Capítulo 8
Quando eu fui embora do orfanato, minhas tias de lá me disseram que eu seria muito amada pela minha nova família e que eu seria muito feliz também.
Escutar aquilo me animou bastante. Não que eu não gostasse das minhas tias de lá. Algumas até que eram legais, mas são muitas crianças chegando diariamente, as atenções precisam ser divididas. Eu gostaria de ter uma família, de ter pais que me amassem como filha. Meu coração de criança estava cheio de esperanças. Lembro que tentei conversar com meus novos pais a estrada inteira, no dia em que eles foram me buscar. O Teodoro sempre respondia animadamente as minhas perguntas, o sorriso sempre presente no rosto, já Regina revirava os olhos toda vez que eu abria a boca para dizer algo. Eu pensei imediatamente que aquele era apenas o jeito dela, não era nada relacionado a mim, porque, se ela quis me adotar, então ela me queria em sua casa, certo? Errado.
Como eu iria imaginar que os anos seguintes à minha adoção, seriam os mais complicados da minha vida? Eu nunca reclamei em dar conta da casa, ou servir Regina e as meninas. Saber que eu estava sendo útil, me confortava. O problema eram as palavras cruéis que Regina desferia a mim, toda vez que eu fazia algo que a desagradasse.
Eu queria que eles me amassem tanto quanto eu os amo. Como eu já disse, Teodoro é uma ótima pessoa, sempre me tratou bem, como se fosse um pai mesmo. Mas Regina e as meninas não, e isso sempre me angustiou bastante, porque eu as amava e, quando descobri que teria duas irmãs, meu coração se encheu de alegria.
Eu pensava que seríamos como eu era com as crianças do orfanato. Irmãs que brigam, se desentendem de vez em quando, mas se amam incondicionalmente e querem sempre brincar juntos e apoiam uns aos outros.
No fundo, acho que eu ainda tinha esperanças de que elas gostassem de mim, ao menos um pouquinho. Pelo menos eu me esforçava para que isso acontecesse.
Mas quando eu estava descendo as escadas, escutei uma conversa de Regina e Teodoro que me fez perder qualquer expectativa que eu pudesse criar.
“Eu disse para você não adotar essa menina", Regina bradava em toda altura. Eu nem sei se era para eu escutar aquilo, mas eu descia as escadas na hora em que os dois estavam discutindo, então foi um mero incidente.
Parei no mesmo instante. Aproveitei que nenhum dos dois tinha me visto e fiquei ali na escada, em completo silêncio. Eu sabia que escutar aquela conversa iria me machucar, mas a curiosidade e a vontade de saber o que eles iriam falar sobre mim, foi mais forte do que o desejo de proteger meus ouvidos dos ataques de Regina.
“Coloque a Elena fora das nossas divergências, Regina”, ele rebateu o que ela falava. Teodoro era bem mais contido e tentava falar em um tom baixo, mesmo assim eu consegui escutar o que ele dizia.
“Desde que ela entrou nessa casa, o nosso casamento desandou, Teodoro”, ela continuou, “nós nunca devíamos ter adotado aquela garota. Mas por algum motivo irrelevante, você ficou encantado por aquela pirralhinha remelenta.”
“Chega, Regina. Eu não admito que você fale assim da Elena”, Teodoro continuava me defendendo, mas eu não sei se ainda conseguia me alegrar com a sua atitude. Ele estava se desentendendo com a esposa e a culpa era minha. “Nós somos os únicos responsáveis pelo declínio do nosso casamento.”
A essa altura, os meus olhos já estavam cheios d'água e minhas mãos tampavam a minha boca para silenciar os soluços que, naquele momento, se intensificavam. Eu só queria entender o que eu fiz para essa mulher me odiar tanto, quando tudo que eu buscava era tentar agradá-la.
E não parou por aí. Ela continuou falando.
“Eu odeio essa garota”, a altura da sua voz havia diminuído, mas a raiva que ela sentia ao se referir a mim, continuava bem presente. Qualquer um que escutasse àquela conversa, perceberia o rancor em seu tom. “Por mim, ela nunca teria entrado nessa casa.”
Minhas pernas ficaram trêmulas e a vontade de chorar me consumia. Precisei prender o choro alto que estava entalado na minha garganta. Eu não aguentava mais ficar escutando aquelas coisas que Regina falava sobre mim. Não mais.
