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Meu vinho favorito agora é a coisa da qual eu mais tenho nojo, depois da Vivian. Nada como um bom porre para fazer com que a gente compare coisas nojentas à coisas rançosas. O cheiro desse vinho estava espalhado pela casa me lembrando da minha bebedeira e agora o sinto em todos os lugares. Por sorte, todo o meu mal estar de ontem foi por causa do exagero na bebida e hoje estou bem melhor. Espero ficar assim durante toda a gravidez, mesmo sabendo que isso é raro.
Douglas e eu combinamos de levar minhas coisas aos poucos. Não quero abandonar minha casa e nem vendê-la. Talvez eu a alugue. Antes de sair de casa, conversei com a Dona Marly sobre minha mudança e levar o Théo. Ela ficou um pouco abalada e isso me surpreendeu. Eu não poderia tomar uma decisão dessas sem perguntar o que ela queria. Depois de algumas lágrimas derramadas, eu acabei optando por deixá-lo com ela até que se acostumasse com a ideia, afinal, são quase cinco anos de guarda compartilhada.
No caminho para a clínica, mandei mensagem para a obstetra para saber se tinha algum horário vago hoje, mas não tem. Porém, ela foi muito atenciosa ao me dizer que vai me atender em parte de seu horário de almoço. Estou mega ansiosa pela consulta e também muito preocupada devido a forma desleixada com a qual eu estava me cuidando. O Douglas vai trabalhar o dia todo, mas disse que estará na consulta comigo.
Assim que entro na clínica, a Marcela me olha de modo estranho.
— Que cara é essa, Marcela? — pergunto ao me aproximar do balcão onde ela está colocando um pequeno arranjo de flores. — Parece que viu um fantasma.
— Seu pai está aqui — responde em um sussurro.
— Sério?! — pergunto abismada. Sua expressão me preocupa.
— E ele não está sozinho...
Penso em perguntar quem está com ele, mas não preciso. Meu pai surge no início do corredor acompanhado do Daniel e logo meu coração dispara com o choque. Não entendo o que ele faz aqui, mas não tenho certeza se é uma boa ideia perguntar na frente do meu pai. Os dois conversam seriamente e em seguida, apertam as mãos. Olho para a Marcela buscando um meio de me distrair até que meu pai resolva vir falar comigo, mas acho melhor que nem venha, pois ele não deve ter nada legal para falar depois daquele mal entendido.
Ouço os passos deles e congelo pensando no sermão que estou prestes a ouvir, mas para a minha surpresa, meu pai passa direto e vai embora. Ele deve estar muito decepcionado comigo para chegar ao ponto de nem me dar um "bom dia".
Ao me virar para ir para minha sala, dou de cara com o Daniel e ainda piso em seu pé. Fiquei tanto tempo parada olhando para o meu pai enquanto entrava no carro, que até esqueci dele.
— Desculpa! — peço envergonhada enquanto ele faz uma careta.
— Tudo bem — fala sorrindo. — É brincadeira, não doeu.
— Que bom! — digo aliviada. — Eu precisava mesmo falar com você.
— Bom, então vamos até a minha sala — fala estendendo as mãos para o corredor e eu acho que estou azul neste momento.
— Como assim?! — indago perplexa.
— Vamos, te explico no caminho.
Nem precisa mais. Minha pergunta foi muito idiota, pois é claro que meu pai teria coragem de contratar um guarda-costas lutador de Jiu Jitsu e apaixonado por mim, para fazer minha segurança. Entramos na sala da ortopedia e eu me sento aguardando sua explicação. Daniel assume sua cadeira e de repente, ele fica muito bem nela. Seus olhos azuis combinam perfeitamente com o esqueleto de gesso no fundo da sala, seus cabelos castanhos e lisos contrastam em harmonia com as paredes brancas e até seu perfume parece ser o cheiro que faltava aqui dentro. Enfim, como não me dei conta antes de que o lugar dele é aqui?
— Seu pai me procurou na semana passada e me deixou bem preocupado — diz com os dedos entrelaçados sobre a mesa.
— O que ele te falou?
— O que a rua toda viu — diz ele.
— Foi um mal entendido, Daniel — explico. — Ele só me segurou. Eu não gostei disso e acabei desferindo um soco nele. — faço uma pausa sentindo vergonha da minha atitude enquanto o Daniel gargalha, mas de repente me toco de algumas coisas. — Você já sabia disso quando saímos no sábado?!
— Sabia — responde com firmeza desfazendo o sorriso que abriu há pouco. — Eu estava preocupado com você e achei que fosse tocar no assunto, mas você não falou nada e decidi que não perguntaria.
Me sinto dentro de um complô onde todos me tratam como se eu fosse algo sensível que pudesse se desmanchar caso fossem mais diretos comigo.
— Meu pai não tinha o direito de te importunar e pedir para trabalhar aqui, não por este motivo.
