Capítulo 19
KATE
Sentada em uma poltrona branca de frente para um espelho que não escondia em nada minha fadiga, esperava pacientemente. Pernas dobradas, braços sobre os joelhos, chacoalhando os pés no ar, lutando contra o cansaço. Não era possível que colocar um vestido no corpo demorasse tanto.
Mas Nina se provava mais do que capaz.
Dez longos minutos.
Como?
Quando o último foi rejeitado, ela segurava a próxima opção na mão.
E não saiu do provador depois disso.
Ouvia sua voz, num burburinho sem parar com a vendedora. As duas dentro de um espaço minúsculo por tempo mais do que suficiente para que a minha nada ortodoxa amiga se enfiasse dentro de um pedaço de pano. Bocejei. Meu sono era gigantesco. Minha rotina se resumia em dormir em um sofá duro e pequeno de hospital e dar aulas o dia inteiro. Quando pensei que conseguiria ter algumas horinhas em uma cama perfeitamente confortável, fui arrastada para fazer compras.
Maior prova de amizade impossível.
Sono era sagrado.
— Acha que uma hora ela sai lá de dentro? — Nathan perguntou, buscando meu rosto com os olhos afáveis, porém refletindo o desânimo por ter de esperar assim como eu.
Exatamente. Nina e Nathan. Os dois pareciam chiclete. Como se fossem amigos desde sempre. Ao contrário do primo que fez aquela bendita aula de tiro com o único propósito de me provocar, Nathan realmente se interessou. Voltou todos os dias naquela semana. E na semana seguinte também. Suspeitei que fosse por causa da russa pirada, mas não.
Ele não a olhava como se a desejasse como mulher.
Ou como se desejasse qualquer outra mulher.
Nina claramente ficou desapontada.
— Poxa, só porque pensei que daria uns pegas no americano gato. Minha maior fantasia é ser a professora rigorosa que coloca o aluno safado e delícia na linha...
Ela não daria pega nenhum nele, mas os dois se juntaram e não mais se largaram. A dupla N&N, como tinha intitulado os dois, adorava uma balada e música alta.
Segundo Nina, Nathan era o homem da vida dela.
— Moreno, alto, bonito, sensual, cheiroso, atira bem, tem um sorriso divino, um corpinho sensacional, e ainda por cima tem um olho incrível pra macho, bem melhor que o meu. Quer coisa melhor?
Expirando longamente, o olhei e sorri.
— Se ela não sair nos próximos minutos, eu mesma vou lá e a trago até aqui — recostei no encosto estofado, cruzando os braços, observando seu risinho de divertimento. — Entendo que as mulheres demorem escolhendo roupas, mas ela exagera. Não sei como você ainda está aguentando ficar aqui.
Nathan girou sobre o assento. Encarou-me de frente, alargando o sorriso branco e gentil. Antes de me responder, tomou uma lufada de ar e passou os dedos pelos fios de cabelo. Estar perto dele era estranhamente confortável. Sua presença era como um bálsamo. Suas palavras eram sempre bem pensadas e inteligentes. Sua postura era a de um cavalheiro.
— Não tenho nada mais interessante pra fazer, pelo menos com Nina sei que não ficarei entediado. Fora que ter a oportunidade de conhecer a famosa Ekaterina de verdade é bem animadora. Sem ninguém a tirando do sério, você sendo você mesma. E claro... — abriu os braços, indicando a si mesmo — mostrando quem eu sou também. Afinal, tenho o dever de zelar pelo meu sobrenome.
Rimos juntos.
— Pelo menos alguém pensa nisso — respondi.
— Dylan tem preocupações maiores do que essa — deu de ombros. — Ou ele pelo menos acha que tem. A verdade é que meu primo e eu somos muito diferentes, mas mesmo assim nos estendemos mais do que bem. Só assim pra eu ser capaz de aturar toda a loucura que o cerca.
— São mesmo tão diferentes assim? — meneei a sobrancelha — Não sei se acredito muito, não.
Cutuquei brincalhona.
— Somos. Eu sou a voz da razão. Ele é a voz da perversidade.
— Nisso sou obrigada a concordar.
E como concordava.