Sem que eles me vissem, eu saí pela porta dos fundos, evitando me esbarrar em qualquer pessoa daquela casa. Eu não queria que ninguém me visse chorando. Sei que as gêmeas não dariam a mínima para as minhas lágrimas, pois todas as vezes que me viram em um estado de fragilidade, elas sorriram, como se tripudiasse em cima da minha dor. Já Guilhermina, provavelmente, iria odiar Regina mais do que ela já odeia e, tudo o que eu queria era evitar que ela se indispusesse com a patroa.
Eu só precisava ficar longe daquela casa, onde, visivelmente, eu não era bem-vinda.
Sempre quis saber o real motivo por terem me deixado em um orfanato. Não cheguei a conhecer os meus pais biológicos, me informaram que eu cheguei lá quando tinha um ano, fui deixada na porta somente com a roupa do corpo, dentro de uma cadeirinha.
Não que eu guarde mágoa dos meus verdadeiros pais, mas eu queria tanto entender o porquê de eles terem me abandonado. Eu me sentia rejeitada e, quando finalmente encontrei um lar, a minha família adotiva também me rejeitava.
Eu não sei mais se eu conseguia viver sabendo daquela rejeição dupla. Tenho certeza que se o nosso coração fosse feito de vidro, eu conseguiria escutar os cacos caindo espalhados pelo chão.
Por ter saído mais cedo de casa, cheguei na escola bastante adiantada também. Aproveitei o silêncio para ficar sozinha no pátio, enquanto observava o fraco movimento de alunos chegando aos poucos.
Sentei no chão e recostei minha cabeça na parede, enquanto tentava buscar na memória algo que justifique esse rancor que Regina e as meninas sentem de mim. E se eu fiz algo errado, estou disposta a me redimir. Eu só queria viver em harmonia.
Aquela dor estava ficando cada dia mais insuportável. Acho que nem quando eu quebrei o braço, depois de cair da cadeira de balanço, eu senti tanta dor assim. Era uma dor angustiante, que machucava com bastante intensidade. Pior, não existia um remédio para curá-la, pelo menos, não que eu soubesse.
“Eu acho que internação não é uma boa opção.” Escutei a voz de uma pessoa falando, ele parecia falar ao telefone, já que não obtinha resposta. Só após pouco tempo, eu pude escutá-lo falando novamente. “Quando eu chegar em casa a gente conversa.”
Confirmei minhas suspeitas, ele falava ao telefone. Mas não dei muita atenção, até porque sei que assunto alheio não é da minha conta. Tudo o que eu queria fazer naquele momento era chorar em paz, sem que ninguém me visse naquele momento de fraqueza.
Vi quem era o dono daquela voz, após avistar Caio passando por perto de mim com o celular em mãos. O meu colega pareceu ter se assustado ao notar minha presença, mas se recompôs tão rapidamente, que se eu não tivesse tão atenta a cada movimento, eu jamais teria percebido o seu sobressalto.
Ele olhou para mim e sorriu fracamente, como se o seu dia também não tivesse começado da melhor maneira.
“Posso?”, perguntou, apontando para o lugar vazio ao meu lado.
Afirmei com a cabeça, dando espaço para que ele se juntasse a mim. Sim, eu gostaria de ficar sozinha naquele momento, mas eu não podia ser mal educada. Além disso, ele também parecia enfrentar um momento difícil. Quem sabe uma companhia seria o ideal para fazê-lo melhorar? Assim como eu, talvez precisasse de um ombro amigo também.
“Problemas?”, Caio perguntou, após se juntar a mim no chão do pátio da escola.
“Nada demais", menti. É claro que era algo demais, mas só para mim. Ele não iria dar importância nenhuma para os meus problemas pessoais e nem eu gostaria de alugar uma pessoa falando sobre a minha vida conturbada com a minha família adotiva.
Ele parecia perdido em seus próprios pensamentos, com o olhar fixo em alguma coisa ao longe. As vezes é bom saber que outras pessoas também tem problemas, isso evita que fiquemos presos em nosso mundo, achando que somos o centro do universo e ninguém mais sofre.
Não demorou muito para que ele despertasse de algum devaneio que estava tendo, voltando a olhar para mim. Seus olhos castanhos pareciam guardar uma imensa amargura, mas ele, visivelmente, se esforçava para esconder.
