3 Anos Atrás
KANAAM
Nova York ainda me deixa estupefato diante da sua grandeza. As luzes da cidade me deixam boquiaberto a cada viagem de carro ou a pé pelas ruas movimentadas, seja de dia ou de noite. O choque cultural não é tão grande, porque já estou acostumado com os Estados Unidos, mas os barulhos e a agitação são completamente novos para mim. Além disso há pessoas de todas as partes do mundo aqui, o que torna minha experiência nessa cidade ainda mais incrível.
Toda vez que caminho pelas calçadas meu coração acelera, maravilhado e um pouco amedrontado com a grandeza da cidade. Nova York é tudo o que pensei que seria: agitada, barulhenta, rápida e veloz. A cidade corre por meus olhos como um sonho se tornando realidade. Para mim, o simples fato de estar aqui me faz querer chorar de alegria e gratidão. Minha família está feliz e orgulhosa de mim e eu sou extremamente grato por eles.
Olho para cima conforme caminho. Meus passos são lentos se comparados aos das pessoas a minha volta, então percebo que aquela falta de agitação não é comum. Olho em volta e vejo muitas pessoas paradas na calçada olhando para cima. O Empire State Building está erguido diante de mim, com toda sua altura e imponência. Os raios de sol refletem nas paredes e, mesmo quando me aproximo mais, as janelas ainda parecem pequenas. Alguns turistas estão aglomerados na entrada do edifício tirando fotos e, com dificuldade, consigo passar no meio deles em direção ao campus da universidade. Eu já havia tirado minha foto ali, sorrio com a memória. Mesmo conhecendo os pontos turísticos da cidade eu ainda fico maravilhado com suas grandezas.
Não tenho aulas hoje, mas marquei de encontrar Ethan em uma confeitaria para tomarmos um café. Não nos vemos com tanta frequência como antes e estou curioso para saber como anda sua vida com Charlie, pois agora eles estão morando juntos. Ao mesmo tempo algumas indagações dominam minha mente: será que Charlie é uma companhia agradável? Sei que eu não gostaria de morar com alguém tão agitado e por vezes egocêntrico como ele.
Moro em um quarto alugado que fica na casa de um casal de idosos; eles são silenciosos, mas alegres. Meus pais mandam dinheiro para o aluguel que eu uso para me alimentar, porque na verdade pago o aluguel com o dinheiro que ganho para passear com alguns cachorros do bairro, além de às vezes trabalhar como babá.
Ando pelas ruas com cuidado, olhando para os lados e me certificando de que pisarei em lugares seguros, sem esbarrar em ninguém. Os livros da faculdade pesam em minha mochila, mas os carrego com carinho, afinal, eles fazem parte do curso que amo: literatura inglesa.
De repente ouço uma buzina e meu coração acelera com o susto. É ruim ser uma pessoa introspectiva e quieta em Nova York. As pessoas são expansivas e querem que eu seja também, mas os sustos diários no trânsito são mais intensos. O semáforo fica vermelho para os carros e respiro fundo antes de atravessar. Em alguns prédios há telas enormes que mostram propagandas de produtos, shows de artistas e paisagens bonitas.
Entro em algumas ruas menos movimentadas e finalmente avisto a pequena confeitaria, rosa e pequena, que parece ter saído de um conto de fadas. Em volta há um jardim com flores coloridas e bem cuidadas, um contraste com os prédios altos distribuídos pelo bairro. Vejo vários jovens conversando, sorrindo e escutando música sentados nos bancos da calçada.
Diminuo o passo e olho para os lados, em busca de Ethan. Não o encontro.
Já faz muito tempo desde que ele me beijou, mas é algo que permanece comigo e ronda meus pensamentos. Nossa relação nunca mais foi a mesma após aquela noite. Sinto como se algo tivesse se partido entre nós, algo que nunca voltará ao normal.
Ainda lembro do toque de seus lábios nos meus e frequentemente fecho os olhos ao lembrar da sensação da boca dele na minha. Foi um sonho que se realizou no pior momento possível. Sinto as bochechas esquentarem ao pensar naquilo e me sinto pior por saber que ainda fico envergonhado por causa de um beijo. Parece que todos evoluíram e continuo sofrendo por algo impossível.
Apesar de tudo isso, ainda fico agitado perto dele, com a sensação de que há um redemoinho em meu estômago. No entanto, vê-lo com Charlie não me deixa tão triste como antes, talvez porque eu esteja acostumado a vê-los juntos. Agora sinto-me mais inclinado e aberto a encontrar uma pessoa que corresponda aos meus sentimentos do que ficar sofrendo por Ehtan.
Sei que Ethan nunca me amará e preciso ser realista, não posso ficar parado esperando que algo aconteça em minha vida. Mas as mudanças me deixam nervoso porque trazem com elas uma reviravolta de sentimentos...
Sinto um toque em meu ombro e me viro. Ali está Ethan, sorrindo largamente para mim.
━Kenny, faz tempo que não nos vemos. -ele me abraça
Fecho os olhos ao sentir o perfume cítrico em sua camisa e correspondo ao seu toque, tocando-o gentilmente nas costas. Os olhos azuis me estudam com concentração e há um sorriso curioso em seus lábios. Não consigo evitar corar.
━Vamos entrar? -pergunto rapidamente
Ethan ainda produz um certo fascínio em mim e não há como esconder isso, por mais que eu tente. Acredito que ele provoca essa reação em qualquer pessoa desavisada por causa da sua beleza.
Sentamos em uma mesa perto da janela. Por dentro o lugar parece ainda mais com uma casa de bonecas, com papel de parede rosa e marrom. As poltronas são confortáveis e nos ajeitamos nelas enquanto escolhemos o que iremos comer.
Peço um donut com recheio de chocolate meio-amargo e cobertura de caramelo, quase salivando ao ver a foto ilustrativa do menu, enquanto Ethan pede um milkshake pequeno. Ficamos nos encarando em silêncio, sem saber o que dizer.
━Como você está? -resolvo começar
━Bem, e você? -ele sorri e respondo com um aceno de cabeça
Noto um ar de cansaço em sua voz e me preocupo. Ele deveria estar feliz, afinal está em Nova York, não? Então lembro que Ethan deve estar trabalhando duro para se manter aqui.
━Está trabalhando? -arqueio as sobrancelhas
━Sim, consegui um emprego em um restaurante.
Ethan olha para o chão e boceja. Percebo que não quer falar sobre isso. Abstenho-me de perguntas que ele possa considerar intrometidas.
━Minha vida anda a mesma coisa, só mudei de endereço. -ele ri- Mas vamos falar de você, como anda a faculdade?
━Ah... -mordo os lábios e sorrio- Ótima! Estou gostando muito do curso.
Não quero que ele se sinta mal por não estar fazendo faculdade, não quero me gabar disso, nunca foi minha intenção e tenho medo de soar arrogante, algo que não sou.
A garçonete deixa nossos pedidos na mesa e se afasta. Agradeço pelo timing certo e trato logo de dar uma mordida na rosquinha que eu havia pedido.
━Charlie vem aqui de vez em quando.
O açúcar se espalha pela minha boca, doce e grudento, doce de um jeito incrível. Eu encaro Ethan após a menção do nome de Charlie, mas ele parece estar reparando nas paredes do lugar.
━Onde ele está? Vocês dois estão bem? -franzo as sobrancelhas e Ethan ri enquanto toma o milkshake
━Ele está almoçando com o pai. A mãe dele vive tentando fazê-lo terminar comigo. -seu sorriso agora é triste- Acredita que ela apresenta vários rapazes, modelos, pra ele, na esperança de que ele me deixe? -Ethan revira os olhos- Não sei o que fazer para ela gostar de mim e, mesmo que eu more com Charlie, eu dependo dela, indiretamente. Às vezes ela nos visita e me ignora completamente. O pai dele é menos hostil comigo, mas também não é amigável.
As palavras saem com rapidez, como se estivessem contidas há tempos. Ele suspira e sorve um gole do líquido rosa e cremoso em seu copo. Dou outra mordida na rosquinha, saboreando-a a com gosto.
━Não é sua culpa. -murmuro- Eles querem te atingir desse jeito, pra que você desista.
Ethan sorri e me encara com intensidade. Sinto alguns arrepios em meu pescoço e desvio o olhar para o chão. Seus olhos azuis continuam penetrantes e límpidos.
━É cansativo. Parece que a família dele é um joguinho e eu preciso passar de fase para chegar a lugar nenhum. Não tem fim. -seus ombros caem com cansaço- Trabalho o dia inteiro para ajudar com o aluguel. Charlie e eu brigamos às vezes. -Ethan boceja
━Você já conversou com ele sobre isso? -murmuro a pergunta sem encará-lo
━Ele sabe que a família dele não é fácil. Não podemos fazer nada. -Ethan suspira
Limpo meus dedos no guardanapo, saboreando os pedaços finais do meu donut. Ethan parece abatido e isso me deixa triste.
━Quero saber sobre você, Kenny. -ele sorri e parece deixar as preocupações de lado para dar atenção a mim. Sinto o rosto esquentar ao vê-lo percorrer minha face com seus olhos azuis- Está namorando?
Tusso baixinho e limpo minha boca novamente com nervosismo. Ethan ri baixinho e se ajeita na cadeira de maneira mais confortável.
━Não. -digo sem olhá-lo
Em minha mente outra resposta se forma: não, porque nunca consegui parar de amar você. Claro que não a digo, apenas guardo-a para mim. Só eu sei essa verdade, o quanto machuca, o quão incapacitado de esquecer as coisas eu sou, ou o quão difícil é parar de amar alguém. Eu o amo, mas não como antes, com tanta devoção.
━Não acredito. -um sorriso alegre se estampa em seu rosto- Mas deve ter vários pretendentes, não? -suas sobrancelhas se arqueiam
Tenho um pretendente, mas não passa disso. Considero-lhe apenas um amigo, meu colega da faculdade, que está sempre flertando comigo. Entretanto, nunca o incentivo porque não quero machucá-lo nem mentir para mim mesmo.
━Alguns. -minto
Não gosto do rumo da conversa. Revivo as cenas do banheiro novamente e fico nervoso. Ainda lembro dele me dizendo que nunca havia tentado nada comigo porque não sabia se eu gostava de garotos. Não quero pensar nisso, pois ainda me deixa triste e me faz pensar no que poderia ter acontecido se ele tivesse tentado.
━Você é uma pessoa incrível demais, Kenny. Ás vezes me pergunto porque você não se arrisca mais.
Esse é um dos momentos em que gostaria que ele parasse de falar, porque não sei o que quer dizer com essas palavras. Arriscar? Admito que sou um pouco medroso para arriscar qualquer coisa, ainda mais um relacionamento e talvez seja por isso que eu estou sozinho.
━Arriscar? -repito baixinho com uma careta
━É, acho que você deixa de fazer várias coisas por medo.
Então eu entendo. Não é o que ele pensa, é o que Charlie disse para ele. Ethan tem essa péssima mania de não tirar as próprias conclusões e aceitar as das outras pessoas. Acho que ele aceita tudo o que Charlie diz como verdade absoluta porque se acha pouco inteligente. Ou talvez eu esteja errado? As suposições não param de aparecer em minha mente.
Respiro fundo e o encaro diretamente, quase perdendo minha linha de raciocínio em seus olhos.
━Ethan, Charlie não sabe de tudo. -as palavras saem da minha boca antes que eu possa contê-las e ele me olha com estranhamento
━O que quer dizer? -prevejo que minhas bochechas irão ficar vermelhas
━É que... -mordo os lábios com nervosismo- Acho que você acredita em tudo que ele te diz sem contradizer e só repete depois. Sobre eu não me arriscar, você pensa realmente isso ou ele te disse?
Sinto arrependimento logo em seguida, porque Ethan me encara com irritação. Não o olho diretamente e agora sei que deveria ter ficado calado. O que eu estou pensando? Não temos mais a mesma intimidade para dizer aquelas coisas. Sinto-me mal e engulo em seco, sem saber o que dizer.
━Desculpe, não quis te chatear. -murmuro rapidamente, sentindo as batidas rápidas do meu coração
━É isso que acontece com casais que passam muito tempo juntos, concordamos em vários pontos. -a voz dele sai indiferente e percebo que está magoado- Charlie não tem todo esse poder sobre mim e saber que você pensa assim me deixa triste. Eu tenho minhas próprias opiniões, não é porque moro com ele que pensamos de maneira igual. Eu acho que você não se arrisca.
━Ter vindo para Nova York foi o maior risco que tomei na minha vida. -murmuro
Sinto alguns arrepios por meus braços e engulo em seco. Sei que estou prestes a chorar. Quando se trata de Ethan sou fraco demais, porque dói ouvir aquelas coisas dele. Eu não deveria ter falado nada. Não o olho e ele sabe que estou triste também. Parecemos duas pessoas diferentes, distanciadas.
━Charlie nunca falou mal de você, pelo contrário. -sua voz sai baixa e me recuso a encará-lo- Por que você não gosta dele?
Eu nunca disse que não gostava dele. Meus sentimentos por Charlie são ambíguos. Algumas vezes ele me parece muito egocêntrico e arrogante, outras ele parece sempre disposto a ajudar. Ele é uma pessoa ambígua, que oscila de acordo com o dia, ou ao menos é essa a impressão que tenho.
━Nunca disse que não gostava de Charlie. Acho que vocês formam um casal bonito e ele te ama. -praticamente cuspo as palavras
Meus dedos estão apertados no guardanapo e não sei até onde aquela conversa irá chegar.
━Sempre que falamos sobre Charlie você tem algo negativo para comentar.
━Não é verdade! -falo mais alto, chateado com a injustiça de suas palavras- Mas não podemos gostar de tudo em uma pessoa.
━Do que você não gosta em mim?
Posso ver que ele está me testando e levando a conversa para outros lados. Não há nada que eu não goste nele a não ser sua facilidade em aceitar a opinião dos outros sem contestar. Suspiro com chateação.
━Por que está fazendo isso? -pergunto e me sinto derrotado ao fazê-lo
━Kenny, parece que você gasta muita energia pensando demais, criando hipóteses.
━Eu gastava muito tempo pensando em você. -digo com chateação, sem olhá-lo- Depois daquele dia achei que você estivesse brincando comigo, mas Charlie sempre teve algo a ver com tudo que você faz, quer você admita ou não.
Ele havia me beijado apenas porque precisava provar para Charlie alguma coisa. Nada do que penso ajuda em nada e me xingo por estar remoendo o passado. Ethan franze o cenho, irritado e me encolho na poltrona.
━Nem tudo é sobre Charlie. -ele murmura
━Nem tudo é sobre você.
Ficamos em silêncio até que ele se mexe para pegar a carteira do bolso.
━Estou estressado e achei que te ver me deixaria mais animado. -noto o tom de decepção em sua voz e suspiro com tristeza
━Você poderia se colocar no meu lugar. -falo rapidamente e me arrependo no mesmo instante
Com a mudança eu havia ficado mais corajoso, percebo.
━No seu lugar? Por acaso estamos falando do passado? Já pedi desculpas por ter sido um idiota no ensino médio.
Sinto um aperto no coração e olho para baixo.
━Não, me desculpe. -sussurro, sentindo as lágrimas se formarem- Não sei se podemos continuar nos vendo.
Meu coração bate acelerado conforme digo aquilo, mas repito para mim mesmo que é para o meu próprio bem. Nunca fui impulsivo, mas agora parece-me a decisão correta a tomar. Ethan faz uma careta, com o cenho franzido, sem acreditar.
━Isso tudo por causa de Charlie? Por minha causa?
━Não! Por minha causa. -respiro fundo- Preciso descobrir quem eu sou, longe de você, Ethan. Sempre me defini através de você, não sei o que é amar outra pessoa e quero descobrir. Não quero me machucar mais.
━Não entendo o que está dizendo, você parece mais... Direto, menos inibido. -ele pisca várias vezes e sinto meu rosto esquentar
━Estou surpreso comigo mesmo também. -sorrio
━É estranho, pensar que você sempre me amou e eu... -Ethan fecha os olhos e balança a cabeça- Todo esse tempo estive com Charlie, e eu o amo, mas você é meu melhor amigo, Kenny. Não quero me afastar.
━Nem eu, mas preciso. Preciso de espaço para descobrir quem eu sou.
Ele assente.
━Charlie vai ficar triste.
━Eu não o odeio Ethan, já disse. Ele é uma pessoa boa.
━Tudo bem. -ele suspira, cansado- Acho melhor eu ir agora, meu turno vai começar em quinze minutos.
Ethan levanta e se aproxima de mim. Quando seus lábios tocam meu cabelo num beijo rápido eu fecho os olhos, mesmo que por um segundo. Suas mãos encostam em meu queixo e sinto seu perfume em cima de mim. Quase me perco em seu cheiro. Ele se afasta e sinto um vazio enorme, mas digo a mim mesmo que tudo vai ficar bem.
______
Estou melancólico, mas não é nenhuma surpresa para mim. Já está escuro e apresso o passo para chegar à casa onde moro, mesmo sabendo que estou longe demais.