— Sabe... — achegou-se, sentando lado a lado comigo, imitando o modo como estava apoiada, sem deixar de olhar em meus olhos — eu disse uma coisa a ele. E agora que estamos nós dois aqui, posso falar diretamente para a russa que o deixou pirado.
Franzi a testa.
— Tenho até medo de perguntar o que seja — confessei.
— Não precisa, não mesmo. Ainda mais de mim. Sou inofensivo, a não ser quando fico bêbado — puxou o lábio inferior com os dentes enquanto coçava a barba que despontava em seu rosto. — Nessas ocasiões meu bom senso entra em colapso e é bem capaz de você me encontrar em cima de um balcão, cantando alto e enchendo a cara com tanto álcool que poderia me considerar um russo.
— Balcão? — arregalei os olhos, surpresa.
— Não queira nem ver, perco a linha totalmente — balançou a cabeça, como se dizer aquilo fosse constrangedor demais. — Mas voltando ao assunto, o que disse para ele era que eu era seu fã de carteirinha, ou algo desse tipo.
— Meu fã? — inclinei a cabeça para poder vê-lo melhor, achando suas palavras um tanto engraçadas — Não sou digna de nada disso. Não sou famosa ou influente. Sou tão ordinária quanto qualquer outra pessoa. Sem contar que não fiz nada demais. Apenas o que a esse ponto já deve saber.
— Nada demais... — contraiu o rosto quase de maneira acusatória e maliciosa, me fitando intensamente, tão denso que senti um frio na barriga — tem certeza disso?
A pergunta soou excessivamente baixa. Incisiva. Direta.
Respirei fundo.
— Tenho — sussurrei, o coração estranhamente batendo rápido.
— Bem... — pegou minha mão e a cobriu com a dele, brincando com os meus dedos. O encarava sem entender seu ponto. O que ele queria dizer? Nathan balbuciou algo e envolveu meu braço, me puxando para um quase abraço. Aceitando a proximidade, usei seu corpo para me reclinar. Nina acertou quanto ao homem da vida dela — vocês são dois cabeças duras. E não tente negar.
Murmurou em minha orelha.
— Que? — soltei uma risada — Negar? Mas não sei do que está falando.
— Se diz... — me olhou sobre os ombros e repuxou a boca, como se não acreditasse — de qualquer jeito, não muda minha fascinação por você. Fiquei sabendo que o chamou de prepotente, isso com certeza valeu o dia.
Encostei minha testa em seu ombro e abafei a gargalhada.
— Diga mais vezes — cochichou achando graça. — Se alguém pode fazer isso, ou qualquer coisa com ele, sem dúvidas é você.
Engoli em seco. Meu sorriso diminuindo. Ergui o rosto e procurei o seu. Nathan me estudava com atenção. Contando com os olhos aquilo que os lábios não pronunciavam.
— Sei que não vai perguntar, mas ele não foi embora depois de conseguir o que queria — tocou em meus cabelos, ajeitando os fios fora do lugar, sabendo que era exatamente aquilo que eu queria ouvir. — Ele não faria isso com você, Ekaterina.
Dylan tinha sumido. Não nos vimos mais desde o dia em que o deixei no quarto de hotel pelado e sedento para recomeçarmos nosso momento de extravazamento. Dias sem nenhum tipo de contato ou aproximação.
Por muitas vezes me vi no limite da curiosidade para perguntar a Nathan se ele sabia do paradeiro do americano abusado. Mas não fiz. Seria mais do que atestar que sentia falta das suas doidices. Era afirmar que sentia falta dele e do que ele causava em mim. Por qualquer razão que não era nenhum pouco lógica.
E mesmo assim, queria vê-lo outra vez.
— Quando menos esperar, ele dará o ar da graça — assegurou convicto, descendo os dedos até minha mandíbula, amparando meu rosto com suavidade. — São apenas alguns problemas que teve que resolver.
— Não precisa mesmo me explicar coisa alguma — tentei soar convincente. — Nunca prometemos nada um ao outro. Eu mesma me responsabilizei por isso. Há coisas que não precisam ser aprofundadas — falei séria.
Sorriu de lado, tocando a ponta do meu nariz.
— Cabeça dura — insistiu, deixando escapar em suas feições o descontentamento com a minha negativa.
Balancei a cabeça.
