01
Eu nunca fui de me deixar abater por qualquer coisa. Sempre tive que fazer muitas renúncias ao longo da minha vida, mas nenhuma me abalou tanto quanto ter que escolher entre correr atrás de um sonho, e fazer o que os meus pais queriam. Naquele momento eu sabia que não teria como voltar atrás, e estaria travando uma luta eterna com eles se os contrariasse. Acabei escolhendo contrariar a mim mesma a ter que decepcionar os meus pais. Essa escolha me trouxe até este hospital. Lugar onde eu me afundo em trabalho tanto por amor à vida, quanto para esquecer minhas decepções. Faz tempo que deixei de ouvir meu coração para ouvir os dos outros. Antes eu ouvia meus sentimentos, agora ouço batimentos cardíacos descompassados, com ritmo, sem ritmo certo e o mais triste de todos, a ausência deles.
As perdas aqui também doem. Não são amigos meus, não são parentes e nem conhecidos. Mas são seres humanos que têm família e entes queridos que choram quando eu começo a dizer que fiz o que pude. Porém, quando corre tudo bem nas cirurgias, a recompensa é gratificante. Um sorriso, um abraço, um aperto de mão. Às vezes o mesmo choro da perda, mas que expressa o alívio de poder rever aquele ou aquela que minutos antes era o motivo de preces e orações.
Apesar de ser uma rotina difícil, ela se torna mais leve quando se tem bons amigos no ambiente de trabalho. Alguns estão aqui desde antes de mim, outros entraram comigo e alguns até depois. Eles me tiram dos momentos em que eu me desligo de tudo e volto a pensar no Ygor.
São 02h20 da manhã e eu estou tomando mais uma xícara de café para tentar me manter acordada em um plantão que já passa de dezesseis horas. Mesmo meu trabalho exigindo toda a minha atenção, é bem difícil até fazer uma ausculta cardíaca, pois minhas preocupações sussurram mais alto em meu ouvido. Não sei exatamente o porquê do Ygor ter sumido de novo, nem com quem está, ou se já pôs outra em meu lugar.
— Você tá pensando nele de novo? — Paola, enfermeira e minha melhor amiga, me pergunta entrando na cantina do hospital.
— Tá tão na cara assim?!
— Tenta não gastar seu tempo se preocupando com ele. — ela faz uma pausa. — Já faz quanto tempo? — ela sabe que faz um mês e meio que ele sumiu e não deu notícias, pela segunda vez. Mas está perguntando pra se certificar de que eu estou mesmo me preocupando demais.
— Exatos 45 dias — falo como uma criança revelando para a mãe que comeu o batom dela, tendo negado nas três primeiras vezes, e com a boca suja.
— Há oito meses ele fez a mesma coisa. Voltou dois meses depois dizendo que teve uns problemas e você aceitou ele de volta sem pensar duas vezes. Entendo que você ama esse cara, mas amiga, se ame primeiro e tenta parar de pensar nesse canalha! — seu tom é calmo, porém, sustenta as palavras que eu precisava ouvir.
— Eu... É que... — respiro fundo e recomeço. — Eu não entendo o que eu fiz de tão errado a ponto de ser abandonada sem merecer nem aviso prévio. A gente teve uma briga, mas por motivo bobo. Não imaginei que ele fosse querer ir embora por causa disso. — seguro a vontade de chorar, os olhos apenas se enchem de lágrimas.
— Não é você quem está errada. Vou ser sincera, você viu algo especial nele que eu não vi, Karen. Nunca presenciei ele sendo carinhoso com você. Mas também não vi sendo ignorante ou grosseiro. O que quero dizer, é que talvez ele não seja o homem da sua vida, apenas alguém que te proporcionou um momento bom, mas que agora, tá te causando um mal que você tá permitindo superar o que foi bom. Ele deve ter percebido que é o cara errado pra você e deu espaço para o certo se aproximar. E é claro que ele não teria coragem de se humilhar e te falar isso. — ela ri na última frase tentando tornar a situação um pouco cômica. Sorrio fazendo com que ela pense que conseguiu e me recomponho, afinal o plantão ainda não acabou e não posso ficar com cara de enterro.
Apesar desses sumiços que ele deu nos últimos meses, os dois anos anteriores foram perfeitos.
