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Epílogo


KANAAM

Não devia ter batido em Ethan. Minha cabeça parece prestes a explodir e sinto o choro aproximando-se. Fiz algo tão sério, tão diferente de mim que tenho vergonha só de lembrar.

O tapa ocorreu há 2 semanas e não nos falamos direito desde então, mas mesmo assim fico pensando nele quase todo o tempo. Estou sempre nervoso e ansioso demais perto de Ethan para dizer qualquer coisa e o percebo hesitante perto de mim. Talvez nós dois devêssemos pedir desculpas um ao outro.

Com toda essa tensão a nossa volta ainda convivemos com a presença de Charlie, ou melhor, com a falta dela. Consigo vê-lo em cada canto do apartamento, cozinhando, abraçando Ethan, beijando Dixie... Posso enxergá-lo mesmo sem ter morado lá, porque a presença dele está em cada canto e, principalmente, na cozinha, onde há fotos coladas na geladeira, a maioria de Ethan. 

O gato ainda não se afeiçoou comigo e talvez seja porque as energias de seu dono eram muito diferentes das minhas, no entanto ele é apegado a Ethan. Segue-o por todos os cômodos, miando baixinho e esfregando-se em suas pernas. Às vezes tenho ciúmes do apego entre os dois e isso faz eu me sentir ainda pior.

A promessa que fiz martela em minha cabeça a cada vez que nos cruzamos pelo apartamento e, quando ele desvia o olhar, com vergonha de dizer bom dia ou boa noite, sinto meu coração apertar ainda mais. Ele não tem ideia do que Charlie me pediu e me pergunto como reagirá quando souber.

Dentro de mim há uma energia revoltada, confusa e nervosa que eu nunca havia conhecido e que me faz chorar em lugares inapropriados. Não gosto nem um pouco de sentir tantas coisas, mas talvez seja por todos os anos em que me contive, em que tentei ser uma pessoa calma. São tantas coisas nas quais pensar... No restaurante, em Ethan, no apartamento, no meu emprego...

O restaurante é a minha maior preocupação. Ainda não o abri porque estou hesitante de fazê-lo. O pai de Charlie me disse que não há pressa, que quando eu estiver pronto posso contatá-lo e ele me ajudará, mas não sei se consigo fazer isso.

Sinto-me idiota por sofrer com algo tão pequeno perto do que Charlie passou. Seu pai me contou que no dia de sua partida ele se contorcia de dor na cama, gritava, e a morfina já não adiantava mais. Também disse que Ethan não saiu de seu lado, tentando acalmá-lo, apertando sua mão com carinho e beijando seus cabelos ao mesmo tempo em que chorava e tentava controlar os próprios soluços. Eu só posso imaginar o quão forte Ethan foi e tem sido.

Mesmo que ele tenha dito coisas tão baixas para mim eu o admiro e entendo; eu ainda o amo. Nós todos já sofremos demais e só espero que possamos melhorar logo. Às vezes o ouço chorar no banheiro e no quarto que eles antes dividiam e me sinto horrível e deslocado, como um intruso na vida deles. Há um peso enorme em minhas costas por causa das promessas que fiz.

A terapia está me ajudando e, a cada sessão, me sinto menos perdido, menos aéreo e um pouco mais focado. Conversamos sobre minha família, sobre minha religião, que continua sendo muito importante na minha vida, sobre Charlie e, principalmente, sobre Ethan. Descobrir que no não sou mais uma pessoa tão calma e tranquila me deixa bastante desestabilizado. Não sei conviver com este Kanaam nervoso e agitado. É como se tudo tivesse sido uma mentira. Não sei se isso é temporário ou se serei para sempre esse misto de emoções extremas outrora desconhecidas.

Ethan sempre aparece em todas minhas sessões e, às vezes, me imagino com ele e me pergunto se não seria melhor assim. Como seria acordar na mesma cama e na mesma casa que ele? Então choro, tentando imaginar no que Charlie pensaria de mim se soubesse que tenho esses pensamentos impróprios e que me fazem querer fugir de mim mesmo. É um dilema constante, que só piora ao lembrar da promessa que lhe fiz. Ele me pediu para ficar com Ethan, mas me sinto culpado por querer demais atender ao seu pedido. 

Fecho os olhos com tristeza e sorrio com amargura. Minha cabeça está prestes a explodir de tanta dor e tento ignorar as conversas a minha volta.

Era isso que o destino nos reservava? Nos unir pela dor? Percebo que estou há minutos olhando pela janela, perdido em pensamentos e memórias. É como se um filme tivesse passado por minha cabeça.

Owen franze o cenho com preocupação ao tomar um gole de seu suco e tento suavizar minha expressão. Sei como devo parecer aos seus olhos: cansado, sem vida e triste.

―Vocês estão bem?

Ele sempre inclui Ethan na conversa e gosto do quão maduro ele é, capaz de falar da pessoa que eu amo sem demonstrar que isso o machuca. Mas talvez ele não me ame mais, pois vejo sempre fotos suas com outro rapaz na internet.

―Ethan está desempregado. -tomo um gole do meu chá e gosto da sensação quente escorrendo por minha garganta, esquentando meu corpo- Continuo trabalhando na escola, mas não sei se devo continuar lá. Tenho o restaurante. -murmuro a última parte

―Eu acho que você faz os melhores hambúrgueres vegetarianos do mundo.

Sorrio, gostando da simplicidade com que ele consegue me fazer um pouquinho feliz ao lembrar das nossas jantas vegetarianas.

―Você não provou todos os hambúrgueres vegetarianos do mundo.

―Não, mas é um bom motivo para você abrir seu restaurante. Imagina o que mais você consegue fazer, Ken?

―Eu estou tão confuso, Owen. Não sei o que fazer, me sinto perdido.

Mordo os lábios, sem querer desabafar com ele e nem usá-lo como psicólogo. Ele me dá um sorriso gentil e aperta minha mão com carinho por cima da mesa. O terno é novo, percebo, e cai em seu torso de maneira leve e modelada. Sua barba está crescida e me sinto constrangido de olhá-lo diretamente, porque está muito bonito.