— Está vendo coisas demais, americano número dois — retribuí, prendendo seu nariz entre meus dedos. — Minha única preocupação no momento é com essa mulher que não aparece nunca. Eu juro, se Nina estiver em um vestido parecido com aquele amarelo ovo, darei minha opinião sincera sem medo algum se ela vai gostar ou não.
A gargalhada de Nathan foi subindo de seu peito, passando por sua garganta, explodindo alta pela loja de roupas. Estrondosa e aguda. Uma senhora que estava em pé em uma das araras, escolhendo vestidos que se eram para ela não serviriam, imediatamente se virou para nós. O rosto sisudo e austero mostrando o aborrecimento com a nossa conversa.
— Ai meu Deus — Nathan arregalou os olhos. — Ela vai me matar, Kate — disse assustado, tentando se esconder atrás de mim.
Revirei os olhos, dando um tapa estalado em seu braço.
— Para com isso, homem. Ela não vai matar ninguém, não é porque é russa que vai sair cometendo crimes por aí.
A mulher passou por nós, não antes de parar por segundos ínfimos diante da poltrona, franzir o nariz, nos olhar de cima a baixo, crispar a boca e jogar os fios que batiam nos ombros para trás. De soslaio, via Nathan encará-la. Sorrindo ironicamente, dando um tchauzinho animado.
— Isso sim é pedir pra morrer — falei, vendo a sineta da porta sacudir e a mulher ir embora. Com o nariz em pé e a cara de poucos amigos.
— Não faço ideia do que esteja falando.
E lá estava a marca característica da família, mesmo que eu só tivesse conhecido dois integrantes dela.
— Americanos, sempre...
Um gritinho agudo me fez fechar os olhos e cobrir os ouvidos.
— Esse é o vencedor do dia, amores — Nina abriu a cortina branca do provador com euforia, girando sobre os pés, fazendo o vestido preto rodar em seu entorno. Sorria sem parar. Passando as mãos nas pregas que começavam na cintura e seguiam até seus pés. Tomara que caia como ela gostava. Deixando suas clavículas belíssimas como dizia à vista de todos.
— Disse isso da última vez — relembrei, baixando as mãos com cautela, era bem provável que ela gritasse de novo. — E antes também, com o vermelho. Na verdade, disse isso com todos. Menos com o amarelo ovo.
Ergui um pouco a cabeça. Encarando-a pelo espelho. Erguendo as sobrancelhas.
— Rá. Sabia que tinha odiado — me acusou, estreitando o olhar.
— E você também — revidei. — Quem em sã consciência usa uma cor daquelas?
Um sorriso maldoso se desenhou em seus lábios rosados.
— Queria ver a sua cara. É sempre engraçado ver a sua tentativa de agradar e não machucar.
— Uau. Quer a verdade? — cruzei os braços — Era horrível. Tecido péssimo, recortes sem sentido, decote estranho. Te deixou parecendo uma pata.
— Eu sei — fez pouco caso, arrumando o penteado que queria se desmanchar. — Pior que as roupas ultrapassadas e com cheiro de naftalina da minha avó.
Suspirou. Analisando sua figura.
— Mas tirando aquele, todos são divinos — colocando as mãos na cintura, se virou. — O que acha marido, estou bonita?
Sua atenção recaiu sobre Nathan que piscou assim que ouviu a palavra marido.
Ai meu Deus. Pus a mão na testa e chacoalhei a cabeça. Pobre Nathan.
Ele pareceu não se importar com o título posto. Levantou-se mostrando toda sua classe, puxando as mangas do colete que usava, ajustando o colarinho. Andou até ela sem demonstrar receio algum. Estendeu a mão para Nina. Em resposta, ela fez-se de encabulada e ofereceu a sua. Nathan a pegou e plantou um beijo delicado no dorso.
Nina quase se desmanchou.
— Está absolutamente linda, cara russa. Ou melhor... — pôs a mão sobre o peito e pendeu o rosto alguns centímetros para baixo, numa reverência singela — esposa.
— Assim eu caso mesmo, seu lindo — via os dois sorrirem um para o outro. — Desencalhei finalmente, Kate. Pode se preparar para ser a minha madrinha. Vou sair do buraco com estilo. Adeus brucutus, adeus embustes horrorosos. Acho melhor avisar meu pai que finalmente ele vai poder parar de encher o meu saco.
