Wesley!!! — berra Paola enquanto eu me abstenho de respondê-lo. — Você está sendo ridículo!
— Não estou sendo ridículo coisa nenhuma! Só não quero romantizar a vida de uma mãe solteira que quer morar com a irmã e o cunhado! — ele se volta à mim. — Karen, estava tudo tão bem entre vocês... por acaso ele já tinha dado algum indício de que estão juntos?!
— Vários! — respondo. — A Vivian já mandou uma foto seminua para ele e foi por isso que eu levei o Daniel para jantar comigo naquela vez, no restaurante do irmão do Diego. — Paola se espanta.
— Como é?! — Wes interpela chocado.
— É isso — confirmo. — Ele inventou uma boa história depois que soube que eu estou grávida e conseguiu me convencer. — faço uma pausa esperando reações, mas eles estão perdidos, assim como eu. — O Ygor sumiu no mundo, evaporou, escafedeu-se sem deixar nenhum rastro e até hoje não sei se ele me traiu ou qualquer outra coisa. O Douglas está fazendo diferente, está deixando sinais pelo caminho, pistas... Eu vou seguir cada uma delas, até desmascará-lo.
— Tá certo — diz Wes. — Eu vou te ajudar!
— Você enlouqueceu, sua bicha?! — esbraveja Paola. — Vai contribuir com isso???
— Ou eu posso fazer isso sozinha — falo. — Não vai fazer diferença.
Eles oscilam entre olhar para mim e se entreolharem por alguns minutos.
— Vai fazer diferença sim — diz ela. — Não vou poder cortar o pau dele se eu ficar aqui.
Me sinto aliviada por ela concordar em me ajudar. Com certeza irá fazer diferença, pois eles são minha fortaleza, são eles quem estão sempre ao meu lado, me apoiando em cada decisão. Certa ou errada, como essa pode acabar sendo, no fim das contas.
Ouço a buzina do carro do Douglas e isso nos tira de um momento de tensão, porém, traz outro.
— Vai conseguir fingir que está tudo bem até amanhã?! — Paola me pergunta.
— Não tenho certeza — respondo. — Mas vou tentar com todas as minhas forças.
Os dois me abraçam forte e eu me dirijo até a porta.
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