―O pai dele disse que ia te ajudar, não? Sempre terá emprego como professor, Ken, mas esse restaurante é uma oportunidade incrível. Eu acho que você deveria tentar começar seu negócio.

―Pode me ajudar? Com o restaurante, com os papéis?

Sustento seu olhar com um pouco de hesitação, mas ele ri baixinho.

―Não precisava nem pedir.

Minhas bochechas esquentam e fico aliviado com a resposta. Relaxo na cadeira e noto que Owen me observa de canto.

―Obrigado por tudo. -murmuro- Por ter ido ao velório. Por continuar falando comigo, por... -sinto meus olhos encherem-se de lágrimas- Por ainda ser meu amigo.

―Kanaam, eu sempre gostei e sempre vou gostar de você. Acho que somos melhores assim, como amigos, não?

Ele parece desconfortável ao dizer isso e engulo em seco. Owen não me ama mais. Por que estou sendo tão ciumento e egoísta? Por que estou tão triste por ele não gostar mais de mim? Afasto os pensamentos e tento me concentrar em algo para dizer. No fundo estou feliz apenas por ainda mantermos contato.

―Sim, obrigado por ser meu amigo. -sorrio com tristeza e ele ri baixinho

Após alguns minutos minha curiosidade aumenta. Quero saber sobre ele e pergunto:

―Você está namorando?

Minha voz vacila, trêmula, e quero me xingar por estar tão nervoso. É como se eu estivesse prestes a desmoronar a cada segundo.

―Não, só saindo com alguém.

Assinto com um sorriso, tentando passar confiança. Owen suspira e tamborila os dedos na mesa, pensando com a boca entreaberta, prestes a dizer algo. Seus olhos são tão diretos que não consigo encará-lo.

―Sabe, Ken, eu sei que é idiota dizer isso, mas você precisa pensar no futuro, porque é impossível mudar o passado. Sei que você amava Charlie, que ele era seu amigo, mas ele pediu para você cuidar do restaurante, não? Ele confiava em você e eu também confio.

―Ele também pediu para eu cuidar de Ethan. -deixo escapar, evitando olhá-lo

―Cuidar de Ethan?

―Ele... Queria que ficássemos juntos, depois de tudo.

Estou desconfortável demais, mas lhe conto tudo mesmo assim. Manter essa promessa em segredo está me deixando mais triste ainda. Quando termino, Owen me encara um pouco boquiaberto, sem acreditar.

―Isso é... Ele não podia ter pedido isso. Por que você prometeu?

Engulo em seco e meus olhos e garganta ardem com o choro. Não quero admitir que pensei em ficar com Ethan, que ainda penso e que me sinto egoísta e hipócrita por isso, logo eu, que condenava tanto o egoísmo de Charlie. Eu lembro das palavras de Owen, do que ele me acusou... e ele estava certo, não?

―Você quer... -Owen faz uma pausa, inclinando-se ao sussurrar para mim- Ficar com ele?

Desvio o olhar e isso já é resposta o suficiente para ele.

―É tudo muito recente, acho que Ethan e você precisam de espaço.

―Estamos morando juntos, no apartamento de Charlie.

―Bom, isso complica as coisas.

Suas palavras saem um pouco diretas e me arrepio com seu tom. Ele acha que a culpa é minha, não? Por um momento quero chorar como uma criança e perguntar se tudo vai ficar bem, mas sei que não posso fazer isso; seria imaturo da minha parte e não combina comigo.

―Desculpe, estou todo atrapalhado. -sorrio com tristeza, mexendo nos bolsos a procura de dinheiro- Acho melhor ir embora, não quero estragar sua tarde. Obrigado por ter vindo, de verdade. Eu gosto muito de você, Owen.

Levanto-me com rapidez, querendo sair deste lugar antes que as lágrimas cheguem. Noto um pouco de pena em seu olhar, o que me deixa pior ainda. Não devia ter namorado com ele se ainda amava Ethan. Quero pedir desculpas sem parar, fazer qualquer coisa para ele me perdoar, mas percebo que Owen já seguiu em frente, que não é do tipo que guarda rancor. Então, com um aceno e um sorriso, ele se despede e fica sentado na poltrona conforme caminho até o caixa.

Na rua consigo vê-lo bebericar seu suco com um olhar distraído e mãos nos bolsos. Em seguida ele pega o celular, como se ele tivesse vibrado, e sorri para a tela. Owen merece alguém que o ame, penso. Afasto-me devagar, criando uma lista mental do que fazer para tentar colocar minha vida nos eixos novamente. Murmuro baixinho um mantra enquanto caminho pelas ruas agitadas de Nova York.

Eu poderia chorar apenas ao olhar à minha volta, para essa confusão de cores, de telões, de propagandas, de pessoas e de luzes. Estou triste, mas sinto uma pontinha de alegria ao olhar em volta. Quando eu imaginaria que estaria aqui, no centro de tudo? Sou tão privilegiado... sorrio por longos minutos, apreciando cada pedacinho da cidade que enche meus olhos.

ETHAN

Sempre soube que não aguentaria ficar no apartamento sem ele, mas tenho que suportar, por Dixie. Ele me segue por todos os cantos e, quando finalmente me deito na cama onde nos beijamos inúmeras vezes, ouço seu ronronar e o sinto se encostar em minha barriga. Ele sente falta de Charlie.

Aqui, deitado, só consigo fechar os olhos e recordar os eventos mais recentes mesmo que eu não queira, mesmo que doa.

O enterro foi a parte mais horrível. Não consegui nem chorar de tão desolado que estava. Parecia que há minutos atrás ele estava vivo, me beijando, abraçando... E então eu fui obrigado a olhar seu corpo em um caixão. Mas não olhei. Não quis me lembrar dele daquele jeito, sem vida e sem brilho. Quis me lembrar dele como era: vivo, alegre, persistente e, por vezes, irritante. Sorrio com o pensamento.

Pensar que eu jamais verei seus olhos azuis se iluminando ao me beijar ou ouvir seu sotaque francês me deixa desesperado e, quando isso acontece, as crises existenciais surgem e me vejo sozinho, sem ter para onde correr, sabendo que meu destino final é o mesmo que o dele: a morte.