Nina prometeu antes de se jogar sobre Nathan. Ele a pegou, laçando a cintura dela com os dois braços, deixando-a pairar no ar.
Quando seus pés tocaram o chão, ainda tendo os braços apoiados nos ombros dele, me fitou. Vi o brilho em seu rosto.
— Achei uma coisa que você vai amar, Kate.
Desvencilhou-se dele e andou apressada até o outro lado da loja, sumindo da minha vista. Eu e Nathan nos entreolhamos curiosos. Não fazendo ideia do que ela iria fazer. Quando voltou, trazia outra vendedora bastante animada que segurava um vestido pequeno nos braços.
— Encontramos algo perfeito para a nossa bailarina.
Abrindo um sorriso, pegou o cabide e me mostrou o que era. Um vestido rosa. O corpete era brilhante, a saia de tutu era exageradamente bufante. As alças finas eram cheias de pedrinhas em tons variados.
— Ela vai amar não vai? Eu estou apaixonada. Pensa só naquele pingo de gente dentro disso aqui.
Amar seria pouco. Natasha provavelmente iria querer pular sobre a cama.
— Vai dar gritinhos iguais aos seus — concordei, encarando Nina nos olhos. Agradeci em silêncio, ela deu uma piscadela satisfeita.
— Levarei todos então — disse animada na direção da vendedora. — Menos o amarelo ovo.
[...]
— Marido, você faz o que da vida? Aliás, o que você e o seu primo gato estão fazendo aqui na Rússia?
Por debaixo da mesa, pisei no pé de Nina para que parasse com o interrogatório. Ela começou devagar, perguntando onde ele morava, se namorava, do que gostava. Até que foi se aprofundando, querendo arrancar dele informações pessoais demais.
— Sou advogado, ou pelo menos tento ser na maior parte do tempo — revelou tranquilamente. — E estamos aqui para resolver pendências da família. Sabe como é... — bebericou de sua xícara, saboreando o chá de camomila — americanos.
— Ah, sim... — Nina devolveu o pisão e me cutucou com o cotovelo. Sabia que ela queria que eu colocasse mais lenha na fogueira. — Pendências. O que acha disso, Kate? Você também tem pendências a serem acertadas?
Virou o rosto. A maldade brincando em seu olhar irônico e na boca afiada.
Rolei os olhos.
— Nenhuma.
— Nenhuma? — fez-se de chocada — Estou impressionada, pensei que tinha dito que um tatuado aí precisava...
Chutei sua canela.
Fechou os olhos e mordeu a boca, se controlando para não gritar. Respirou fundo antes de me fuzilar indignada.
— É do Dylan que falam, não é? — Nathan gracejou.
— Não — rapidamente falei, desviando da pergunta.
— É sim — Nina confirmou enquanto esfregava onde tinha sido acertada, alto demais, confiante demais.
A rodada de perguntas e respostas seguiu almoço adentro. Os dois conversavam sem parar, eu me mantinha calada. Pensativa. Girando o garfo no prato, vendo o tempo passar. Hora ou outra arriscava dar um sorriso quando me perguntavam algo ou quando faziam alguma brincadeira.
— Gosta de crianças? — vez de Nathan perguntar. E lá iam eles.
Sorri.
Nossa mesa era ao lado da janela. Num canto mais reservado do bistrô. Olhando para a calçada, observava uma menina loirinha, com um casaco quase do dobro do seu tamanho, saltitar risonha, gargalhando com as marcas que seus pés deixavam sobre a neve.
— Claro — Nina apressou-se em confirmar. — Sou a melhor quando se trata de mimar, os filhos dos outros principalmente. Kate que o diga, basta Natasha pedir algo que não penso duas vezes. Compro e faço a pequena bailarina feliz.
Prendi a respiração.
Não era para ele saber. Se Nathan soubesse, era fato que Dylan descobriria.
— Como assim? Kate tem uma filha? — foi baixo, mas não imperceptível.
— Tem sim, e é linda — ela confirmou.
Girei o corpo depressa.
Nina arregalou os olhos, cobriu a boca, e ficou vermelha assim que a encarei.
Merda.
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