03
Pego um lenço e tiro o embaçado no espelho do banheiro para encarar meu reflexo. Acabo de tomar um banho quente e até lavei os cabelos, mas meu rosto ainda denuncia o cansaço e o estresse dos últimos dias. Dos últimos quarenta e seis dias, sendo mais exata. Definitivamente não vale a pena sofrer por pessoas que nos tratam como um vento que passou.
Depois de tomar um café da manhã reforçado, gasto um bom tempo produzindo uma maquiagem para tirar a expressão "vai ficar tudo bem" e substituir por "está tudo maravilhoso". Nos olhos passo um lápis preto, delineador e bastante rímel. Finalizo com um batom vermelho mate e acho que já é o suficiente.
Ainda não está na hora de sair de casa, mas considerando que saindo mais cedo eu posso ter uma viagem mais tranquila, decido ir logo. Não quero mais dar chances à minha mente para lembrar de coisas ou pessoas inúteis. Portanto tento seguir viagem olhando tudo como se eu fosse uma pessoa diferente. Dessa vez não procuro alguém em especial, aliás, não procuro ninguém. Apenas me permito olhar o mundo ao meu redor.
Hoje a Paola não vai trabalhar comigo, pois está de plantão em outro hospital. Não teremos como bater um papo nos intervalos.
Como manda o protocolo de troca de plantão, estou em uma pequena reunião com o outro cirurgião para me atualizar sobre os pacientes dele, que serão de minha responsabilidade a partir de agora.
Segundo as informações que o Dr. Júlio Gutierrez está me passando, três pacientes foram internados e têm cirurgias marcadas para hoje à tarde. Uma angioplastia, uma revascularização do miocárdio e um cateterismo me manterão bem ocupada depois do almoço.
— O paciente Douglas Sant'Ana, policial do tiro no peito, já saiu da UTI há um dia e passa bem em relação ao ritmo cardíaco e à pressão arterial, mas está apresentando um quadro sugestivo de infecção. Já solicitei exames de sangue e urina, estarão prontos em duas horas — acrescenta.
Espero por mais alguma coisa que ele queira falar, mas ele não diz mais nada, e mesmo assim continua sentado à minha frente.
— Ok, obrigada — agradeço dando a entender que já pode se retirar.
— Ele está ansioso para te conhecer… "minha salvadora". Foi assim que se referiu a você — fala rindo e logo se perde em gargalhadas com deboche, enquanto eu o encaro sem achar a menor graça.
Como eu o detesto! Logo na primeira vez em que operamos juntos, discordamos de um procedimento e isso gerou uma discussão que foi parar na diretoria do hospital. No fim, eu venci. Desde então ele vive me provocando por qualquer motivo.
— Estou em um dia maravilhoso e você não vai conseguir estragar isso. Então, se quiser dar valor ao seu tempo, fala só o que for relevante — digo olhando para ele com um pequeno sorriso no rosto.
— Eles são todos seus agora — fala mais sério desta vez. Deve ter percebido que eu não vou cair na dele. — É isso. Bom plantão, Dra. Karen! A salvadora.
— Tenha uma ótima folga, Dr. Júlio. Vai pela sombra.
Ele sai batendo a porta, finalmente. Agora posso começar meu trabalho em paz. Organizo minhas coisas no armário e saio da sala. A enfermeira do plantão de hoje já está com tudo em mãos me aguardando na triagem.
— Bom dia, Dra. Karen!
— Bom dia, Samara! Quem vamos ver primeiro? — pergunto e continuo andando pelo grande corredor sugerindo que me acompanhe, pois o tempo é curto para os procedimentos que temos a fazer hoje.
— O policial teve febre, e o Sr. Nelson, paciente da angioplastia, tá apavorado. Os outros estão bem. Daqui a pouco vou administrar os medicamentos.
— Vamos acalmar o Sr. Nelson primeiro, não gosto que meus pacientes tenham qualquer preocupação com as cirurgias. — ela balança a cabeça positivamente e entramos no quarto. Ele não aparenta os cinquenta e oito anos que tem, mas está acima do peso e bem assustado.
— Bom dia, Sr. Nelson! Como está se sentindo?
— Tô um pouco preocupado, doutora. O outro médico não me deu muitos detalhes da operação. Você pode me explicar melhor? — pede confuso.
— Sim, é claro! — digo em tom suave. — Uma dor no peito como a que o senhor sentiu quando deu entrada, assusta muito, eu sei. Mas a angioplastia é um procedimento bem simples que vai desobstruir as artérias do seu coração com a ajuda de um catéter com um pequeno balão na ponta, que vai inflar desobstruindo os vasos, fazendo com que o fluxo de sangue volte ao normal. Vou introduzir um stent, uma pequena malha de aço cirúrgico, para manter a artéria desbloqueada na região. Mas isso eu acho que o Dr. Júlio já te explicou.
Conheço os discursos dele.
— Sim. O que me deixou preocupado, foi que ele disse que eu posso ter arritmia cardíaca, sofrer infarto ou ter insuficiência renal.
— Pode desenvolver alergias, hematomas, sangramentos — Samara vai arregalando os olhos gradativamente a cada palavra que eu digo, para ela estou assustando ainda mais o pobrezinho —, embolização de fragmentos do trombo e AVC — completo dando veracidade ao que o Dr. Deboche Gutierrez falou. — Mas isso vai depender muito dos cuidados após o procedimento, como um acompanhamento rigoroso com o seu cardiologista, principalmente nos primeiros seis meses, período no qual existe chance da obstrução voltar. Não se preocupe por agora, é só o senhor seguir minhas recomendações e vai ficar bem.