Tudo passou tão rápido... Ele foi internado no hospital e não saiu de lá com vida. Pergunto-me se ele tivesse ido ao médico logo que as dores nas costas surgiram o que teria acontecido, se ainda estaria aqui. Fecho os olhos, tentando não chorar.

É horrível olhar para cada canto deste apartamento e vê-lo em todos lugares. Morar com Kanaam aqui é estranho porque ele não consegue me encarar diretamente e não sei se sente vergonha pelo tapa ou nojo de mim. Talvez um misto dos dois?

Agora que moramos juntos quero um ombro amigo para chorar e para relembrar. Sinto falta de abraçar alguém, de conversar... E não há ninguém além dele. Não suporto ficar desse jeito com Kenny. Não recebo mensagens de minha mãe desde a morte dele e me recuso a telefonar. Não vejo Kanaam falar com alguém e consigo concluir que somos mais parecidos do que pensávamos, os tipos de pessoas que sofrem sozinhas e de forma pacífica, respeitando o espaço um do outro.

Preciso conversar com Kanaam sobre o aluguel, mas nenhum de nós parece ter ânimo para isso. Ele parece sempre agitado perto de mim e sinto que há algo que quer me dizer. Ao mesmo tempo eu luto com as palavras dentro de mim, querendo me desculpar por meu comportamento.

Decidi que não quero magoá-lo nunca mais e resolvi parar de beber. Livrei-me de todas as garrafas de vodka e uísque do apartamento, sabendo que Charlie odiaria me ver desse jeito. É quase como se eu pudesse sentir seu olhar julgador.

Depois de pensar tanto me levanto da cama, afago Dixie uma última vez e o deixo dormindo em cima da cama. Caminho até a sala com passos arrastados e sento-me no sofá. Daqui consigo olhá-lo digitar no computador. As olheiras não sumiram, mas diminuíram. Está mais magro e sinto meu coração acelerar de medo ao vê-lo desse jeito. Não quero que ele também morra. O medo de perdê-lo me faz querer conversar. Talvez eu esteja sendo paranoico, mas estou apavorado demais com a morte depois do golpe que ela me deu.

―Kenny?

Minha voz sai baixinha, quase num sussurro. Suas sobrancelhas se levantam e os olhos verde-oliva me encaram com hesitação e distanciamento. Não quero vê-lo me olhar desse jeito, com medo e hesitação, nunca mais.

―Sim?

Engulo em seco antes de prosseguir. É o máximo de palavras que trocamos desde o tapa que ele me deu.

―Me desculpe por beber e por ter dito aquelas coisas para você.

Agora é a vez dele de engolir em seco. Olha para a tela do computador e vejo seus olhos passarem com indecisão pelo teclado para então pousarem em mim, as sobrancelhas franzidas com tristeza.

―Não suportei ouvir aquilo, Ethan. Pensar que você e Owen... -ele morde os lábios, como se não devesse ter dito aquilo- Que você acha que sou esse tipo de pessoa me deixa muito triste. Eu ainda estou devastado com a morte dele e jamais me aproveitaria de alguém num momento desses. Muito menos de você.

Conforme ele fala sua voz vai ficando baixa, como se estivesse com dificuldade de falar. Levanto-me de onde estou e me aproximo com passos lentos.

―Não penso nada daquilo. -digo com firmeza- É que Charlie sempre achou que... -mordo os lábios e passo as mãos pelos cabelos com nervosismo- Que nós dois, eu e você, combinávamos. Antes de morrer ele criava suposições sobre como nossas vidas seriam se eu tivesse ficado com você, se ele não tivesse aparecido naquela escola. Quando bebi, aquele dia, eu não suportava mais lembrar dele falando essas coisas e comecei a sentir raiva, de você e de mim.

O silêncio que recai sobre nós é triste. Conseguimos ouvir apenas os pássaros lá fora piando alto. A noite está quase chegando, consigo ver pelo céu meio azul escuro.

―Não pode culpar a bebida pelo que você faz e diz, Ethan. Você quis me magoar, quis dizer aquilo e não sei se consigo esquecer.

De onde surgiu esse Kanaam sério, triste e direto? Ele também parece nervoso, algo atípico dele e me sinto deslocado ao perceber que não apenas minha vida virou de cabeça para baixo, mas a dele também. Kenny é outra pessoa; está triste e confuso de um jeito que nunca vi, mas que noto ao olhá-lo. Inquieto e agitado. É difícil para ele também, percebo. Seus dedos movem-se com agilidade sobre o teclado e ele se levanta ao ver a tela do computador desligar.

Parece prestes a desmoronar na minha frente. E como eu queria desmoronar em seus braços e chorar, ter alguém com quem conversar, com quem sofrer...

―Ethan... Não sei como viveremos daqui em diante.

"Não sei" não combina com Kanaam e fico um pouco amedrontado. Se ele não sabe, o que sobra para mim? Fecho os olhos com tristeza.

―Eu te perdoo, sei que tem sido difícil. Desculpe ter sido tão sério minutos atrás. Sei que não disse aquilo por mal, sei que estava atordoado, triste e com medo, mas é algo difícil de esquecer, entende?

Assinto, sentindo a garganta arder com a vontade de chorar.

―Temos que pensar no futuro. -digo baixinho sem olhá-lo

―O que quer dizer?

―O restaurante. Ele deixou-o para você. Quero ajudá-lo a abri-lo. E iremos morar aqui, eu irei trabalhar durante o dia e te ajudar à noite.

―Ethan. -sua voz não me aborrece, é suave, tranquilizadora

―O pai dele nos ajudará, com certeza. Podemos começar a montar o cardápio. A testar receitas. Charlie me disse que o sucesso de um restaurante está no cardápio.

Não percebo que estou chorando até sentir seus braços em meus ombros. É bom abraçar alguém. Minutos depois ouço seus soluços e rodeio sua cintura com meus braços. Parece certo tê-lo perto de mim. Nosso choro quase se mistura, baixinho, contido e carregado de tristeza e saudades.

5 MESES DEPOIS

KANAAM

Os pratos estão se acumulando na pia, mas pela primeira vez fico feliz com essa visão. Estamos prestes a fechar e as reservas para o dia seguinte já estão aumentando, graças ao pai e a mãe de Charlie, que trouxeram amigos e conhecidos para prestigiar a inauguração.