— Não foi assim que aconteceu — fala ele. — Seu pai e eu temos conversado muito de uns tempos para cá. Estávamos nos organizando para o congresso de medicina que acontecerá em São Paulo este mês... Enfim, ele sabia que eu queria sair de um dos hospitais e aproveitamos o pedido de demissão da...
— Dra. Olga?! Pediu demissão? — indago desconfiada.
— Isso, a Dra. Olga. Foi no sábado à tarde, mas seu pai só me ligou ontem.
Ficamos em silêncio uns segundos enquanto eu avalio a veracidade disso, uma vez que aquela doutora não atendia no sábado, e pode ter entrado em contato com os meus pais por telefone. Entretanto, meu pai facilmente demitiria alguém para conseguir o que quer. Mas existem outras coisas ocupando a minha mente no momento.
— Daniel, deixando isso de lado um pouco, eu quero te pedir desculpas por ter te... — repenso o que dizer. — Atacado naquela noite.
— Não sei se consigo te desculpar — ele fala pensativo e eu já começo a me sentir culpada. Meu rosto cora e tenho certeza de que sou a pior pessoa do mundo. — Eu estou brincando — diz e solta uma gargalhada.
— Seu... — solto um grunhido estranho e ele ri ainda mais. — Já fui atacado por você antes e já sei lidar com isso.
— Sério? Tudo bem mesmo para você trabalhar aqui? Comigo?
— E com a Paola, o Henrique, a Marina... — completa insinuando que eu não sou a única aqui.
— Você entendeu! — argumento.
— Entendi — afirma dando uma piscadela.
Estou imensamente feliz pelo Daniel estar aqui e isso faz com que eu não dê tanta importância à possibilidade de tudo isso ser mesmo um jogo do meu pai. Se essa contratação teve um cunho de interesse ou não, estou deixando de lado para aproveitar a companhia de uma das melhores pessoas que conheci no meu primeiro local de trabalho. Levanto-me e o abraço amigavelmente dando um ponto final à qualquer ressentimento sobre aquela noite na minha casa.
— Vamos tomar um café? - pergunto animada. — A Paola já deve estar chegando e vai adorar saber que você agora faz parte da nossa equipe!
Nos dirigimos à sala reservada aos funcionários e apresentei o Daniel à todos que estavam ali no momento. Na hora de me servir, lembrei que não posso mais tomar tanto café e substituí por um suco. Além de mudar meus hábitos alimentares, eu preciso ser discreta e não chamar a atenção para a minha gravidez por dois motivos: um é que meus pais ficariam sabendo antes do momento adequado e o outro, é que isso pode atingir o Daniel.
Não demorou muito e a Paola chegou. Parecia manhã de Natal e o Dani era o presente que ela havia pedido o ano todo para o Papai Noel. Nós três sempre fomos o melhor trio daquele hospital e agora seremos aqui na clínica também.
Antes de começar os atendimentos da manhã, pedi à Paola para me ajudar a manter a descrição na hora do almoço, momento em que estarei em consulta com a obstetra, já que os olhos do Daniel, supostamente, são os olhos do meu pai aqui dentro. Ela concordou e acho que não terei problemas quanto a isso.
Estou uma pilha de preocupação com o bebê e precisava, pelo menos, ouvir a voz do meu namorado para me acalmar. Passei todas essas horas aguardando alguma mensagem ou ligação dele para avisar que já estava vindo, mas nada. Eu mesma liguei e só dava caixa postal. Pedi um delivery para facilitar, assim me alimento na primeira parte do tempo e depois posso fazer os exames.
Até que não foi muito difícil disfarçar minha ida à obstetrícia, pois eu já tinha que levar uma ficha para o preenchimento de materiais que precisam ser repostos. O único problema é que o Douglas não veio e isso me deixa chateada. Eu até esperaria mais, mas não posso atrasar o atendimento. Chamei a Paola para estar comigo neste momento. Entramos na sala da Dra. Marina e eu sinto um frio na barriga e um medo gigantesco, porém sua experiência e total jeito para lidar com gestantes me acalmam, pelo menos um pouco. Ela me parabeniza muito animada com a novidade, mesmo não tendo muita amizade comigo, mas só por falta de tempo mesmo. Temos quase a mesma idade e teríamos sido ótimas amigas se tivéssemos nos conhecido na faculdade.
— Nem precisa me pedir segredo, Karen! — diz risonha. — Sei que você é bem reservada.
— Obrigada, Marina — agradeço de forma simpática.
— E o seu namorado, não vem? — indaga desfazendo um pouco o meu sorriso.
— Não consegui falar com ele. Acho que teve algum imprevisto no trabalho. — respondo voltando minha atenção para um cartão de gestante em suas mãos. Automaticamente ela faz o mesmo e começa a consulta.