Ygor e eu nos conhecemos na saída de um supermercado próximo à minha casa. Eu estava prestes a atravessar a rua carregando várias sacolas quando ele estava passando de carro. Ele parou para que eu atravessasse, mas demorei alguns segundos para entender, já que os vidros do carro eram muito escuros. Quando entendi e comecei a andar, ele acelerou também. Paramos ao mesmo tempo. Eu, lerda na rua como ninguém, mais uma vez demorei pensando se ia ou não e a cena se repetiu. E se repetiu pela terceira vez. Foi uma vergonha. Desisti e fiquei ali parada até ele passar. Mas em vez disso, ele só andou até ficar na minha frente.
Assim que ele abaixou os vidros das janelas, fiquei impressionada por ele ser tão bonito. Pensei que ele fosse me chamar de lesma ou coisa do tipo, mas ele sorriu e perguntou se eu precisava de ajuda. As sacolas eram muitas e estavam pesadas para quem estava a pé. Respondi que morava ali perto, mas ele insistiu, e eu acabei aceitando. No caminho pedi desculpas pela minha lerdeza e ele riu dizendo que isso acontecia com mais frequência do que eu imaginava. Tinha um sotaque latino, o que o deixou ainda mais atraente. Ele me ajudou também a levar as sacolas para dentro de casa e, fora do carro, pude notar como ele era alto e forte. Seus olhos azuis, em breves instantes pareciam verdes.
Só quando já tínhamos levado as sacolas para dentro da minha casa, foi que percebemos que nem havíamos nos apresentado. Quando disse que meu nome era Karen Blanchard, ele ficou fascinado. Não sei se aquilo já tinha sido ensaiado por ele ou se todo aquele encanto pelo meu nome surgiu naturalmente. A questão é que ele soube me cativar em poucos minutos de conversa.
No mesmo dia tinha uma solicitação de amizade dele no meu facebook. Aceitei e logo começamos a trocar mensagens, marcamos encontros e tudo foi acontecendo com naturalidade, logo nos apaixonamos e começamos a namorar. Tudo era perfeito, até ele viajar sem avisar.
Ele era recém-chegado ao Brasil, conhecíamos as mesmas pessoas, meus amigos também eram os amigos dele, e ninguém tinha notícias de onde ele poderia estar. Para mim, ele estava desaparecido. Uns vinte dias depois ele ligou para o meu telefone residencial, e foi a única vez que ligou durante todo o tempo em que esteve fora. Durante a ligação, ele disse que estava bem e que teve que viajar para a Colômbia às pressas para cuidar da mãe que estava doente. Não acreditei, pois existem tantos meios de comunicação, e se fosse este o caso, me ligaria. Quando ele voltou, fiquei aliviada, pois eu já tinha criado tanto amor por ele, que preferi ignorar todas as minhas desconfianças e o perdoei. Mas as coisas já não eram as mesmas dentro de mim. Eu ainda o amava, mas de um modo diferente. Algo estava me deixando inquieta, como quando temos um espinho minúsculo na sola do pé impossível de enxergar, mas que incomoda ao caminhar. Mesmo ele sendo o mesmo Ygor, eu não era mais a mesma Karen.
O som estridente do meu bip me trás ao momento presente. De certa forma, me sinto aliviada. Pensar no Ygor me deixa triste, e não cai bem deixar tantas preocupações vir à tona no ambiente de trabalho, principalmente quando trabalhamos salvando vidas.
Quando Paola e eu chegamos à entrada das ambulâncias, percebo que o Daniel também foi chamado.
— Acidente? — pergunto a ele.
— Não sei, mas parece que há uma fratura no úmero.
Minha curiosidade sobre o caso aumenta, mas por sorte não irá demorar muito para saber mais, pois a ambulância acaba de chegar.
— Homem, 33 anos, apresentando ferimento por arma de fogo com projétil alojado no peito. Encontra-se hemodinamicamente estável — informa o paramédico enquanto retira a vítima de dentro do veículo.
Tudo o que consigo digitalizar no momento, é que o paciente é mulato, grande e está inconsciente.
Logo atrás da ambulância chega uma viatura da Polícia Federal.
— Ele é um dos nossos — grita um policial saindo da viatura. — Cuida bem dele!
— Faremos tudo o que estiver ao nosso alcance! — respondo. — Quero um ecocardiograma transesofágico, precisamos saber a localização exata da bala para realizarmos a cirurgia — peço aos residentes enquanto seguimos às pressas pelos corredores com o paciente na maca.
— Parece que o projétil transfixou o braço direito e penetrou no tórax — Daniel acrescenta observando o ferimento no braço do paciente. — Quero uma radiografia pra ver o estrago.
— Ele tava à paisana. Será que foi uma tentativa de execução?
A pergunta da Paola fica no ar enquanto eu tento imaginar a situação, mas isso já é trabalho da polícia. Nós precisamos saber as condições exatas dele para começarmos a fazer a nossa parte.
• • •「◆」• • •
Horas depois, já tínhamos tudo o que precisávamos. Inclusive o nome do policial. Douglas Sant'Anna. Ao exame, apresentava pressão arterial de 110x80, pulso de 80bpm. Encravado na parede anterior do ventrículo direito e septo interventricular, o projétil não parecia oferecer riscos além do normal para uma cirurgia cardíaca, por incrível que pareça. A fratura do úmero realmente irá precisar de cirurgia, então faremos tudo ao mesmo tempo.
Um filme começa a passar na minha mente enquanto o operamos. Várias possibilidades para o que aconteceu vão ganhando força na minha imaginação. Acerto de contas? Vingança? Tentativa de execução como a Paola disse?
— Tudo certo aí? — pergunto ao Daniel enquanto ainda afasto as costelas do paciente.
— Depende — diz. — Se ele for solteiro e destro, vai ter que se virar com a mão esquerda por um tempo.
Ninguém no centro cirúrgico consegue ficar sério depois dessa. O senso de humor do Daniel é sensacional, além dele ser um excelente cirurgião ortopedista e um ótimo amigo.
— Gente, olha isso! — falo maravilhada quando finalmente tenho acesso ao coração do paciente.
— Uau, um coração — Daniel diz fingindo surpresa, obviamente não notando o mesmo que eu. Afinal ele está concentrado em sua cirurgia.
— Não é só um coração — falo. — É grande, bate forte, apesar de ter uma bala alojada nele.
— Ele deu sorte — Paola comenta. — se esse tiro fosse dois centímetros para a esquerda…
O som do projétil caindo na bandeja põe fim a parte mais difícil da cirurgia. Começo a fechar a cavidade torácica com uma imensa sensação de satisfação. Tudo correu bem, e tenho certeza de que ele tem pessoas aguardando notícias na sala de espera, e vão gostar de saber que após cinco horas de cirurgia, o paciente está bem e livre de riscos.
— Quer dar a notícia à família? — pergunto ao Daniel enquanto tiramos nossos aventais cirúrgicos.
— O mérito é todo seu — diz ele sorrindo. — Eu só engessei um braço.
— Bobo. — Daniel e eu nos dirigimos até a sala de espera para levar as boas novas aos familiares do policial, porém me surpreendo com a quantidade de policiais fardados. — Familiares do paciente Douglas Sant'Anna.
Uma senhora de cabelos grisalhos, baixinha, segurando uma pequena bíblia se dirige até nós acompanhada pelo policial que nos pediu para cuidar bem de seu amigo.
— Como ele está? — pergunta a senhora com o rosto abatido. Provavelmente chorou durante todo o tempo em que estávamos em cirurgia.
— Removemos a bala e já entregamos à polícia. A cirurgia foi um sucesso e agora o Douglas está fora de perigo. — tomo um susto com os urros dos policiais, e antes que consiga me recuperar, sou abraçada pela pequena senhora.
— Ele é tudo o que eu tenho — ela diz emocionada. — Não me imagino sem o meu pequeno! Muito obrigada!
Sem dúvidas uma força maior agiu a favor dele. E deve haver uma razão para ele ter sobrevivido a isso. Seu caso era raro. Não vemos muitas pessoas por aí que conseguem sobreviver a um tiro no peito. Ele meio que nasceu de novo. Quando despertar da sedação mais tarde, ele vai poder agradecer a Deus por estar bem. Só vai ser uma pena eu não estar aqui para vê-lo acordar.
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