Ethan está vestindo um terno que ressalta seus olhos azuis e combina com os cabelos negros na altura dos ombros. Vejo-o sorrir pela primeira vez em dias ao me encarar de longe. Ele está ajudando a recepcionar os clientes enquanto preparo os pratos na cozinha, que está um pouco abafada.

Havíamos decidido, em conjunto, que o cardápio seria relacionado à culinária indiana e que uma parte da parede seria dedicada a Charlie. Ethan não se contentou com uma parte apenas e resolveu fazer uma parede inteira dedicada à memória dele, o que achei incrível. Este restaurante é tão dele quanto meu.

Estou preparando o último prato: pasta de azeitona com alguns pastéis indianos recheados com curry e vegetais. A maioria dos pratos são vegetarianos, mas não me nego a utilizar carnes em algumas receitas. Ethan me deu um caderno de receitas que Charlie mantinha e é dele que tiro minhas inspirações para as sobremesas, a parte mais difícil do menu.

Termino o prato e o levo até a mesa. Os clientes estão animados, são frutos das relações dos pais de Charlie, ela bailarina e ele artista plástico. Todos conversam com alegria e, quando me veem chegando com o prato, começam a bater palmas. Fico um pouco envergonhado ao colocar o prato na mesa. Passo as mãos no avental com nervosismo e sorrio com timidez. O último pedido da noite. Estou tão tranquilo e feliz que tenho vontade de chorar.

Ethan se aproxima batendo palmas. Não entendo o que está acontecendo, até que vejo um microfone em sua mão. Subitamente as luzes diminuem e sinto todos olhares sobre mim. Alguém me puxa para sentar e estou perdido demais para ver quem é. Minha atenção agora concentra-se nas imagens projetadas na parede à frente. Ethan começa a falar.

―Charlie ganhou este restaurante dos pais no dia em que se formou em gastronomia. Esse era o sonho dele, ter um restaurante de sucesso onde ele poderia encher de amigos. Infelizmente Charlie ficou doente demais para cuidar disso aqui. -sua voz vacila por um instante, e seus olhos azuis encaram todos em volta com tristeza contida- A maioria de vocês o conhecia e sabia que ele era decisivo e perspicaz. Infelizmente Charlie se foi e não foi uma partida rápida, ao menos não para nós. Ele ficou muito tempo no hospital, o que me deixou devastado, porque eu o amava e queria vê-lo realizar muitos sonhos ao meu lado.. -um casal chorava e notei que eram os pais dele- É como se um pedaço de mim estivesse faltando e dói tanto, mas tanto, que todos os dias eu me pergunto: como é possível amar alguém dessa maneira? De um jeito tão intenso a ponto de doer?

Algumas imagens começam a passar pelo projetor. Fotos de Ethan com Charlie no apartamento, na faculdade, onde Ethan às vezes ia visitá-lo, em restaurantes, shoppings, museus... E por último algumas fotos no hospital. Não quero olhá-las, mas me obrigo a não desviar o olhar. O silêncio no restaurante é quase constrangedor. Os barulhos de garfos param, assim como os dos copos.

―Charlie foi meu primeiro namorado e meu primeiro amor. É a pessoa que eu mais amei em toda a minha vida. Ainda amo. Namoramos por cinco anos e, mesmo que tenhamos brigado, e que ele me irritasse, -Ethan sorri, os olhos brilham com lágrimas não derramadas- eu nunca quis algo fácil para mim e sempre gostei de desafios. Ele era meu desafio e eu era o desafio dele. Parece mentira lembrar que tudo começou em um dia no ensino médio, quando ele chegou e tornou-se o garoto mais bonito da escola. Posso dizer, com convicção, que me apaixonei à primeira vista.

Ele toma um fôlego enquanto as imagens se repetem no projetor.

―Foi na escola onde tudo começou e é triste demais perceber que ele não está aqui para ver o restaurante inaugurado. Charlie deixou esse lugar para Kanaam, nosso melhor amigo, que sempre esteve entre nós, nos ajudando e apoiando.

Sinto meu coração martelar com força em meu peito e minha boca fica seca com suas palavras. Sinto vontade de chorar ao pensar na época em que éramos ingênuos e felizes.

―Charlie confiou em Kenny e é por isso que estamos aqui hoje. Kanaam é muito importante para mim. É meu melhor amigo, quem eu acredito que vai seguir com o sonho de Charlie.

Ele me encara com um sorriso tão largo e tão sincero que deixo as lágrimas rolarem. Tantos anos e ainda é como se tivesse sido ontem que conhecemos Charlie. Fecho os olhos por um minuto. O que eu não daria para voltar a reviver 1 dia daqueles? 

―Kanaam, obrigado por ter cozinhado para nós. Eu te amo, você é a pessoa mais incrível que eu conheço e jamais vou parar de dizer isso. Obrigado por estar ao meu lado e por ter ficado ao lado de Charlie. Você merece muito mais e só consigo agradecer por estar presente nos momentos mais difíceis.

Sinto alguns tapinhas nas costas e Ethan se aproxima para me abraçar. Na parede agora aparecem fotos nossas. Eu e ele em uma foto escolar, nós dois em Nova York, passeando pela neve, na Times Square, no Central Park... Não lembrava da maioria dos lugares, mas, ao ver as fotos, me recordo dos dias e sobre o que conversamos.

As luzes se acendem e todos no salão batem palmas. Estou soluçando e não percebo. Sinto-me feliz e ao mesmo tempo triste, como se não merecesse tudo isso. As imagens continuam a passar. Há uma com Owen, outra com meus pais e sinto meu coração apertar ao pensar neles.

Vê-los por fotos, tão longe e tão perto de mim me dá esperanças. Há alguns dias recebi alguns e-mails de meus pais, nos quais me disseram que estão dispostos a me encontrar novamente. Meu pai escreveu que minha mãe e ele conversaram muito sobre o assunto e Kali os ajudou a decidir. Ao que parece minha irmã não para de falar no quanto quer vir morar aqui comigo, em Nova York.

Com lembranças familiares, de conversas no ensino médio, de Ethan me beijando, de Charlie me abraçando, olho a minha volta com felicidade. Tenho certeza de que Charlie está feliz dever tantas pessoas aqui, de ver seu restaurante sendo inaugurado e de ver Ethan junto a mim.

ETHAN

A mãe dele está me olhando com hesitação e fico incomodado com seu olhar. Tento disfarçar enquanto coloco alguns porta-retratos em uma caixa para lhe dar. Ela já pegou a maior parte das roupas e fiquei apenas com algumas, as que ele mais usava, para nunca me esquecer do seu cheiro.

―Vocês estão bem? -pergunto

―Não. Não sei se vamos conseguir viver sem ele.

―Vocês viveram esses meses sem ele. -falo, tentando soar encorajador- Eu também pensei que não fosse conseguir. Parece que estou anestesiado todos os dias.

Ela fica em silêncio, com os lábios comprimidos. É parecida com Charlie até na personalidade. Orgulhosa e decidida. Seus braços estão cruzados na frente do terninho branco que deve ter custado o preço de um carro.

―Sabe, Ethan... -é uma das raras vezes em que a ouço dizer meu nome- Acho que fui injusta com você. Charlie sempre tentou lutar contra o jeito egoísta dele, que definitivamente foi herdado de mim, -ela dá um sorriso triste- e eu estava com ciúmes. Ainda tenho ciúmes de você. Ele te deixou esse apartamento e te amava muito.

Não quero encará-la. Estou ficando irritado e não quero brigar, mesmo ela sendo a pessoa que empurrou Octave para cima de Charlie na esperança de me tirar da vida dele.

―Não queria ter sido tão dura e idiota com você. Sinto muito que tudo tenha acabado assim. Não quero fazer as pazes e nem pedir seu perdão, só queria dizer que estou triste por ele ter ido e triste por ter atrapalhado vocês. Sou tão mesquinha. Ele sempre me dizia que era nosso defeito sermos tão parecidos, tão egoístas e mesquinhos.

Seu sorriso está cercado de dor e, por um momento, sinto pena dela. Está prestes a chorar e seca os olhos no exato momento em que uma lágrima tenta escapar. Suas unhas estão pintadas de branco também. Será que a cor lhe traz paz?

―Obrigada pelas fotos. Se precisar de algo me ligue. Quero ajudar, ele gostaria que eu te ajudasse. Às vezes ainda ouço ele discutindo comigo em francês, me dizendo que preciso ser uma pessoa melhor e parar de julgar os outros. -ela sacode a cabeça- Desculpe, já estou de saída. Mas antes tem algo que quero lhe dar.

Ela tira da bolsa um papel dobrado ao meio e me entrega. Franzo o cenho ao pegá-lo. Ao ver a caligrafia de Charlie ali sinto um arrepio passar por meu corpo. Não quero ler.

―Por que está me dando isso só agora? -consigo mumurar

―Ele pediu para que eu te entregasse depois de um tempo.

Encaro-lhe com irritação.

―Meses depois?! -quase grito

Sinto vontade de chorar ao perceber que são 2 folhas e não uma. Não tenho coragem de desdobrá-las.

―Ele pediu que te entregasse um ano depois. -ela parece nervosa- Mas não consigo esperar. Não li, não consegui. Charlie disse que era para você ler junto de Kanaam.

Ela pega a caixa de minhas mãos e sai pela porta com passos lentos. Fico parado, estático, surpreso e sem reação. Vejo seu olhar deter-se em cada canto do apartamento e sei o que está tentando fazer: guardar na memória o lugar onde Charlie viveu seus dias felizes antes do hospital. O mesmo que faço todos os dias.

______

Compro alguns doces na padaria próxima ao restaurante. O expediente deve estar terminando e quero fazer uma surpresa a Kanaam. Estou cansado de ficar triste e deprimido, assim como ele também deve estar.

Antigamente nesses momentos eu já estaria na segunda garrafa de cerveja, mas não consumo álcool há meses, desde o fatídico tapa. Agora só temos um ao outro e não posso me dar ao luxo de me perder e perdê-lo novamente.

A carta de Charlie parece uma pedra pesada quando a carrego comigo. Não consegui lê-la e nem falar com Kanaam sobre. Não quis desconcentrá-lo. Agora que precisamos nos sustentar Kanaam precisa focar-se no restaurante, o que ele faz com amor e vontade. Eu continuo penando para conseguir um emprego. O restaurante nos dá metade do valor do aluguel e o pai de Charlie continua nos ajudando com a outra metade, algo do qual nenhum de nós dois gosta.

Mandei algumas mensagens para Brent dizendo que precisava trabalhar e se ele soubesse de alguma revista que precisasse de modelos para me contatar. Não obtive respostas, mas não fiquei triste. Irei trabalhar em outro ramo se for necessário, mas não posso ficar parado.

Abro a porta da cozinha e o ar abafado me deixa um pouco desnorteado. Os cheiros de temperos e ervas me fazem sorrir no mesmo instante em que os sinto. A atmosfera me transporta até o passado, quando a mãe de Kenny fazia suas comidas indianas para nós enquanto estudávamos no quarto dele.

Ao vê-lo guardar alguns utensílios e dar tchau à equipe da cozinha percebo o quanto está mudado. Ele era tímido, preferia guardar tudo para si e raramente expressava seus desagrados.

―Ethan?

Seus olhos verdes percorrem meu rosto com curiosidade e percebo que estou com um sorriso bobo no rosto. Sacudo a cabeça e me aproximo. É difícil me esquecer da carta em meu bolso.

―Comprei alguns doces para nós. -falo

Ele retira o avental e o deixa em cima da bancada. Suas roupas continuam as mesmas: leves e de cores neutras. Sua pele está mais escura devido ao sol e gosto do contraste com seus olhos.

―Doces? -ele sorri largamente

Sinto um alívio enorme ao vê-lo sorrir com tanta sinceridade. Já melhoramos tanto desde a partida dele que nem percebemos.

Saímos da cozinha e nos sentamos nos sofás perto da entrada. As mesas estão arrumadas e limpas, com cadeiras colocadas para cima. Na porta a placa de "fechado" pisca em neon do lado de fora.

―Muito movimento hoje? -pergunto ao abrir a sacola e lhe entregar um doce quadrado de chocolate

―Mais do que o esperado.

Há algo diferente nele. Seus olhos estão brilhando de felicidade, mas ele não quer me contar e sei que acha que não deve me contar, que não deveria se sentir feliz. Pega o doce de meus dedos, o analisa com um sorrisinho, e dá uma mordida.

―Estou otimista. Acho que seu restaurante vai ser um sucesso. -murmuro, encostando meus ombros no dele com um risinho

Percebo que seus olhos vagam pelo chão, sem me olhar. Suas sobrancelhas estão um pouco unidas com desconforto. Engole o pedaço que mastigou e fica a olhar para o nada com o resto do doce na mão.

―O que houve?

―Não me acostumei com a ideia de ter algo meu. Meu restaurante. É o restaurante dele. -sua voz sai baixa, controlada, mas há uma tremulação por trás

―Ele deixou para você. -pego sua mão nas minhas e aperto com carinho- Agora é seu. E tenho certeza que vai ser um sucesso. Já é. Todos aqueles artistas que vieram na inauguração com certeza indicaram para os amigos deles. E você cozinha muito bem, Kenny, merece ter reconhecimento.

―Eu nunca fiz um curso de gastronomia.

Sei o que quer dizer. Era Charlie quem merecia, em sua visão, estar ali. Suspiro e acaricio suas costas.

―As coisas acontecem de jeitos estranhos às vezes. Talvez cozinhar sempre tenha estado no seu sangue, nos seus pensamentos, mas você nunca deu uma chance à isso. E então surgiu a oportunidade. -sorrio tentando animá-lo

Ele dá outra mordida no doce e encosta a cabeça em meu ombro. Poderíamos ficar assim por horas, apenas pensando e não dizendo nada. Meu coração bate com força em meu peito e não entendo porquê. Talvez seja a vontade de chorar até dormir, lembrando de Charlie. É como se eu pudesse ouvir sua voz, sentir seus cabelos loiros e ver seus olhos azuis aqui, perto de mim.

―Ethan.

Kenny me chama baixinho e quase não o ouço. Sinto o cheiro das comidas nele e fecho os olhos, querendo guardá-lo na memória. Não estou com fome e ignoro os doces na sacola. Estou perdido em memórias do passado, algo que já está me deixando cansado. Não adianta ficar lembrando de coisas que me deixam deprimido.

―No hospital, quando Charlie pediu para falar comigo... -ele faz pausas grandes, engolindo em seco e se afasta de mim

Seus olhos estão um pouco arregalados e vejo tristeza neles. Franzo o cenho com confusão, não sabendo onde ele quer chegar. Kenny parece agitado, mas ele tem estado assim desde o velório, então não estranho seu comportamento.

―Sim? Ele gostava de falar com você.

―Ele... Ele me fez prometer algo.

Sinto as batidas do meu coração acelerarem e, de repente, sei que o que ele tem para dizer é importante, talvez tão importante quanto a carta em meu bolso. Ele está quase chorando e tiro algumas mechas de seu cabelo do rosto. Estão compridos, na mesma altura dos meus. Vê-lo corar me faz ter uma sensação estranha, como se aindo fôssemos adolescentes.

―E o que você prometeu?

Agora estou curioso. Charlie não era do tipo que fazia juramentos, mas o que ele poderia ter pedido de Kanaam?

―Ele me pediu para... cuidar de você.

Dou uma risadinha baixa de alívio e sinto meu coração apertar. Não entendo porque Kenny continua me olhando com aflição.

―Ethan, ele pediu pra eu ficar com você.

Aos poucos suas palavras tomam sentido em minha mente. Afasto-me com o cenho franzido. O sorriso de segundos atrás se esvai rapidamente de meu rosto.

―Charlie não pediria isso a ninguém.

Ele era ciumento e jamais gostaria de me ver com outra pessoa, mesmo que eu o tenha visto com Octave. Charlie era egoísta e por isso fico tão desconcertado com o que Kenny está me dizendo.

Ele se levanta com nervosismo e coloca o resto do doce na mesa de canto.

―Não aguento mais guardar isso para mim. Ele me disse com todas as palavras que preferia que eu ficasse com você à qualquer outra pessoa. Não te contei antes porque não queria que pensasse que quero alguma coisa, não queria ouvir aquelas palavras de novo.

Aquelas palavras, de quando eu estava bêbado. Fecho os olhos tentando raciocinar por alguns minutos.

―É por isso que esteve agitado todo esse tempo?

Kenny passa as mãos pelo rosto, que se contorce de angústia.

―Sim, desculpe. Desde então venho me sentindo confuso, nervoso e ansioso. Não quero que pense que apenas porque prometi... -ele engole em seco e não termina a frase

―Eu ainda o amo.

―Eu sei! Precisava te contar. Ele me fez prometer e eu... Eu aceitei porque não queria vê-lo triste ou zangado.

Fico em silêncio, apenas pensando. Respiro fundo e tento me concentrar e pensar em algo para dizer. Puxo ele com delicadeza para sentar-se ao meu lado e, com resignação, Kanaam senta-se, sem me encarar, as mãos escondendo o rosto.

―Kenny, tudo bem. -sussurro- Obrigado por ter me contado.

Pergunto-me se Charlie realmente gostaria disso. Analiso Kanaam por vários segundos. Em seus últimos dias Charlie pareceu tão livre de egoísmos e irritações que agora, pensando melhor, acredito mesmo que tenha pedido isso à Kanaam.

―Posso te perguntar algo?

Ele me olha um pouco intrigado e assente com a cabeça. As mãos estão no colo, sobre os joelhos. Passo as mãos por meus cabelos com nervosismo antes de fazer a pergunta. Por muitos anos eu a ignorei, não quis fazê-la e não quis saber a resposta. Mas agora parece importante demais para eu ignorá-la.

―Depois de todos esses anos você ainda me ama?

Ele fica por alguns segundos boquiaberto e pigarreia baixinho com um sorriso indecifrável no rosto. Ajeita os cabelos para trás das orelhas, passa as mãos pela boca, pela testa e, finalmente, suspira antes de responder.

―Eu nunca deixei de te amar. Quando conheci Owen pensei que poderia me apaixonar por outra pessoa, mas não foi isso que aconteceu. Eu só menti para mim mesmo ao pensar que poderia amar outra pessoa. Desde o ensino médio, Ethan. Eu tentei seguir em frente, mas você sempre estava lá e era difícil me afastar e deixar de te amar.

Fico um pouco constrangido com suas palavras. Estamos sentados tão próximos que consigo ouvir sua respiração acelerada. Aquela aura tranquila e calma há meses não aparece nele e sinto falta da paz que ele transmitia, mas agora sei o motivo por trás de seu nervosismo. 

―Me sinto culpado, porque sempre te amei. E então Charlie me pediu para ficar com você. Nunca quis desrespeitá-lo, muito menos diminuir sua dor ou substituí-lo. -sua voz falha várias vezes- Mas lembro do que prometi. Não posso desfazer minhas palavras e me sinto horrível porque eu semprequis ficar com você.

Ele começa a chorar baixinho, sem me olhar, e tenho vontade de sumir. Não sei o que dizer, ou o que responder. Há anos nos beijamos, mas eu estava bêbado e a memória volta para mim como se tivesse acontecido ontem. Por tantos anos Kanaam foi obrigado a me ver com Charlie... praticamente o abandonei na escola, nos afastamos e, mesmo assim, ele sempre esteve aqui para mim.

Puxo uma das suas mãos e entrelaço nossos dedos com carinho. Seus soluços param por um instante e ele me encara com confusão. Tiro a carta do bolso e fico em silêncio por alguns segundos.

―A mãe dele me entregou. Disse que Charlie pediu para que lêssemos juntos.

Os olhos dele se arregalam e entendo. Aperto sua mão tentando transmitir força e desdobro o papel. Não lemos em voz alta, mas num silêncio doloroso.

"Ethan e Kanaam,

eu pedi para minha mãe entregar esta carta a Ethan depois de um ano da minha morte. Me desculpem pela demora, mas acho que após um ano as coisas melhoram, não é?

Primeiro: é muito estranho falar na minha morte. É algo que parece muito distante em alguns dias e muito próximo em outros. Quero dizer que nunca me senti tão tranquilo como agora, em parte graças ao Kenny, que só com sua presença já me acalma. E ele tem me ensinado uns mantras incríveis que me ajudam a relaxar também.

Ethan, não sei se Kenny te contou, mas eu pedi para que ele cuidasse de você e estou escrevendo para ajudar vocês dois, porque nesses últimos dias tenho pensado muito em nós três.

Tenho pensado no quanto nada disso foi coincidência, essa coisa de nós três termos nos encontrado. E nesse pensamentos surgiu uma certeza, a de que começamos com um erro. Mas vamos nos lembrar um pouquinho das coisas...

Eu sempre fui muito ganancioso, do tipo que quer pessoas e coisas para si (ou seria egoísta?) e quando Ethan apareceu, quando o notei, eu soube que o queria. Mas o que vocês não sabem é que eu quase não fui para aquela escola, naquela cidade. Houve um erro com meus papéis e a escola para a qual eu estava designado não aceitou minha entrada lá. Então minha mãe conseguiu uma vaga naquela escola, na mesma de vocês, que aceitou meus documentos. Por que eu nunca contei para vocês isso? Porque na época eu era bastante esnobe. A nossa escola era boa, mas não tão boa quanto a que eu iria em primeiro lugar. Contentei-me com ela e não me arrependo, porque te conheci, Ethan, e você foi a melhor parte da minha vida (foi e é, porque ainda estou vivo, ao menos em carta).

Então eu havia chegado de Paris e ficar sem ninguém não estava no meu dicionário, ainda mais depois de sair de um relacionamento com Octave. Enfim, eu cheguei, Ethan se apaixonou, eu comecei a me apaixonar e sabia que Kanaam já estava apaixonado por você. Eu soube desde o início, ok? E talvez isso faça de mim uma pessoa horrível, mas saibam que eu sempre tentei incluí-lo nas nossas saídas e nunca quis interferir na relação de vocês.

Sempre observei o jeito como Kenny te olhava, como te admirava e me sentia culpado por não ser tão apaixonado como ele. Eu te amo Ethan, mas acho que Kanaam te ama de um jeito que nunca vou conseguir amar, de um jeito puro, intenso e sem querer nada em troca. Ele é forte demais por ter passado por tudo isso e continuar te amando. Eu não conseguiria, mas Kenny é de outro mundo, ele é incrível.

E épor causa de tudo que vivemos que o fiz prometer que cuidaria de você. Porque ele merece o seu amor. Porque vocês são almas gêmeas, Ethan, como nunca percebeu isso?! Eu me sinto um idiota por isso. Está tão claro agora. Meu ponto aqui é: eu nunca estive destinado a ficar com você, Ethan. Doeu perceber isso, mas é a verdade. Desde a troca de escolas, até nossa personalidade incompatível, nossos gostos diferentes... Mas isso não faz do que vivi com você uma mentira, pelo contrário.

Kenny, eu sei que é difícil resistir ao Ethan (essa parte foi escrita para vocês rirem) e sei que deve estar se culpando por querê-lo, mas não fique assim. Nós três nos amamos e vivemos tempos difíceis demais para gastar mais tempo com sentimentos negativos. Então, Kenny, quero que você saiba com todas as letras: eu não poderia estar mais feliz de saber que você é a alma gêmea de Ethan e que você cuidará dele depois que eu partir.

Kenny é sua melhor opção, Ethan. Ele é inteligente, tranquilo, quieto, simpático e não quero te ver com outra pessoa, ok? Claro que não é só por isso, mas sou ciumento, só não tenho ciúmes dele.

Fiquem sabendo que tem minhas bençãos, meu amor e minha torcida. Infelizmente não vou poder viver meus sonhos com vocês, mas quero que realizem muitas coisas um ao lado do outro, se apoiando e amando.