Por um instante, eu pude perceber que aquela imagem de garoto despreocupado com a vida, que sempre sorria das piadas infames de seus amigos, era apenas uma armadura para esconder alguma dor, ou até mesmo algum trauma vivido por ele.
“Qual é o seu problema comigo, hein?”, ele perguntou, me deixando confusa. Só depois eu me dei conta do que ele falava, e, oi? Qual é o meu problema? Não sou eu quem faço questão de ignorar sua presença, sempre que estamos no mesmo ambiente. As coisas mudaram bastante, nesses últimos dias, é claro, mas até pouco tempo, era ele quem não dirigia a palavra a mim.
“Eu não tenho problema nenhum com você”, respondi, com honestidade. Quando éramos mais novos, é bem verdade que eu não gostava muito dele, por achar que ele também não gostava de mim. Mas isso mudou, e eu estou descobrindo um outro lado seu, que até então, eu desconhecia. “Por que você pensa isso?”
Ele deu de ombros, seu olhar ainda voltado para mim. Mas não parecia mais chateado, nem nada do tipo, quando disse: “É que você não parece gostar muito quando estou por perto.”
Deve ser porque você sempre andou com os garotos mais detestáveis da nossa turma. Mas obviamente eu não iria responder aquilo, não queria fazê-lo se sentir mal, principalmente porque ele parecia não passar por um bom dia, assim como eu.
Na mesma hora em que eu pensava em uma resposta adequada para dar a ele, a professora Patricia, a de inglês que vive chegando atrasada, passou por nós, nos cumprimentando e demorando seu sorriso ainda mais, para mim. Até conferi o horário para saber se já não tinha passado da hora da aula, já que era uma novidade ela chegar cedo na escola, mas não, ainda não tinha começado as aulas. Eu fiquei a observando sumir pelo corredor da escola, indo em direção à sala dos professores. As vezes eu gostaria de entender o que minha professora tem. Ela parece sempre tão triste, apesar de sempre tratar todos os seus alunos igualmente bem, e ser considerada por quase todos da nossa turma, a melhor professora que temos, até mesmo seus sorrisos parecem forçados, quer dizer, não o que ela me lançou, naquela manhã. E, até eu não sabia explicar o tanto que gostava dela, e admirava, a mesma admiração que eu gostaria de sentir por Regina.
Pensei que, se Patrícia fosse mãe, ela seria bem diferente da minha mãe adotiva, tenho certeza, mas, não sei por qual razão, ela não tem filhos, e de acordo com alguns colegas, que sempre sabem sobre a vida de todo mundo, nem mesmo casada ela é, o que eu também acho estranho, já que ela é uma mulher muito bonita, tanto quanto Regina.
Mesmo sem perceber, me peguei sorrindo, imaginando que minha vida poderia ter sido muito melhor, caso eu tivesse sido adotada por duas pessoas que realmente queriam me adotar.
Antes que eu terminasse de pensar naquilo tudo, em como as coisas poderiam ter sido diferentes para mim, lembrei que eu não estava sozinha, sentada no corredor da escola. Virei o rosto para o lado, e percebi que Caio ainda estava lá, me observando atentamente.
“Você fica muito mais bonita quando sorri”, ele observou, e eu nem mesmo percebi que ainda sorria. Seu olhar era quase indecifrável, mas, por algum motivo, me deixava um pouco desconcertada. “Tristeza não combina com você.”
Meu coração pareceu dar alguns pulinhos, quando ele falou aquilo. Não sei bem o motivo, só podia ser a forma intensa como ele me observava, um jeito como nenhum outro garoto já me olhou, antes. Mas ele já não me encarava de volta, mesmo assim, eu pude perceber uma sombra que atravessava seu olhar. Apenas pigarreou, parecendo um pouco sem graça, antes de se despedir e levantar.
Observei meu colega se distanciando, sem nem mesmo olhar para trás, e quis entender suas reações quando estava ao meu lado. Antes, ele nem mesmo conversava comigo, e até me atrapalhava quando Edu trocava alguma palavra comigo, sempre iniciando um outro assunto com o amigo, como se quisesse afastar Edu de mim. E esse foi um dos motivos pelo qual pensei que Caio não ia muito com minha cara, e, por isso, não queria que Edu tivesse qualquer tipo de contato comigo.
Mas, agora penso que talvez eu o tenha julgado errado e ele não seja uma má pessoa. Quem sabe suas reações de antes eram só ciúmes de amigo, por não querer dividir a atenção de Edu comigo.
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