02
Chego em casa e tudo o que eu quero é um banho quente e ir dormir, mas só consigo tomar o banho mesmo, pois as fotos do Ygor ainda estão sobre a cômoda do meu quarto, e algumas roupas penduradas no cabideiro. Eu já poderia ter lavado e guardado essas roupas, mas assim eu tiraria o cheiro dele do meu quarto. É difícil não pensar no Ygor com todos esses fantasmas pela casa. Preciso juntar tudo isso e atear fogo.
Começo pegando os porta-retratos e os coloco sobre a cama. Depois, as roupas do cabideiro, mas sinto o perfume dele e isso me traz mais e mais lembranças. Sinto que estou perdendo as forças para continuar nessa missão de apagar os rastros do Ygor.
Por que é tão difícil deletá-lo da minha vida? Para ele foi tão fácil. Talvez apenas tirar essas coisas do alcance dos meus olhos já seja suficiente.
Junto tudo e abro o guarda-roupa com a intenção de deixar para me livrar disso amanhã, mas minha imaginação me faz cogitar a possibilidade dele voltar a qualquer momento, como na primeira vez. Como ele reagiria se visse que eu tirei todas as coisas dele da minha casa?
Desisto e coloco tudo no lugar me sentindo uma fraca, ingênua e mal amada. Com certeza tirar tudo daqui é a melhor maneira de recomeçar, mas neste momento eu não consigo. Me sento no chão com as costas na cama e logo a sensação de estar carregando um peso me consome. O cansaço do plantão excessivo, minhas frustrações pessoais e a saudade do Ygor me golpeiam a ponto de me fazer chorar. Deixo as lágrimas escorrerem pelo rosto sentindo o rastro quente até que se esfrie. Eu queria saber desamar, desapaixonar, desconhecer.
A exaustão começa a tomar conta de mim e decido deitar. Logo que me ajeito na cama, ouço uns barulhos na porta dos fundos. Eu já sei quem é. Estou sim muito cansada, mas não posso deixá-lo lá fora. Me arrasto para fora da cama e vou até a cozinha ouvindo os barulhos ficarem mais altos e mais desesperados. Abro a porta e o Théo entra na cozinha já pulando em cima de mim. Pelo cansaço, caio cambaleante, mas sorrio. Meu rottweiler, meu melhor amigo. Quase um filho.
Minha vizinha, a Dona Marly, me deu o Théo de presente. Eu cheguei a recusar lamentando e expliquei que trabalhando tantas horas fora de casa, não tinha como deixá-lo sozinho. Ela sabia que eu adorava essa raça e que sentia a falta de uma companhia, então me fez a oferta mais tentadora e irrecusável que alguém poderia me fazer, uma espécie de guarda compartilhada. Abrimos uma porta para ele entre nossos muros e assim, ela cuida dele quando eu estou trabalhando. Sempre deu muito certo.
O Ygor não gosta dele, aliás, não gosta de bicho nenhum. Então, mesmo eu estando de folga, ele dormia na casa da Dona Marly, mas só nas noites em que o Ygor estava aqui. Ele não arranhava a porta, não tentava derrubá-la, não latia. Acho que aprendeu a me compartilhar assim como eu e sua outra dona o compartilhamos. Mas agora parece que ele notou a minha tristeza e sempre que estou em casa, ele faz de tudo para chamar minha atenção e conseguir dormir comigo.
Quando ele me dá uma chance, levanto e corro para o quarto antes que ele me derrube de novo. Deito e ele faz o mesmo, em cima de mim e apesar de não ser noite, dorme comigo.
• • •「◆」• • •
Em algum momento do dia, acordei com muita fome. Antes de abrir a geladeira o Théo já tinha começado a latir, então coloquei mais ração para ele. Só que não foi o suficiente, tive que dividir meu hot-pocket com ele.
Deitamos novamente, porém o sono não veio, então levantei e peguei meu celular. Fui para a sala, me sentei no sofá e comecei a procurar alguma notícia do Ygor pelas redes sociais. Já desisti de ligar, o resultado é sempre o mesmo:
"O número para o qual você ligou, não recebe chamadas ou não existe."