É estranho escrever isso mas saibam que eu ficarei assistindo (me disseram que lá em cima temos acesso a tudo, como em um reality show). Claro que só vou assistir as partes boas e não as sexuais (outra parte estranha de escrever).

Amo muito vocês. Lembrem-se de que são almas gêmeas e, quando as coisas ficarem difíceis, confiem um no outro. Não percam tempo com brigas. Eu quero que fiquem juntos e acredito que o universo vai ficar contente de finalmente unir vocês dois.

Eu amo muito vocês, acho que nunca disse isso para o Kenny, né? Obrigada por me amarem e por cuidarem de mim, mesmo quando eu era chato e mimado.

P.S: NÃO FIQUEM TRISTES, a morte faz parte da vida, talvez ainda nos reencontremos, o que acham? Estarei esperando, mas enquanto isso: aproveitem a vida e amem.

Nossos rostos estão banhados de lágrimas. Kanaam encosta a cabeça em meu peito, soluçando baixinho, e o envolvo com meus dois braços. Largo a carta no sofá ao lado. Nunca pensamos no universo e agora tudo faz sentido.

Posso imaginá-lo escrevendo cada palavra. Estremeço com o pensamento e Kanaam afasta-se, secando o rosto com a manga de sua camisa. Nossos dedos ainda estão entrelaçados e não os desgrudamos. Puxo ele para mim com delicadeza e Kenny apóia a cabeça em meu peito com um suspiro. Nossos corpos estão colados; sinto sua respiração rápida e consigo ouvir seu coração batendo acelerado. Ou seria o meu?

Quando nos afastamos, após longos minutos sem desgrudar nossas mãos, vejo seus olhos verdes brilhando e decido. Decido que não quero passar meus dias sofrendo e chorando; decido que Kanaam merece muito mais; e agora sei que posso melhorar, que posso fazê-lo feliz. Decido que esta é a chance que o universo, Charlie e o destino estão nos dando.

Seguro seu rosto com minha mão livre; seus olhos verdes estão hesitantes e envergonhados. Vejo em seu semblante o Kanaam do ensino médio, meu melhor amigo, mas também vejo outro Kanaam, um desconhecido, intenso e forte após tantas tristezas. Finalmente poderemos fazer acontecer o nosso "e se". E se tivéssemos ficado juntos anos atrás? Sinto que estou prestes a descobrir outra pessoa, prestes a amar novamente. As palavras de Charlie são apenas incentivos. Ele está em paz e nós também.

Nossos lábios se tocam com lentidão e o percebo estremecer com meu toque. Meus dedos tocam sua nuca com carinho. É estranho beijar outra pessoa que não seja Charlie. Não há aquela afobação que ele tinha, nem suas provocações, mas mesmo assim parece certo beijá-lo.

Seus lábios são macios e esperam por meus movimentos. Nosso beijo é lento, devagar e intenso. Estamos colocando tantas lembranças no ato que sinto vontade de chorar. Seguro sua cabeça com gentileza, com ambas as mãos, e beijo seu queixo, seu nariz, suas bochechas, suas pálpebras e seu pescoço. Kenny está um pouco surpreso e coloca os dedos em meus cabelos, enroscando-os em sua mão numa carícia gostosa. Encosto minha cabeça em seu ombro e respiro fundo, sorrindo.

―Finalmente... -ouço seu sussuro

De repente ele está soluçando, chorando, e trato de abraçá-lo e beijá-lo. Digo que tudo vai ficar bem, porque pela primeira vez tenho certeza de que tudo ficará bem.

―Ei, Kenny, pare de chorar.

―Eu quis isso há tanto tempo. -suas palavras saem entrecortadas e odeio ver seu rosto contorcido com o choro

―Agora teremos todo o tempo do mundo.

―Eu te amo tanto... -ele suspira e entrelaça os braços por meu pescoço- É bom poder falar isso para você. Eu sempre te amei tanto...

Ele diz as palavras enquanto sorri e, de repente, começa a rir. Não consigo me controlar e sorrio largamente, admirando-o sobre as luzes da rua que refletem aqui dentro. Ele é tão bonito... Vê-lo sorrir faz meu coração bater com uma força que nunca achei possível.

Acaricio sua cintura e me inclino para beijar seu pescoço. Eu o quero com tanto desespero, com tanta vontade, com tanto medo de perdê-lo que quero aqui mesmo. De repente me sinto frustrado com a possibilidade de nos afastarmos. Não entendo o que sinto, mas sei que é o início de algo novo, ou talvez de algo que, em algum universo paralelo, já aconteceu ou está acontecendo.

Beijo sua clavícula de olhos fechados, adorando o cheiro de ervas e temperos em sua pele. Sua pele... Que eu sempre admirei e sempre achei linda. Tê-la sob minha boca é como a realizar um desejo que eu nem sabia que possuía. Mordo seu pescoço e ele se contorce com um gemido.

―Ethan...

Suas pernas movem-se cada uma de um lado de meu corpo. Ele me beija enquanto sorri, seus dedos em meus cabelos. Beijo seu pulso, passo os dentes por suas mãos e entrelaço nossos dedos.

Paramos por um minuto para tomar fôlego e nos encaramos em silêncio.

―Estou tão feliz que não consigo parar de sorrir. -ele diz

Tiro uma mecha de cabelo de seu rosto e suspiro. Observo-o com carinho.

―Não consigo parar de te olhar, você é lindo.

Vê-lo corar é demais para mim. Depois de todos esses anos ele ainda fica vermelho como antigamente. Beijo-lhe com intensidade, puxando-o para mim.

A carta de Charlie cai no chão, mas não nos incomoda; quase não a ouvimos. Consigo ver seus olhos azuis, ouvir sua risada e sinto uma tranquilidade tão grande que começo a rir também. Imagino-lhe como um anjo, um ser com o qual eu gostava de compará-lo e, ao imaginá-lo como um cupido, sorrio mais ainda.

Agora Kenny está beijando cada parte do meu rosto e me sinto amado novamente. É tão bom sentir tanta felicidade depois de tanto choro e sofrimento... Nossas bocas se encaixam perfeitamente, assim como nossos corpos e sei que Charlie estava certo. Estamos destinados a ficar juntos.

___FIM___

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