Sinto meu celular vibrar e fico surpreso ao ver quem é.
━Owen? -atendo rapidamente
━Sei que é estranho te ligar do nada, mas você não quer ir a um bar comigo?
A pergunta me pega de surpresa. A voz dele é grave e alta pelo telefone e ouço sua respiração nervosa pela linha. Olho para os lados, indeciso, mordo os lábios e decido aceitar a proposta.
━Pode ser, você está de carro?
Owen está sempre flertando comigo, mas nunca lhe dei abertura para nada. Hoje no entanto... Uma companhia cairia bem, para espantar essa aura triste de mim. Imagino-o dirigindo pelas ruas movimentadas enquanto fala pelo viva-voz comigo; é uma imagem bonita, porque ele é bonito também.
━Sim, posso te buscar em casa?
Fecho os olhos ao pensar em Ethan. Eu tenho que seguir em frente, então qual o problema? Owen é bonito e está interessado em mim, por que eu não lhe dou uma chance?
━Na verdade estou longe de casa.Pode me buscar no endereço que vou te dizer? -me sinto constrangido por pedir aquilo, mas sei que ele não vai negar, o que me deixa mais preocupado
━Claro!
Ele parece animado demais e me sinto culpado. Digo a rua em que estou, dou um ponto de referência e respiro fundo ao desligar.
Owen tem os cabelos castanhos ondulados e olhos cor de avelã, ele sempre é cordial e gentil comigo, apesar dos flertes. Sendo sincero eu gosto dele demais por ser respeitoso e nunca insistir em nada. Ele é um bom amigo, paciente e atencioso. Às vezes fico maravilhado com sua personalidade, que é otimista e alegre.
Espero na calçada, sentindo-me esquisito e ansioso. Não é como se eu fosse a um encontro, é?
Talvez Nova York esteja emprestando um pouco da sua agitação para mim, porque nunca estive tão nervoso.
______
Nossos sucos acabaram e minha comida, uma salada, e a dele, um hambúrguer, também. Owen me encara de um jeito intenso e galanteador. Minhas bochechas esquentam rapidamente.
━Você tem certeza que não come carne? -suas sobrancelhas se arqueiam e ele ri
━Absoluta. -murmuro com um sorriso
━Não acredito. -ele finge estar decepcionado- Hambúrguer é a melhor coisa do mundo, Ken.
Sorrio ao escutá-lo me chamar de Ken. Gosto do jeito como soa em seus lábios. Seu inglês tem um sotaque forte, quase britânico, e lembro vagamente de ele ter me contado que seus parentes eram da Inglaterra.
━Minha mãe faz hambúrgueres vegetarianos com soja, gergelim, alho e sal.
━E quando vai me levar para prová-los?-sua pergunta é sugestiva, mas seu rosto continua sorridente e gentil
Os traços dele são fortes e marcantes, principalmente a mandíbula, que é bem mais acentuada que a de Ethan. O nariz é romano, curvado na parte de cima e lhe dá uma aparência charmosa. A boca é fina, mas os olhos castanhos e as sobrancelhas retas são a alma de seu rosto.
━Desculpe, não quis ser inconveniente.
Meu rosto deve ter parecido estranho, porque ele fica sério e preocupado. Relaxo minhas expressões e sorrio.
━Ela mora no interior, atualmente estou alugando um quarto.
Não sinto vergonha disso, mas mesmo assim estudo sua reação. Ele não parece ligar.
━Podia alugar meu quarto. Tenho um apartamento e um quarto sobrando.
Não sei se é uma boa ideia. A sugestão me pega de surpresa e fico sem reação. Vasculho minha mente atrás de uma desculpa e só encontro aquele Kanaam que tem medo de deixar o passado e sentimentos infrutíferos para trás.
Owen inclina a cabeça e me estuda com atenção.
━Não tenho muito dinheiro, não ganho muito. -murmuro
━Você podia me pagar em hambúrgueres vegetarianos. -ele pisca
━Não seria justo! E os meus não são tão bons quanto os da minha mãe.
Nós dois rimos e acho incrível o jeito como estamos alegres juntos. Temos harmonia, isso é inegável. Estudo-lhe com admiração e sorrio para mim mesmo, feliz por ter colocado a tristeza de lado.
Estamos prontos para ir embora. Os dedos dele pressionam a borda do copo e percebo que ele está um pouco nervoso, pois não me olha diretamente.
━Eu realmente gosto de você. Obrigado por ter vindo aqui comigo. -sua voz sai baixa e calma
━Obrigado pela carona. -sorrio
Nos levantamos e Owen insiste em pagar para mim. Não reclamo, apenas lhe entrego minha comanda e me encaminho para a rua.
Lá fora há pessoas conversando e sorrindo, algumas fumando e outras sozinhas. Encosto-me na parede e admiro o céu sem estrelas acima de mim. A lua brilha entre as nuvens, pouco nítida, mas mesmo assim sinto uma sensação calma me invadir ao encará-la. Fecho os olhos.
É como estar livre, livre da angústia de estar apaixonado por alguém que nunca me amará. Sorrio, porque é um sentimento bom.
Um toque em meu ombro me desperta dos meus devaneios e levanto o olhar para Owen. Seus olhos parecem mais escuros devido ao céu noturno e meu coração acelera com a proximidade. As mãos dele estão nos bolsos e ele inclina-se para tocar seus lábios nos meus.
Não me afasto. Fico um pouco surpreso no início, mas a sensação de seus lábios nos meus faz eu me sentir bem. Fecho os olhos e sinto seus dedos em meu cabelo. Um arrepio passa por meu corpo.
É bom saber que Ethan não é a única pessoa que consegue me deixar agitado.
É libertador.
CHARLIE
━Onde está seu namorado?
Reviro os olhos com o tom da pergunta. Meu pai quer saber aquilo apenas para implicar com Ethan.
━Trabalhando, como você sabe. Pai, pare de implicar com ele e venha me ajudar!
Seguro a panela com o molho fumegante enquanto abro a gaveta para pegar uma colher. Aponto para a outra panela com a massa e meu pai a escorre dentro da pia antes de colocar seu conteúdo em uma tigela de vidro.
━Parece estar bom! -ele inclina-se, cheirando a massa e eu rio
━Está incrível porque foi feita por mim.
Mostro-lhe a língua e ele me dá um tapinha nas costas. Minha mãe está fazendo compras e almoçando em algum lugar chique de Nova York enquanto estou cozinhando para meu pai, que voltou de Paris ontem. E Ethan está trabalhando, como sempre.
O aroma de tomate e orégano invade o apartamento e sorrio ao colocar o molho em cima da massa. O contraste é bonito e delicioso ao mesmo tempo. A fumaça sobe até minhas narinas e fecho os olhos com prazer ao sentir o cheiro gostoso de alho.
━Estou com fome, Charlie. -ele resmunga e senta-se à mesa
Levo a tigela para a mesa com cuidado.
━Já disse que seu apartamento está lindo? -ele murmura enquanto o sirvo
━Eu que decorei.
━Você sempre teve bom gosto. Seu namorado está te ajudando a pagar o aluguel?
━Você sabe que Ethan não ganha muito para poder pagar a metade. -engulo em seco e sento-me em sua frente
Ele começa a comer, escutando-me com atenção. Fecha os olhos na primeira garfada e sorri com prazer ao saborear minha comida.
━Está realmente incrível. -meu pai limpa a boca com um guardanapo- Você está pagando praticamente todo o aluguel?
━Não, pai, você está pagando, afinal, ainda recebo mesada. -coço a cabeça com constrangimento
Não me orgulho de ser sustentado por meu pai, mas quero me dedicar ao máximo à faculdade para me tornar um chefe respeitado e abrir um restaurante no futuro.
━Então eu estou pagando tudo?! -ele faz uma careta
━Não! Ele ajuda, eu só... -mordo os lábios- Eu só digo para ele que o valor é menor do que realmente é, pra ele não ficar sem dinheiro.
Eu não deveria mentir para Ethan, mas não quero vê-lo sofrer. Ethan já sofre por trabalhar muito e receber pouco, então resolvi mentir sobre o preço do aluguel. Mas sei que não deveria ter feito isso. Dinheiro é um assunto delicado para Ethan.
━Você deveria contar para ele, não é legal mentir em um relacionamento.
Sorrio. Meu pai tem uma alma jovem, em parte por conta da profissão, ele é artista plástico. Ele nunca irritou-se ou brigou comigo e agradeço por isso; é diferente da minha mãe.
━Eu sei, mas não queria que ele pagasse sem ter dinheiro.
Sinto-me culpado por minha mentira. Eu já havia procurado um emprego bom para ele, mas não tinhaencontrado nada. Uma ideia surge em minha mente: meu pai pode ajudar Ethan, não?
━Pai, você não conhece algum lugar que pague bem e que precise de funcionários? -ele arqueia as sobrancelhas e aperta os olhos ao me encarar
━Quer que eu arranje um emprego para o seu namorado? -ele limpa a boca no guardanapo e olho para meu colo
━Sim, não quero mentir para ele. É difícil encontrar um emprego em Nova York quando não se tem muitas qualificações... -suspiro com frustração
Meu pai não gosta de me ver naquela situação. Ele é bem mais amigável do que minha mãe, e bem menos julgador. Não queria ter apelado para ele, mas é minha última alternativa. Quero que Ethan tenha qualidade de vida e tempo para descansar.
━O que esse garoto vai fazer da vida? O que ele quer?
As palavras me atingem com força e gaguejo antes de falar. Eu não sei. Ethan e eu nunca tivemos aquela conversa. Talvez porque eu foque as atenções em mim? Fecho os olhos com raiva. Por vezes eu me odeio por ser mesquinho e egoísta desse jeito, mas só percebo essas atitudes depois. Nunca perguntei para Ethan o que ele quer.
Os pensamentos começam a me encher de tristeza e massageio minhas têmporas com frustração.
━Se você encontrar alguma coisa me diga, ok? Algum trabalho bom. -murmuro e começo a comer sem olhá-lo
Não quero conversar, meus pensamentos estão voltados para Ethan, em seus desejos e sonhos, com os quais eu não me importei antes de vir para Nova York.
Não consigo deixar de pensar que puxei grande parte do meu egoísmo da minha mãe. Entretanto, não há nada que eu possa fazer além de tentar concertar meus erros, porque diferentemente dela eu quero ser uma pessoa melhorar.
______
Meus colegas conversam animadamente comigo. Tento prestar atenção, mas estou atento a Ethan, que caminha em minha direção. Ele não gosta dos meus colegas e me despeço antes que brigue com eles.
Caminho em sua direção, pouco surpreso ao vê-lo com o cenho franzido.
━Como foi com Kanaam? -pergunto e inclino-me para beijá-lo nos lábios
O campus da faculdade está cheio, com pessoas andando para lá e para cá, conversando e rindo alto. O sol me deixa um pouco zonzo e puxo os óculos sobre meus olhos para protegê-los.
━Aquele seu colega, vocês são próximos?
Reviro os olhos e cruzo os braços. Minha bermuda jeans vermelha contrasta com sua calça azul e fico por alguns momentos apreciando a diferença de altura entre nós, perdido nos tecidos que cobrem nossos corpos.
━Ele é meu colega apenas. Pare de ser ciumento, quero saber sobre o seu dia.
Ele fecha a expressão e eu suspiro com chateação. Quando comecei a ir para faculdade notei um comportamento irritante em Ethan: o ciúmes dele nos fazia brigar constantemente. Ele não gosta de me ver perto de outros homens e tem algumas atitudes possessivas que não estavam presentes na época da escola.
━Tudo bem. Aparentemente Kenny precisa de um tempo. Ele disse que quer ficar longe de mim.
Franzo o cenho sem entender.
━Ele está namorando? -pergunto porque faz tempo que não o vejo e talvez esse seja o motivo pelo qual ele não queira mais ver Ethan
━Não, acho que não. -as mãos dele pousam em meus ombros e ele suspira- Acho que ele quer distância de nós.
Mordo os lábios, mas entendo. Kanaam sempre foi como uma sombra de Ethan e talvez agora ele precise de liberdade, porque é isso que Nova York faz com as pessoas, dá essa sensação de que podemos mudar. Fecho os olhos e o abraço carinhosamente, tentando não pensar nos meus erros.
━Tudo bem, você ainda tem a mim. -rio enquanto o beijo no pescoço
Ethan não sorri, mas me abraça com força. Sinto falta de Kanaam e sua aura calma. Ele é como a voz da razão sobre nós, mas sempre esteve deslocado com minha presença. Eu nunca quis deixá-lo de fora e saber que ele quer um tempo de Ethan me deixa preocupado.
______
Sinto arrepios enquanto seus dedos sobem por baixo da minha camiseta. Fecho minhas pernas em volta da sua cintura e o puxo para mais perto.
Nossas bocas se movem com precisão, em sincronia. Meus braços estão em seu pescoço e logo o beijo ali, fazendo uma trilha por seu pescoço. Ethan tem os músculos firmes, os ombros largos e com apenas um toque dele fico excitado. Ele é lindo e, quando está sem camisa, como agora, me deixa quase salivando.
Sinto seus dentes em meu pescoço e toco seu abdômen, esfregando meus dedos em sua barriga definida. A trilha de pêlos abaixo do umbigo, que cresceu ainda no ensino médio, é meu ponto preferido do seu corpo.
━Você é tão bonito, poderia ser modelo. -murmuro, meio zonzo, em meio aos beijos.
Ethan ri e beija minhas bochechas com carinho. Ele puxa minha camiseta pela cabeça e aperta minha cintura, causando arrepios incríveis por meu corpo.
━Não fale besteira, as pessoas ficam em choque só de te olhar. -ele sussurra em meu ouvido
Solto um gemido baixinho enquanto seus dedos apertam minhas coxas por cima da bermuda.
━Não tenho altura para ser modelo. -consigo murmurar com dificuldade
━Eu seria bem mais ciumento se você fosse. Não quero te ver mostrando o corpo ou junto a outros modelos.
Abro os olhos e o encaro seriamente. Ele ainda está chateado porque minha mãe trouxe um modelo para jantar aqui em casa semana passada. Não gosto quando ele é possessivo comigo, até porque não sou ciumento com ele.
━Quando te vejo no serviço sempre tem várias garotas em volta de você. -o provoco
Ele suspira e sorri.
━Não é uma competição de ciúmes.
━Ethan. -seguro seu rosto próximo ao meu e respiro fundo- Eu amo você, jamais te trocaria por um modelo qualquer. -rio baixinho- Então pare de ficar criando paranoias porque eu quero muito fazer sexo hoje.
Suas bochechas ficam vermelhas e rio alto com sua capacidade de ainda ficar vermelho quando falo essas coisas. Mordo seu queixo.
━Você me ama? Tem que confiar em mim. -sussurro
Quero que ele me dê atenção, quero dar atenção à ele, mas também quero um relacionamento sem tantas brigas e ciúmes.
━Amo. Demais.
E então nos beijamos novamente, com vontade e paixão. Seu rosto ainda está corado e meu coração acelera com tantos sentimentos. No início eu pensei que Ethan fosse ser apenas uma paixonite rápida, alguém com quem passar o tempo, mas então ele tornou-se a pessoa mais carinhosa que eu conheço.
Eu não poderia me sentir mais amado do que isso.
ETHAN
Bato na porta do apartamento e fico chateado ao perceber que Charlie não está em casa. O gatinho em meus braços é parecido com ele: tem o pelo branco e olhos azuis, além de ter muita personalidade. É a minha surpresa para ele. Um colega do trabalho achou uma ninhada e me ofereceu um deles.
Vasculho os bolsos em busca da chave, equilibrando o gato em minhas mãos até encontrar o barulho familiar do metal. Abro a porta rapidamente e suspiro com alívio ao perceber que nem a mãe nem o pai dele estão ali.
Fecho a porta e largo o gatinho no chão, admirando-o com carinho. Pego dois potes e os encho, um com água e outro com um pouco de ração que comprei. Ele corre e bebe um pouco da água, para logo em seguida explorar o apartamento.
As paredes têm um papel de parede azul e o sofá vermelho e cheio de almofadas amarelas dá ao lugar a cara de Charlie. Há algumas roupas jogadas nele e fico surpreso ao perceber que em cima da mesa há uma pilha de correspondência. Ele deve ter saído há pouco tempo.
Noto que a televisão está ligada e franzo o cenho. Onde ele pode ter ido? Entro no nosso quarto e o vejo como sempre está: a cama desarrumada com lençóis coloridos. No banheiro também não há sinal de Charlie.
Resolvo sentar e vasculhar a correspondência. Os vários envelopes empilhados me deixam intrigado... De quem são todas essas cartas? A maioria são contas, mas algumas vieram da França.
Começo pelas contas e a primeira é a do aluguel. Sinto-me idiota por nunca ter pagado uma conta, simplesmente dou o dinheiro para Charlie. Agora, enquanto a abro, fico um pouco tenso. Passo os olhos sobre os valores e o cálculo não fecha. Charlie havia me falado que o aluguel custa 4 mil dólares, mas na conta o valor está em 8 mil. Sempre lhe dei 2 mil.
Analiso a conta e faço cálculos rápidos sem entender nada. O aluguel custa 8 mil. Eu jamais conseguiria pagar 4 mil dólares com o que ganho. Encaro o papel com irritação agora. Ou Charlie está mentindo para mim ou o valor da conta está errado.
Será que Charlie mentiu para mim sobre o valor, para eu não gastar tanto? Fico irritado com a possibilidade. Não preciso de proteção ou de alívio. Seria esse um dos motivos pelos quais os pais dele me odeiam? Decido deixar o aluguel de lado e me deter nas outras cartas. Estou nervoso e passo as mãos nos cabelos sem saber se devor tirar conclusões precipitadas ou o espero chegar para conversarmos.
Abro as cartas da França com um suspiro cansado. Estão em francês e o pouco que sei, que Charlie me ensinou, não é o bastante para entendê-la. Passo os olhos pela caligrafia bonita e rio baixinho. Quem manda cartas quando se tem internet? Arregalo os olhos ao ler o nome assinado ao final da folha. Octave Gardet.
Aperto os dentes com frustração. Charlie e eu estamos sempre brigando devido ao meu ciúmes, mas não gosto de vê-lo perto de outros homens, não quando me sinto tão inferior a ele por ganhar pouco. E agora, ao saber que o ex-namorado dele lhe manda cartas, me sinto traído.
Respiro fundo ao passar brevemente os olhos pelas letras. A caligrafia é bonita e desenhada; algumas palavras me dizem que o conteúdo daquela carta é bem mais profundo do que imagino.
As suposições começam a me deixar irritado. Além de ter mentido sobre o aluguel, Charlie recebe cartas do ex-namorado, com quem não fala há três anos. Ou ao menos é isso que ele me diz.
Dou um pulo ao ouvir a porta da frente abrir e sinto o perfume dele assim que entra. Olho para a porta, meu coração pulsando com rapidez e ansiedade. Charlie está sorrindo, com uma sacola de papelão nos braços. Vejo legumes coloridos quase transbordando do papel, mas não me mexo para ajudá-lo. Seu semblante é alegre e ele está lindo como sempre. T
oda vez que entra em algum ambiente todos param para admirá-lo, inclusive eu. Eu ainda o admiro por vários minutos quando não está olhando, como no ensino médio. Meu coração ainda acelera e por vezes me pego sendo mais romântico do que de costume.
Os olhos azuis logo se prendem na bolinha de pêlos branca que caminha pela casa. Não digo nada ao vê-lo exclamar com felicidade, pegando o gatinho no colo.
━Ethan! Nem acredito nisso, você adotou um gato?!
Sua voz suave e com menos sotaque reverbera pelo apartamento. Meus dedos tamborilam na mesa, ainda pensando nas cartas e no aluguel. Coço a cabeça com nervosismo, tentando conter o tom com o qual as próximas palavras sairão.
━Quanto custa o aluguel?
Falo de um jeito mais rude do que pretendo, mas não tenho tempo para arrependimentos. Mordo o interior da minha bochecha, com medo da sua resposta. Ouço apenas o tique-taque do relógio enquanto o encaro seriamente, concentrado em seu semblante surpreso.
Charlie relaxa e suspira. Se aproxima lentamente, larga o gato no chão e toca meu braço. Levanto os olhos e então, em um segundo, com um olhar, sei que ele mentiu. Suas sobrancelhas estão unidas, quase em súplica e desvio meu olhar para a mesa a minha frente.
━Você mentiu sobre o aluguel. Mas e essas cartas? -pego algumas com irritação e estendo-as para ele
Charlie as pega com o cenho franzido.
━Eu nunca respondi, ele vive me mandando essas cartas, Ethan.
━Sobre o que mais tem mentido? -insinuo
Não sou cínico desse jeito, mas não sei de que modo reagir. Estou irritado e não quero brigar, sei disso, mas acho que Kanaam tem razão. Sinto-me deslocado no apartamento dele, onde a mãe e o pai vem visitá-lo constantemente. Tenho medo de fazer qualquer coisa para magoá-lo, mas parece que ele nunca pensa em mim, no que eu sinto ou quero. Charlie é egoísta e por muito tempo relevei essa sua característica.
━Sobre nada! -suas bochechas ficam vermelhas- Eu não queria que você gastasse todo seu dinheiro com o aluguel. -algumas lágrimas se formam em seus lindos olhos azuis e sinto meu coração apertar- E eu ia te contar essa semana.
Aperto os olhos com chateação.
━Podia ter me dito isso desde o início, teria sido mais honesto. -murmuro
Ele toca meus ombros e inclina-se para beijar meu pescoço. Ouço seu choro contido, sinto seu perfume e fecho os olhos. Eu o amo demais. Só com essa aproximação sinto meu corpo esquentar. Seu toque em mim é poderoso. Mas eu já aguentei demais, não? De vê-lo pensar somente em si, de ter opinião sobre tudo e me induzir a fazer e dizer certas coisas...
Afasto suas mãos de mim e me levanto.
━Eu nunca respondi as cartas, Ethan. -a voz sai embargada e não o encaro
━Charlie, eu vim para Nova York pensando em nós dois, mas durante muito tempo não quis ver a pessoa que você é.
━A pessoa que eu sou?!
Sua voz adquire aquele tom ofendido que eu conheço bem.
━Você é egoísta e mimado. -falo baixo, minha respiração acelerada- Kanaam diz que você é manipulador.
Aquele é o choque maior. Finalmente o olho. Ele pisca, as lágrimas escorrem por seu rosto.
━Nunca quis ser assim. Sempre tentei melhorar. Não sei onde melhorar se você não me disser, Ethan! -ele quase suplica e se aproxima
━Não estou aqui pra te fazer evoluir, sou seu namorado e não um fã. -ele franze o cenho com irritação
━Você está sendo injusto! Me desculpe pelo aluguel, não sei o que quer de mim. Eu te amo, nunca quis que você se sentisse mal.
━Você nunca se sentiu mal, Charlie, com nada. Sempre teve tudo, nunca lutou pra conseguir algo.
Dói dizer aquelas palavras, mas elas se acumalaram há tempos dentro de mim e, com tristeza, as solto no ar.
━Não me orgulho disso. -ele diz baixinho- O que quer de mim? -seu olhar é quase se desespero e ele tenta estudar meu rosto mais de perto
Suas mãos fecham-se em meus braços e eu não me movo.
━Você mentiu para mim. Eu não preciso ser poupado de nada, já sou adulto! -minha voz sai alta e reverbera pelo apartamento- Acho que... Nós dois precisamos melhorar. Eu não estou feliz assim .
━Ethan, você está me pedindo um tempo?! -ele parece desesperado, apavorado com a possibilidade
━Não.
Não quero ficar longe dele. Não consigo, já estou acostumado com seu corpo, seus beijos, seus toques...
O sotaque dele ainda me causa arrepios. Toda vez que o ouço falar em francês pelo telefone chego perto para escutar e, enquanto isso, ele acaricia meus cabelos com seus dedos finos e delicados. Fecho os olhos ao lembrar disso.
━Você precisa conversar com seus pais. Não gosto quando eles falam como se eu não estivesse aqui, me insultam.
━Eu sempre te defendo, é o jeito deles. -ele murmura e fico irritado
━Eu quis te fazer uma surpresa. -aponto para o gato e Charlie me abraça
━Me desculpe -sua voz sai fraca e sinto seus lábios sobre meu pescoço, delicados e suaves- por ser assim.
Xingo-me por ser tão fraco. Quero abraçá-lo e dizer que o perdoo, fácil assim. Com tristeza percebo que Charlie sempre consegue o que quer, até se reconciliar comigo mesmo eu estando irritado. O preço do aluguel não está mais na minha cabeça porque sinto seus dedos abrindo meu cinto.
━Charlie, não é com sexo que vamos resolver isso. -murmuro com constrangimento
━Eu quero te deixar feliz. -seus dedos brincam com o cós da minha cueca e tiro suas mãos dali
━Não quero. Nem tudo pode ser como você quer.
Deixo-lhe no meio a sala, parado e chocado, enquanto saio em busca de ar e tranquilidade.
______
O efeito da nicotina em meu cérebro me deixa quase aéreo. A sensação gostosa de relaxamento me faz sorrir a toa. Não disse a ele tudo que queria, tudo que precisava. Sou fraco, inútil e impotente.
A lua está cheia e, ao olhá-la, penso em meus pais. Todo esse tempo em Nova York e me ligaram apenas uma vez cada um. Sorrio com amargura.
Há dias em que fico assim, melancólico e deprimido porque penso no que estou fazendo com a minha vida e a resposta é incerta. Conseguir um emprego foi difícil, pagar o aluguel é difícil e lidar com Charlie e sua família é complicado demais.
A família dele me traz sentimentos ambíguos. Sinto inveja porque eles se preocupam demais com Charlie; sinto alívio por não ter crescido no meio deles, que sempre exigiram muito do filho e talvez o transformaram na pessoa que é hoje. Mas então compreendo que não deve ter sido fácil criá-lo para vê-lo ficar com alguém como eu.
Olho com tristeza para o céu.
Lembro do primeiro dia em Nova York como se fosse ontem. Charlie me ensinou a cozinhar frutos do mar, sem muito sucesso. Fizemos uma bagunça na cozinha, principalmente por minha causa, que não o deixava trabalhar apenas para ficar beijando-o. Sorrio com saudades.
Desde então venho tentado aprender a cozinhar, longe de Charlie, porque ainda sinto vergonha de errar na frente dele. É meio esquisito o jeito como penso nele, como se fosse superior a mim. Ou talvez seja a postura dele que lhe dá esse ar de superioridade.
Ele é extrovertido e isso me deixa louco de ciúmes. Uma vez saímos para jantar e algumas pessoas o reconheceram do programa de televisão. Foi o suficiente para fazê-lo conversar sem parar, com o carisma de sempre, enquanto eu o observava com ciúmes porque seu entusiasmo não era por minha causa.
Dou uma tragada forte no cigarro e tusso em meio a fumaça. Charlie não é mau ou manipulador como Kanaam pensa. Agora que estou mais relaxado tento refletir sobre isso. Talvez a criação dele tivesse colocado-o no centro de tudo. Ele é bom, simpático, carismático e amoroso, mesmo que seja bastante egoísta.
Ainda não sei o que pensar de Kanaam. O tempo que ele precisa longe de mim vai ajudá-lo? Agora preciso dos conselhos dele, da sua voz calma e presença tranquilizante. Seria o momento perfeito para conversarmos.
Nunca me senti tão sozinho como agora. Charlie parece centrado na faculdade e em si mesmo, assim como Kanaam. O que me resta? Apenas observá-los. Nem ficar irritado ou chateado por muito tempo eu consigo.
Será que Charlie não enjoou da minha presença? Suspiro e fumo com nervosismo, sentindo a brisa em meu rosto. Ele diz que me ama demais e quando ele fala isso eu acredito, sei que é verdade. Mesmo que tenha mentido para mim eu sei quando ele está sendo sincero. Vejo em seus olhos o carinho que nutre por mim.
Mesmo que eu tenha ciúmes e aja como um louco, não querendo que ele saia com os amigos, eu o amo demais. Apesar dos defeitos ele é uma pessoa incrível.
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