05
Uma forte tempestade me surpreende no caminho para casa. Vou demorar muito mais para chegar. Logo hoje que estou tão cansada e louca por um banho quente. É um saco. O trânsito vai ficando mais lento e logo se inicia um extenso engarrafamento. Isso me lembra uma noite em que o Ygor e eu passamos por esta mesma situação enquanto voltávamos de um fim de semana em Búzios. Agora o que era ruim, ficou ainda pior, pois junto às lembranças, vêm os sentimentos que outrora eu pensei ter transformado em cinzas.
Era ele quem estava dirigindo, já que eu nunca tive muita paciência para conduzir o carro durante a noite. Conversávamos sobre o quão bom tinha sido passar a última tarde da viagem na Praia da Armação. Já tínhamos aproveitado quase tudo o que Búzios oferece de maravilhoso. Comemos o famoso Strogonoff de Camarão no restaurante mais badalado da cidade, que fica em uma rua paralela à Rua das Pedras, onde também fizemos uma caminhada e seguimos até a Orla Bardot, lugar em que tiramos várias fotos lindas com as esculturas de bronze de Brigitte Bardot, JK e dos três pescadores. Enfim, a viagem foi magnífica, e tudo tinha sido perfeito até o momento do engarrafamento causado pela chuva. Quando notamos que o tráfego estava literalmente parado há uns vinte minutos sem sinal algum de que iria se normalizar, encontramos uma forma de passar o tempo. Ele começou a me beijar, depois as coisas foram esquentando e como eu não sou de negar fogo, nem tentei resistir à pegada dele. A escuridão da noite nos camuflou e foi muito intenso. Poderia até dizer que fomos interrompidos pelas buzinas dos carros atrás de nós quando o trânsito voltou ao normal, mas quando começaram a buzinar, já estávamos recuperando nosso fôlego.
Ah... Se este carro falasse...
Todo fim de relacionamento é desagradável e o nosso não é diferente. Não consigo conter as lágrimas que brotam em meus olhos. Decidi sim deixar de esperar por ele, mas o sentimento não muda de uma hora para outra. É a minha fase de adaptação e preciso passar por ela, aqui neste carro, palco do nosso show mais quente, das nossas discussões bobas e das nossas tréguas.
Os carros começam a se movimentar como tartarugas. A chuva está menos carregada agora, então abro a janela do carro. Observo uma movimentação um pouco incomum para uma noite de chuva. Ando mais uns metros e avisto um homem que não me é estranho. Aguardo impacientemente os carros andarem mais. Chego a buzinar, mas é inútil, pois estou em um congestionamento. Saio do carro e quase sou atropelada por uma moto, no entanto não posso ficar aqui. Saio correndo feito uma louca para alcançar o sujeito, mas são muitos os obstáculos. Ao chegar à calçada fica ainda mais difícil, idosos a passos lentos, pessoas com crianças e ambulantes. Chego a derrubar uma bancada de doces.
— Ei! Tá maluca, senhora? — exclama o ambulante furioso.
— Perdão moço, estou com pressa. Me desculpa.
Continuo minha maratona até conseguir confirmar minha suspeita. Faltam mais alguns passos e estou sem fôlego. Toco em seu ombro com força virando-o em minha direção. É ele! Ygor!
— Chica!!! — ele ergue as sobrancelhas surpreso e avança em cima de mim com um abraço enquanto eu fico imóvel, com a respiração de um cavalo de corrida, só que mais elegante. — Eu acabei de sair do hospital. Perguntei por você, mas disseram que já tinha ido embora. — não consigo falar, me falta o ar. — Sei que você deve estar uma fera comigo e tem razão, fui um...
Minha mão arde e até chega a latejar por causa do tapa que acabei de disparar na cara dele. As pessoas ao redor começam a olhar e a sacar seus celulares para registrar o que pode vir a acontecer. Neste momento, ele leva uma das mãos ao rosto que deve estar tão ardido quanto a minha mão.
— Tá tudo bem, você tem o direito de me agredir. — na verdade eu não tenho. — Mas a gente pode ir para um lugar mais reservado para eu poder te contar o que aconteceu? Eu esqueci qual ônibus passa na rua da sua casa e acabei me perdendo. — a resposta mais adequada é não. Só que eu quase fui atropelada, derrubei os doces daquele senhor, corri o que pareceu ser uns 100km.
— Vamos pegar meu carro, se não tiver sido roubado — respondo séria e com muita raiva ainda.
Ele me segue enquanto caminhamos debaixo do chuvisco a passos largos e apressados. Já ouço a orquestra de buzinas. Mais alguns passos à frente, os veículos contornam o meu para conseguirem seguir seus caminhos. Ao me aproximar do meu carro, começam os protestos.
— Tinha que ser mulher! — grita um imbecil qualquer.
— Mulher tem que ficar na cozinha, volante é para homens! — só machistas resolveram passar por aqui hoje. Mas isso não me incomoda nem um pouco.
Entramos no carro e o silêncio é ensurdecedor, quero muito ouvir o que ele tem a dizer, mas não quero transmitir isso. Sigo procurando um local calmo para conversarmos. Avisto um quiosque meio vazio, não era o que eu queria, pois prefiro um local fechado longe do barulho de carros, ônibus e buzinas. Com este trânsito lento não tenho muitas opções.
Assim que nos sentamos, o Ygor pede uma água. Em vez de beber, ele me dá a garrafa. Eu quero recusar, mas minha boca está seca por conta da correria. Bebo tudo de uma vez e coloco a garrafa em cima da mesa sem nem perguntar se ele quer um copo.
— Pode começar — aviso.
Ele respira bem profundamente enquanto coça a nuca.
— Chica, eu voltei para a Colômbia por causa da nossa briga mesmo. Mas eu iria ficar lá só por uma semana, acabei ficando mais tempo porque minha mãe tava piorando. — a mesma ladainha... Não vou interromper, vou dar corda — Meu pai ficou me culpando, disse que se eu não tivesse vindo pro Brasil de novo, nada disso estaria acontecendo. Você sabe que a gente não se dá bem e além disso, a empresa está passando por dificuldades financeiras. Não daria para vir enquanto eu não conseguisse resolver isso pessoalmente. — ele faz uma pausa a fim de que eu diga alguma coisa. Me mantenho calada olhando em seus olhos. — Nesse meio tempo minha mãe faleceu, Karen. — ele abaixa a cabeça e ameaça chorar, mas segura.
— Eu sinto muito. — aguardo ele se recompor. — Mas meu número de celular ainda é o mesmo, assim como o da minha casa, do meu Whatsapp e minha conta do Facebook também tá ativa. — ele franze as sobrancelhas parecendo não acreditar no que estou dizendo.
— Você ouviu o que eu falei?!
— Ouvi sim e disse que sinto muito. Mas você não tem motivos para não ter dado notícias.
— Eu tava com raiva no início, e os problemas foram acontecendo tão rapidamente sem que eu pudesse ter tempo pra raciocinar direito. Não me leve a mal, eu sabia que você ainda estaria aqui, mas minha mãe tava doente e acabou morrendo. Imagino que tenha sido muito difícil para você ter ficado sem notícias minhas...
— De novo! — atropelo suas palavras.
— É, de novo. Mas se coloca no meu lugar um pouco, chica, pelo menos uma vez. Eu te amo tanto! O que a gente tem é tão especial...
— O que a gente tinha! — o corrijo.
— De qualquer forma você é muito importante pra mim. Você é o meu norte e eu preciso...
— Moça! Moça, a senhora está bem?! — uma voz masculina, que não é a do Ygor, berra na janela do meu carro. Sentindo uma forte dor de cabeça, olho para todos os lados procurando o Ygor, mas tudo o que vejo, é que estou sozinha dentro do meu carro em meio ao trânsito. Não estou acreditando que peguei no sono nesse engarrafamento...
— Senhora, vou repetir a pergunta. A senhora está bem? — me pergunta novamente o homem, que agora vejo que é um guarda municipal.
— Sim, eu acho que sim.
— Então siga em frente, está atrapalhando o trânsito.
Acelero ainda meio grogue de sono sem acreditar que tudo aquilo foi um sonho, ou um pesadelo? Que seja, ainda assim, sinto como se tivesse levado um soco no estômago. Mas poderia ter sido verdade.
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