— Tudo bem, doutora — ele diz relaxando os ombros com uma expressão mais tranquila, diferente da qual vi quando entrei.
Saímos do quarto do Sr. Nelson e seguimos até o outro, onde está o paciente que há três dias estava sedado, aberto na minha mesa de cirurgia enquanto eu retirava um projétil de seu coração. Confesso que estou receosa, nunca nenhum paciente ficou ansioso para me conhecer. De fato acabou me deixando ansiosa por conhecer o dono daquele coração tão forte, que resistiu a um tiro.
— Bom dia, Sr. Douglas Sant'Ana! Soube que o senhor teve febre. Sente alguma dor? — pergunto tentando focalizar em seus olhos cor de jabuticaba, mas não posso deixar de notar as flores que trouxeram para ele. Parece que ele nota que estou com dificuldade para focar minha atenção em um único ponto.
— São para você — diz ele. O tom de sua voz é grave e firme. — Como forma de agradecimento por ter tirado aquela bala do meu peito.
Ele tenta disfarçar a emoção de ter escapado da morte, enquanto eu fico paralisada por alguns segundos oscilando entre olhar para as flores e para ele.
— São lindas... Não precisava se preocupar. Eu... — travo nas palavras, não estava esperando por isso. — Apenas fiz o meu trabalho. Eu gostei muito. Essas flores com certeza estão dando mais valor ao meu dia.
Droga! acho que meu rosto está vermelho, pois minhas bochechas estão quentes. O que eu estava falando antes de ganhar essas flores?
— Não estou sentindo nenhuma dor, mas ainda sinto frio, doutora. — acho que ele percebeu que eu perdi o fio da meada.
— Samara, verifica a temperatura dele enquanto eu dou uma olhada nos pontos. Posso? — peço.
— Claro. E pode me chamar apenas de Douglas mesmo. — ele tenta se erguer para começar a desabotoar a camisa.
— Não faça esforço, pode deixar que eu desabotoo.
Coloco as luvas e cuidadosamente vou abrindo a camisa dele. A região fica muito dolorida devido ao afastador usado na hora da cirurgia. Começo a tatear de leve envolta de todo o esparadrapo com o intuito de encontrar uma parte mais solta para que seja menos dolorosa a retirada. Noto um arrepio em sua pele, e ele fica um pouco desconcertado, até eu estou, mas não sei ao certo se esse arrepio se deve ao toque das minhas mãos ou se é frio, pois ele está quente. Puxo o esparadrapo com delicadeza, mas nem é preciso abrir muito o curativo, dá para ver que os pontos estão infeccionados.
— Depois de verificar a temperatura, faça a troca do curativo, Samara. Vou ver os outos pacientes e retorno, Douglas.
— Tudo bem — responde ele tentando ficar mais confortável na cama.
Agradeço mais uma vez pelas flores e as levo para minha sala. Em seguida dou atenção aos outros pacientes.
Meu dia está mesmo maravilhoso. Ainda não acredito que ganhei flores de um paciente. Ao longo da minha carreira, já ganhei muitos presentes de pacientes, como um maravilhoso bolo de cenoura com cobertura de chocolate, e lembro do sabor até hoje. Já ganhei até um jaleco com meu nome bordado à mão de um artesão, inclusive estou usando ele hoje. Mas flores, ainda não tinha recebido.
Quando retorno da visita aos pacientes
dou de cara com a Samara vindo ao meu encontro apavorada com o termômetro na mão. Febre de 39,8°. Ele estava se queixando apenas de um pouco de frio. Como piorou tão rápido?!
— Corre pro laboratório e pede para agilizarem os resultados dos exames dele — peço. Preciso saber com que tipo de bactéria estou lidando o quanto antes.
Volto ao quarto dele para fazer a medicação para febre, já que a Samara deve demorar um pouco com os resultados. Ao medicá-lo, não consigo ignorar o fato de que ele está tremendo muito. Arrumo os cobertores com cuidado e fico tentando decidir se saio do quarto ou se aguardo algum sinal de melhora.
— Desliga o ar-condicionado, mãe! Não tá fazendo calor hoje!
Meu coração se contorce dentro do peito ao vê-lo delirar dessa forma.
— É a Dra. Karen, Douglas. Você já vai se sentir melhor — tento confortá-lo.
Aos poucos seu corpo para de tremer, e ele adormece. Pego uma toalha limpa, molho na pia do banheiro e faço uma compressa para ajudar a baixar a temperatura. Observo com calma sua respiração e noto como ele é forte. Deve ter no mínimo 1,90m de altura. Seus traços do rosto são bem ângulos e o deixam atraente. É um homem muito bonito.
— Doutora, os resultados já estão comigo — Samara entra me tirando do transe.
Tiro a toalha de sua testa e me certifico de que ele está menos quente antes de ir para minha sala. Quando entro, abro os exames rapidamente e olho cada detalhe com atenção. Me espanto um pouco com o resultado. É uma infecção forte, e não é possível que ele tenha dado entrada no hospital doente. Trata-se de uma infecção hospitalar agressiva. Eu me sinto impotente. Somando o tempo de recuperação normal da cirurgia, mais a administração de antibióticos fortes, ele deve ficar internado entre vinte e trinta dias, no mínimo. Vai ser uma fase difícil para ele.
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