É mais demorado do que imaginei. Um milhão de perguntas sobre histórico de doenças na família, se fumo ou bebo e etc. Respondi à todas as perguntas e expliquei que tomava o anticoncepcional tentando entender como engravidei e a resposta me surpreendeu: não usamos camisinha no período em que tomei o antibiótico para a garganta. Ele cortou o efeito do contraceptivo. Falei também sobre minha má alimentação, ingestão de álcool e todos os meus medos. Ela passou uma penca de exames de sangue e finalmente chegou a hora da ultrassom.
O gel que a Dra. Marina coloca na minha barriga, traz ainda mais ansiedade à mim. Quero muito ver se meu bebê está bem e a hora é agora. Seria, se alguém não batesse à porta. Se não fosse por um biombo, eu não deixaria a Paola abrir. Ela abre a porta e uma voz ecoa pela sala.
— Papai chegou. — é a voz do meu namorado fazendo meu peito acelerar em resposta enquanto a Paola e a Dra. Marina caem na risada. Ele surge ao lado do biombo e caminha até mim. — Desculpa pela demora, pequena — pede em tom baixo e carinhoso. — Meu celular descarregou e a moto quebrou. — ele mostra as mãos sujas de graxa.
— Ah, mas você chegou a tempo para o grande espetáculo! — diz a doutora, empolgada.
— Que bom! Eu não queria perder isso por nada — diz deixando um beijo em minha boca e eu sorrio em seguida sentindo uma lágrima escorrendo pelo canto dos olhos.
Todos voltamos nossa atenção para o monitor enquanto as primeiras imagens começam a aparecer. Tão pequeno e indefeso... Porém, consigo ver os brotinhos dos bracinhos e perninhas e uma sensação inexplicável se apodera de mim.
— Tinha que ter um bebê aí dentro, não? — diz o Douglas deixando claro que não está entendendo nada das imagens e eles riem. Eu não vou conseguir sorrir até ela dizer que está tudo bem. Alguns longos instantes até as medições necessárias e meu coração se aperta.
— Papais, o bebê de vocês está muito bem — me permito sentir alívio e deixo minhas preocupações se esvairem pelos olhos, principalmente porque ela acaba de conseguir uma imagem perfeita do perfil do bebê e seus movimentos super ativos. — Karen, você está com aproximadamente 10 semanas de gestação.
Saber que uma vida está sendo gerada em meu ventre me faz sentir a mulher mais feliz do mundo. Já me sinto mãe. Nosso momento carregado de emoção ganha uma trilha sonora quando as batidas do coração do nosso filho começam a ressoar na pequena sala.
— Meu Deus! — exclama Paola. — Parece a bateria da Viradouro! — diz arrancando sorrisos de nós.
Miro meu olhar para o Douglas por um breve instante e vejo que não sou a única a derramar algumas lágrimas. Guio minha outra mão ao seu rosto afastando suas lágrimas e ele faz o mesmo comigo em um gesto intenso e carinhoso.
A Dra. Marina nos informa sobre outras coisas também, como o peso e o tamanho aproximado do bebê. Eu fico encantada com cada detalhe que ela fala e também muito aliviada por ele estar bem. O Douglas quer saber se é menino ou menina, mas ainda é muito cedo. Só falta realizar os exames laboratoriais para ficarmos totalmente tranquilos.
Saímos os três da sala radiantes e atrasados para retomar os trabalhos. Como preciso entregar a lista de materiais para a Marcela fazer os pedidos, acompanho o Douglas até a saída da clínica. À medida em que nos aproximamos do balcão, o Daniel entra, provavelmente retornando do almoço. Assim que o Douglas o vê, para de andar e o acompanha com os olhos até passar por nós. O Dani não é de trocar farpas, mas revida o olhar antes de adentrar o corredor.
— O que ele está fazendo aqui?! — Douglas pergunta.
— Meu pai o contratou — inicio tranquilamente enquanto deixo os papéis com a Marcela e seguimos até a saída. — Só fiquei sabendo quando cheguei.
— Tem certeza disso? — indaga com uma expressão desconfiada e isso soa como um insulto para mim. Paro assim que ultrapassamos a porta.
— Mesmo que eu soubesse! — respondo indignada. — Ele é um ótimo profissional e sempre fomos colegas de trabalho. Esse é um assunto que você domina muito bem. Por que a desconfiança?!
Eu sei que cometi um erro fundamentado em uma má interpretação, mas tenho a convicção de que não o farei novamente. Principalmente porque o Daniel jamais me mandaria uma foto seminu. Douglas respira fundo e me analisa.
— Tem razão — diz ele. — Desculpa, pequena. — suas mãos pousam em meu rosto e ele me beija de modo delicado. — Nos vemos à noite — diz e em seguida se agacha e beija minha barriga. — Tchau, bebê!
Sorrio com sua atitude e o observo até subir na moto. Logo após volto ao trabalho.
Inúmeras vezes me imaginei com os meus 30 anos, mas em nenhum desses devaneios eu estava em um relacionamento sério com alguém, e grávida. Por mais que façamos planos e tentemos imaginar nosso futuro, ele sempre vem acompanhado de surpresas.
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