É incrível como em um momento desses em que a tecnologia e os meios de comunicação facilitam tanto a nossa vida, eu não consiga encontrar nem sinal dele.
No Facebook só tem anúncios de shows em que ele foi marcado e que costumávamos ir nas minhas folgas, "minhas" porquê o trabalho dele lhe dava o privilégio de fazer seu próprio horário, ele administrava a empresa da família à distância. Nunca perguntei qual o ramo dessa empresa, ele não gostava muito de falar sobre a vida dele na Colômbia, e eu respeitava isso. Não era algo capaz de atrapalhar a nossa vida, e eu não cobrava esclarecimentos de nada da vida dele. Só sabia que ele e o pai não se davam muito bem.
Talvez fosse esse o motivo que ele tinha para não ficar me ligando. A mãe pode ter piorado e assim como ele não gosta de falar de como é a vida dele na Colômbia, seja reservado da mesma maneira com nossa vida aqui, e tendo que se dividir entre cuidar da mãe e dar mais atenção à empresa, é compreensível que não tenha privacidade para me ligar. É isso ou eu estou me recusando a acreditar que ele conheceu uma outra pessoa lá e tenha se apaixonado por ela. Ou quem sabe eu seja a outra pessoa e ele seja casado, tenha filhos. Me sinto devastada ao chegar à conclusão de que, talvez, eu tenha sido sua aventura de viagem.
Definitivamente eu preciso fazer alguma coisa. Preciso seguir a minha vida. Mesmo que ele volte e tudo se acerte, não posso viver em função de esperar e ficar procurando notícias, uma vez que era obrigação dele fazer isso.
• • •「◆」• • •
Acordo com os latidos ensurdecedores do Théo e dou um pulo da cama movida ao susto. Provavelmente ele está querendo fazer suas necessidades, então deixo-o sair e dou início ao meu dia. Há muito o que fazer. Só que antes mesmo de tomar meu café da manhã, meu celular toca estampando o nome da Paola na tela.
— Vamos bater perna no shopping hoje? — pergunta cheia de animação.
— Não vai dar — respondo esperando ela perguntar o porquê.
— O que você tem pra fazer mais importante que sair comigo na nossa folga?
— Apagar alguém da minha vida — falo com determinação desejando não fraquejar como ontem.
— Entendi tudo! Tô indo aí pra te ajudar!
Agora tenho certeza de que não vou falhar.
Encerro a chamada e preparo um café da manhã para receber a Paola. Só que diferente do que imaginei, não é bem o café que ela procura primeiro. Paola chega me dando todo apoio que preciso em forma de abraço. Não é preciso palavras nesse momento. Ela sabe que eu estava apegada demais ao Ygor, e agora consigo reconhecer isso com mais clareza. Acabou. Eu só preciso fazer meu coração entender isso. É como se o Ygor tivesse morrido e eu precisasse me livrar de tudo o que me remete a ele, que exala ele, que me faz vê-lo em todos os lugares. Eu só preciso de forças.
Assim que começamos a separar as coisas dele, o Théo também resolveu ajudar. Se arrastou para debaixo da cama e saiu com um tênis do Ygor na boca que eu nem lembrava que existia. De fato minha casa estava precisando dessa faxina.
Agora já é tarde, e a fumaça da pequena fogueira que fizemos com as coisas do Ygor já sobe pelos ares. Não é algo muito bonito de se observar, mas me ajuda a compreender como essa situação havia me deixado imóvel. Inclusive acho que se a Paola não tivesse vindo me ajudar, eu teria desistido novamente. Tudo dependia da minha aceitação sobre ter sido deixada, pois ela já havia sugerido que eu doasse as roupas dele, mas eu precisava queimá-las como se fosse um ritual, uma cremação.
Demorou, mas percebi que mesmo que eu não possa dizer estas palavras diretamente ao Ygor, ele está expulso, a partir de agora, da minha vida.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro