Capítulo 33 - Danilo
É hoje!
Depois de meses me preparando para esse momento, o dia finalmente chegou. Nem dormi direito, pulei da cama antes de Leila acordar, preparei meu discurso e ensaiei meus melhores sorrisos, porque é hoje que eu me torno presidente do Grupo Torres. Pedi a ela que torcesse por mim quando a deixei na garagem da E. M. mais cedo, pois se tudo der certo na reunião, finalmente poderemos colocar um fim no contrato e vou poder respirar aliviado de novo ao lado dela, sem ter que me controlar o tempo todo para não cometer um erro.
Fui um dos primeiros a chegar à sala de reuniões da sede da empresa, o que deixou muita gente surpresa, já que eu sempre aparecia por último e ainda cochilava durante as assembleias intermináveis. Contudo, ultimamente eu tenho sido muito pontual e diligente nesse tipo de situação e minha recém-descoberta responsabilidade com meus compromissos fez uma boa fama girar ao meu redor. Eu sou, além de competente, jovem e idealista, um homem muito responsável aos olhos das pessoas, exatamente as qualidades que eles esperam de um futuro presidente.
A ansiedade está exalando de cada um dos meus poros e preciso pedir para que aumentem o ar condicionado para que eu não derreta dentro do terno. Os acionistas e executivos do Grupo com quem tive a oportunidade de conversar estão apostando alto na minha indicação e me lançam olhares encorajadores, que eu retribuo na mesma medida. Conquistar a confiança deles é o mesmo que garantir que não haja mais nenhum candidato forte para o cargo, e eu fiz minha parte direitinho convencendo todo mundo das minhas qualidades.
Quando Tales acaba a última pauta antes de abrir a discussão da substituição de vovô, já passamos das 16h00. O almoço da empresa mal desceu pela minha garganta de tão nervoso que eu estava para que o processo de indicação começasse, então minha barriga está roncando sem parar agora e eu me recuso a tomar o café que passam servindo, porque vai me dar uma azia sem tamanho mais tarde.
Tales desliga o retroprojetor e oferece a palavra para meu avô, que se apoia na bengala para vencer os metros entre a mesa e o púlpito da sala. Inspiro profundamente para forçar meu coração a bater mais devagar, mas não adianta muito. Eu só quero ouvir vovô dizer meu nome, só quero ouvi-lo reconhecendo que sou o mais indicado para continuar o legado que ele começou e que seria passado para meu pai, se ele ainda estivesse vivo. Eu só quero provar para todo mundo o quão longe eu posso chegar.
— Boa tarde! — Meu avô cumprimenta, testando o volume microfone. — Bom, a reunião demorou mais do que prevíamos, por isso vou tentar ser breve quanto ao nosso último assunto.
Vovô corre os olhos pela sala, se demorando alguns segundos em Marcos antes de direcionar seu olhar para mim. Não faço ideia do que está se passando pela cabeça dele e essa perspectiva faz um calafrio percorrer minha espinha.
— Quando eu tive meu filho, eu não tinha um teto onde ele pudesse crescer saudável. — Ele começa, atingindo em mim um dos pontos que mais doem. — Eu construí essa empresa para que nenhum pai ou mãe de família tenha que criar seus filhos nas ruas, por isso eu insisto tanto nas construções a um preço justo. Claro que a Torres cresceu mais do que eu esperava e eu não consigo fazer por todas as pessoas que precisam o que eu tenho vontade, mas eu acredito fielmente que se cada pessoa fizer sua parte, um dia viveremos em um país muito melhor.
As palavras do meu avô arrancam uma primeira leva de salvas de palmas, que são silenciadas por ele, ao levantar uma das mãos indicando que ainda não acabou.
— Eu estou ficando velho, cada vez mais perto de Deus, espero. — Ele ri um pouco da própria piada. — Infelizmente, não tenho mais forças para cuidar de tudo no Grupo e não posso deixar que o trabalho que comecei se perca. É por isso que preciso de alguém que entenda do mercado e que leve a sério os valores da empresa, que não estão aqui só de enfeite. A família é importante, as pessoas são importantes e o bem estar social é importante. Aqui, sempre pensamos na coletividade e no ser humano, portanto quem quer que ocupe meu lugar no futuro, saiba que antes de fazer dinheiro, você precisa fazer o bem.
Vovô tira o microfone do púlpito e dá alguns passos pela sala, fazendo um suspense muito desnecessário quanto a sua indicação. Aperto minhas mãos debaixo da mesa para disfarçar meu nervosismo, mas sinto que as pessoas conseguem enxergar como estou me sentindo mesmo a metros de distância.
— Como sócio majoritário e fundador dessa empresa, sei qual o peso da minha indicação e eu gostaria realmente que fosse feita a minha vontade, pois conheço o Grupo como a palma da minha mão, assim como conheço a quem estou indicando. Sendo assim, sem mais enrolação, indico meu neto à presidência. — Vovô estende a mão para frente e meu coração para de bater por um instante.
Sigo a direção que ele aponta com os olhos, ardendo ao constatar o óbvio. Eu não sou o único neto dele nesta sala, muito menos o indicado. Quem meu avô quer que se sente na cadeira da presidência é Marcos, não eu. É Marcos quem ele escolheu para continuar o legado dele, não eu. Depois de tudo que eu fiz, ainda não é em mim que ele pensa quando olha para o futuro.
Uma mistura perigosa de ódio e frustração sobe pelo meu corpo e eu me sinto prestes a explodir nesta sala. É inacreditável que vovô tenha feito isso, mesmo eu tendo me provado tantas vezes diante dos olhos dele. Desta vez eu não fiz nada de errado, eu fui exatamente quem ele sempre quis que eu fosse, então por que ainda não foi o suficiente? Por que eu não sou o suficiente?
Marcos se levanta do seu lugar e vai até meu avô. Os dois trocam um abraço e sorriem um para o outro, como se meu irmão já estivesse plenamente empossado em seu novo cargo. Sinto uma mão pesada no meu ombro e nem preciso olhar para saber que é Tales, a única pessoa nesse inferno todo que me entende. Entretanto, eu não preciso de conforto, eu preciso da presidência. Não lutei tanto para fazer isso acontecer para entregar o cargo nas mãos de Marcos.
Fico de pé também, silenciando a sala pelo rompante com que minha cadeira é arrastada pelo piso.
— Me desculpe atrapalhar o momento de vocês dois, mas mesmo que o senhor seja um sócio majoritário, o cargo ainda não é de Marcos.
Meu avô me olha claramente descontente em ser contrariado. Não me importo, quero que ele também veja com clareza o quanto eu estou igualmente infeliz pelo que ele acabou de fazer comigo.
— Não me diga que você quer se candidatar ao cargo. — Meu avô arqueia as sobrancelhas grisalhas, esperando que eu me intimide.
Nem passa pela minha cabeça recuar, mas ainda assim o apoio que eu esperava que viesse dele acaba vindo de outro lugar.
— E por que Danilo não poderia concorrer ao cargo, Dr. Fausto? — Questiona Magno, um dos acionistas mais pé no saco da empresa. — Na verdade, vim até aqui hoje esperando que senhor o indicasse.
Alguns murmúrios de acionistas que também aguardavam minha indicação percorrem a sala. Sinto um fio de esperança crescer dentro de mim ao ver aquela movimentação, porque se vovô esperava que sua palavra fosse lei, ele se enganou, assim como se enganou achando que Marcos seria uma melhor escolha do que eu.
— O cargo está em aberto, se vocês acham que Danilo é melhor do que Marcos para ocupá-lo... — Vovô deixa as palavras suspensas no ar.
— Não se trata de ser melhor, Dr. Fausto, se trata de ser inteligente nesse momento de crise financeira do mercado. Danilo é mais jovem, estudou fora, conhece áreas do mercado que velhos como você e eu não sabemos. Ninguém está dizendo que Marcos não é competente, só que devemos estar abertos a outras opções.
Meu avô esboça um sorriso amargo, detestando cada segundo daquela conversa. Eu, por outro lado, me sinto revigorado. Vovô se preocupa com os valores da empresa, enquanto os sócios e acionistas se preocupam com o dinheiro que podem perder se Marcos tiver o mesmo estilo de administração antiquada do meu avô. Eu fiz uma das ramificações do Grupo sair do completo nada e se tornar uma referência no mercado em pouquíssimo tempo, já Marcos nunca fez nada além de seguir vovô como um cachorrinho. Agora, tudo isso está pesando na balança.
— Então teremos uma votação em breve, acredito. — Meu avô reflete, caminhando lentamente em minha direção. Ele para diante de mim, os olhos afiados me encarando, esperando que eu ceda e acabe com aquela discussão. — Me diz você, Danilo. Me diz se você quer ser presidente. Acha mesmo que tem o que precisa para assumir o meu lugar?
Endireito os ombros, ficando mais alto que meu avô e o olhando de cima, sem oscilar.
— Eu não só tenho o que é preciso, como eu devia ter sido a sua indicação desde o início.
Aquilo o deixa furioso e eu gosto muito disso.
❤
Após o término tenso da assembleia com a minha candidatura e a de Marcos definidas na corrida pela presidência do Grupo, sou convocado à sala do meu avô para uma conversa, que sei que não será agradável. No caminho, recebo uma mensagem de Leila dizendo que já foi para casa, o que é ótimo, porque não sei como serão as coisas assim que eu atravessar a porta daquela sala.
Tomo meu último fôlego antes de dar duas batidas na porta e entrar. Meu avô está sentado de costas para a entrada, com os olhos fixos em uma grande fotografia da primeira obra que ele concluiu quando a empresa ainda era uma pequena empreiteira. Marcos está de pé em um dos cantos da sala e sequer ergue a cabeça quando entro. Nem perco meu tempo olhando para ele, até porque depois de hoje seria bom se eu não ouvisse a voz do meu irmão pelo resto da minha vida.
— O senhor me chamou, vô. — Digo para o caso do velho não ter notado minha presença.
Vovô gira a cadeira para se virar para mim. Me surpreendo ao perceber que ele está bem mais calmo agora, diferente de mais cedo na assembleia, quando eu achei que ele me acertaria com a bengala.
— Desista da candidatura.
Pisco algumas vezes, atônito. Imaginei que ele me pediria para desistir, mas que tentaria pelo menos me persuadir primeiro ao invés de simplesmente me mandar fazer aquilo. Seja como for, vovô e Marcos sabem muito bem que eu não vou desistir porcaria nenhuma.
— Estou falando sério, Danilo. — Meu avô insiste diante do meu silêncio. — O que você está fazendo é um absurdo.
— Se é um absurdo, por que tem tanta gente me apoiando? — Ouso respondê-lo.
— Os acionistas só querem saber de lucro e você não... — Meu avô hesita.
— E eu não sou homem suficiente para liderar uma empresa e fazê-la lucrar? — Completo a frase que ele deixa por terminar. — Marcos não entende nada das tendências do mercado, não teve competência para fazer metade do que eu já fiz pela empresa em apenas cinco anos e ainda assim eu não sou bom o bastante?
— Danilo... — Meu irmão rosna, sendo silenciado apenas pelo olhar atravessado de vovô.
— Marcos foi treinado por mim a vida inteira para assumir meu lugar. O que você chama de incompetência, moleque, eu chamo de preparação. Marcos tem tudo que eu preciso para o Grupo no momento e você está atrapalhando as coisas.
— Atrapalhando as coisas... — Repito as palavras do meu avô com cuidado. — Estou mesmo acostumado a ser uma pedra no sapato de todos vocês.
— Nem comece com essa sua chantagenzinha emocional, Danilo. — Marcos dispara, se movendo do canto da sala até a mesa de vovô. — Você é um moleque irresponsável e mimado, que não faz ideia do peso e da responsabilidade que é assumir um cargo como esse e está fazendo toda essa confusão por pura birra!
— Até porque só você pode querer as coisas, não é mesmo? Eu também tenho direito a ter minhas próprias ambições!
Meu avô bate com a bengala no chão, fazendo Marcos e eu calarmos a boca.
— Então você deveria entender que não está pronto para ter uma ambição desse tamanho, Danilo. — Vovô critica, a voz ficando levemente alterada de novo.
O melhor é ignorar aquilo tudo, dar as costas e ir embora, mas não quero e não vou sair daqui antes de dizer aos dois tudo que venho guardando dentro de mim por anos.
— Como não tenho o que é necessário, vô? Eu fiz tudo o que o senhor queria, eu fiz a Eco Habitação dar lucro, eu fiz meu nome entre os acionistas e sócios, eu até me casei para passar uma impressão mais séria e ainda assim eu não sou bom o bastante para ocupar o seu lugar?
— Está ouvindo, vô? — Marcos aponta um dedo acusador para mim. — Danilo acabou de admitir que aquele casamento é uma mentira!
Engulo em seco ao perceber que minha raiva deu brecha para que Marcos tivesse aquela interpretação das minhas palavras.
— Eu não disse nada disso, pare de distorcer as coisas! — Rebato meu irmão o mais firme que consigo.
— Bem que mamãe e eu desconfiamos desse seu casamento repentino com aquela menina saída do nada. E olha que eu até achei que você gostava dela, Danilo, mas Leila é só um joguinho para você, né? Ou ela é tão mau caráter como você e sabe muito bem o que você está fazendo para conseguir o cargo de presidente da empresa?
— Eu já disse para você parar de distorcer as coisas, Marcos! — Grito a plenos pulmões, possesso ao ouvi-lo se referir à Leila daquele jeito.
— Eu devia ter te dado uns bons tapas quando você era criança, sabia? Quem sabe assim você teria crescido como um homem de verdade e não esse moleque dissimulado que faz tudo por atenção!
Meu avô bate a bengala no chão com força, mas nem mesmo isso consegue me impedir de avançar contra meu irmão, empurrando-o contra a mesa.
— Eu estou bem aqui na sua frente, por que não começa cumprindo suas promessas?
Nem sequer tenho a chance de desviar do soco que Marcos me acerta no rosto assim que acabo de falar. Dou alguns passos para trás, segurando meu maxilar, que já lateja sem parar. Sinto o gosto metálico de sangue na boca e minha visão fica turva por alguns segundos pela dor que irradia por toda a minha cabeça.
Toda a raiva que estou sentindo desde a reunião parece dobrar de tamanho e eu fico cego, incapaz de controlar qualquer atitude minha. Meu punho cruza a distância entre nós, e eu acerto Marcos em cheio no alto da bochecha, sob os berros desesperados do meu avô, que grita por ajuda. Os nós da minha mão direita ardem e Marcos está meio tonto, tão furioso quanto eu estou, segurando o próprio rosto machucado.
— Nosso pai teria vergonha de você! — Meu irmão cospe aquelas palavras, conseguindo o impossível, que é me deixar ainda mais enfurecido.
Ergo a mão para socá-lo mais uma vez, sem intenção alguma de parar, mas sou impedido por braços que me jogam para longe de Marcos. Os seguranças da empresa se colocam entre meu irmão e eu, impedindo até mesmo que eu o veja. Há alguns funcionários horrorizados se acumulando do lado de fora da sala do meu avô e o único pensamento que me ocorre é que a fofoca que eles farão sobre esse incidente vai me prejudicar muito na corrida pela presidência do Grupo.
— Marcos! — Meu avô olha de forma severa para o meu irmão, que apenas balança a cabeça e sai da sala sem responder nada.
Marcos sempre foi o tipo de pessoa que guarda rancor sozinho e que evita conversas em família para resolver os problemas. Depois de hoje, tenho certeza que ele vai ignorar meu avô por algum tempo até ter superado nossa briga. Já comigo, posso apostar meu carro que nunca mais vamos olhar na cara um do outro depois de hoje se depender dele, e eu, sinceramente, não estou preocupado com isso. Nunca fomos próximos, não é como se isso fosse mudar muita coisa.
Meu avô pede para que as pessoas se dispersem e que os seguranças saiam da sala. Depois que todos saem, ficamos os dois em silêncio, sozinhos. Queria ter ido embora daqui como Marcos fez, porque aguentar o sermão que meu avô vai me dar quando resolver falar comigo de novo vai doer mais do que ter levado um soco na boca.
Solto o ar dos pulmões devagar e umedeço meus lábios, preparando minhas desculpas esfarrapadas, no entanto vovô é mais rápido ao falar:
— Se você tivesse que escolher entre salvar seu casamento com Leila e a empresa, o que você escolheria?
Não entendo o teor da pergunta. Sei que pode haver um duplo sentido nisso, algum teste de caráter ou coisa parecida, mas em todo caso não faço ideia do que meu avô quer ouvir. A empresa é importante para mim, é o que eu quero, pois é o legado da minha família e do meu avô. Leila é alguém que tenho aprendido a gostar e ela é importante para mim, mas não somos casados de verdade, não há o que salvar entre nós dois.
— Eu salvaria a empresa. — Respondo, por fim.
Meu avô ergue os olhos lentamente para mim e há tanta decepção neles, que eu me vejo sem saber como reagir. Ele não esperava pela resposta que eu dei, mesmo que eu tenha sido sincero.
— Consegue ver, Danilo? É justamente por isso que você não serve para se sentar no meu lugar. — Vovô dá as costas para mim, apoiando-se na mesa da sala. — Vá embora. — Ele praticamente implora ao dizer aquilo, e nem se eu tivesse mais alguma coisa para dizer, eu teria coragem de continuar aqui.
❤
Não consigo definir em palavras como eu estou me sentindo péssimo. Minha cabeça está doendo tanto, que eu queria ter a oportunidade de apenas fechar meus olhos e dormir profundamente num sono sem sonhos por duas noites seguidas, mas eu sei que vai ser difícil pregar os olhos hoje.
Deixo os sapatos ao lado da porta e arrasto os pés pela casa em direção a sala, pois ouvi o som da televisão ligada e Leila pode ter caído no sono de novo enquanto me esperava chegar. As luzes estão todas apagadas, por isso acabo me embaraçando em Sansão pelo caminho. Ele choraminga para que eu o pegue no colo, lambendo meu rosto quando o ergo do chão.
Diferente do que eu esperava, Leila está bastante desperta, sentada no chão com uma taça de vinho nas mãos. Não me lembro de ter vinho em casa, mas isso não importa muito, já que consigo notar mesmo no escuro que ela não parece bem. Entre um comercial e outro da televisão, vejo seus olhos brilhando demais, como se ela tivesse chorado há pouco tempo.
— Você está bem?
— Eu tenho a impressão de que eu deveria te fazer a mesma pergunta. — Ela sorri sem ânimo e vira um gole de vinho na boca.
Me sento ao lado dela no chão, colocando Sansão entre nós dois, por segurança. Noto que além da garrafa de vinho pela metade, há uma caixa escura retangular sobre a mesinha de centro.
— São as fotos do casamento. Eles mandaram esse vinho ruim como brinde. — Leila explica, me oferecendo a taça quase vazia.
Encho a taça e bebo um gole. Ela tem razão, o vinho é horrível e para piorar ainda está meio quente. Contudo, não estou em posição de reclamar e muito menos de recusar bebida. Álcool ajuda dormir e eu quero cair no sono o quanto antes.
— Quer me contar como foi seu dia? — Pergunto, já podendo imaginar que ela não vai me dizer nada e ainda vai pedir para eu não me preocupar.
— Meu dia... — Leila inclina a cabeça para trás, apoiando-a no sofá. — Acho que hoje foi meu último dia bom.
— Como assim?
— Madu e Jonas descobriram sobre o contrato.
Coloco a taça na mesa com mais força do que o necessário, assustando até mesmo Sansão, que estava para cochilar a qualquer momento espalhado no pequeno espaço entre Leila e eu. Ele se sacode um pouco e sai andando depressa para longe de nós dois. Coitadinho, deve ter sentido o clima ruim no ar.
— Não se preocupe, não falei nada sobre seu avô e eles também não dirão nada para ninguém sobre o que fizemos. — Leila se apressa em me garantir, mas a verdade é que aquilo sequer passou pela minha cabeça, porque no momento ela é a minha preocupação.
— Eu sei que eles não farão isso. Eu quero saber como você está com toda essa situação.
Leila inclina um pouco a cabeça de lado para me ver melhor. Espero que ela diga alguma coisa, mas o álcool já deve tê-la afetado ao ponto de deixar seu raciocínio mais lento. Me lembro bem de como ela costuma ficar pensativa quando bebe, levando mais tempo que o necessário para responder coisas que façam sentido.
— Acho que eu perdi minha empresa e meus amigos. — Leila diz depois de alguns segundos me encarando. — Eles também odeiam você agora, sabia? Acham que você me comprou.
— Que merda! — Exalo, voltando a encher a taça com vinho. — Esse dia só piora.
— Vou dar um tempo, esperar Madu e Jonas se acalmarem, esperar que eu mesma me acalme. Eu fiquei... — Ela faz uma pausa, pensando. — Eu fiquei meio perturbada com tudo que ouvi deles.
— Imagino. — Levo a taça à boca, sorvendo todo o líquido de uma vez. — Mas vocês vão precisar conversar, Leila, conversar bastante. Posso ir falar com eles, se você quiser. Podemos tentar fazê-los entender.
Ela ri, se sentando melhor com as costas apoiadas no sofá. Leila pega a garrafa da mesa e a entorna na boca, pouco se importando com a taça que estávamos compartilhando. Faço o mesmo, pegando a garrafa dela e bebendo direto do gargalo.
— Isso está mais para vodka barata do que vinho! — Comento ao sentir o canto da minha boca arder pelo álcool.
— Foi de graça, então não podemos reclamar. — Ela se move em minha direção para pegar a garrafa, mas para com a mão estendida ao perceber o roxo se formando no meu rosto. — Danilo...
— Não foi nada. — Digo rapidamente, virando o rosto para deixar meu machucado longe dos olhos dela.
— Como não foi nada? O que houve com você? — Leila franze a testa, perscrutando cada centímetro do meu machucado. Ela leva a mão a uma mancha pequena de sangue na minha camisa, deixando escapar um suspiro assustado.
— Não foi nada... — Tento deixar mais claro, mas acabo me lembrando da briga com Marcos e do olhar do meu avô, e minha convicção perde força.
Seguro a mão de Leila que ainda está sobre minha camisa e a aperto de leve entre meus dedos, em uma busca quase inconsciente por algum conforto. Eu estou destruído depois de tudo que aconteceu e sem nenhuma força para fingir que não há um turbilhão de sentimentos péssimos revirando minha cabeça. Quando penso em tudo que fiz, em tudo que eu disse e ouvi, eu só tenho vontade de voltar para aquela sala mais cedo e ter saído pela porta antes que o pior acontecesse.
— Não sei bem o que seus amigos disseram, mas eles têm toda razão sobre mim, Leila. Eu sou um babaca que acabou te envolvendo nos meus problemas. — Minha voz soa baixa e fraca demais, e ainda assim é o máximo que consigo no momento.
Leila se move para mais perto de mim, apertando minha mão de volta.
— Eu concordei com cada um dos seus termos, eles não têm direito de dizer nada sobre você, principalmente sem saber dos seus motivos.
Aquilo me machuca ainda mais. A mentira que contei sobre meu avô, a única coisa que a convenceu a aceitar cada um dos meus termos sem questionar. Marcos tem razão, eu sou um mau caráter!
— Leila, eu gosto tanto de você, do que você se tornou para mim. Eu não queria magoar você como eu magoo todo mundo ao meu redor, mas mais cedo ou mais tarde isso vai acontecer.
Queria conseguir reunir forças para acabar com a mentira que contei e deixá-la livre para pensar o que quiser de mim, assim como os amigos dela também devem estar pensando. Entretanto, perco toda a coragem quando arrisco erguer meu rosto para encará-la.
— Você não vai me decepcionar, porque eu conheço você agora. — Ela toca delicadamente o hematoma no meu rosto com os dedos. — Eu confio em você.
É uma fração de segundos em que meu coração acelera tanto ao ponto de eu sequer conseguir ouvir direito meus pensamentos, que estão gritando sobre o quão errado é o que estou prestes a fazer. Ignoro cada um daqueles alertas, não me permito ouvir nada que não sejam meus sentidos indo de encontro à Leila.
Me inclino na direção dela, selando os centímetros que ainda estavam entre nós ao beijá-la. O gosto de vinho, o cheiro do meu shampoo em seu cabelo, o contato das nossas mãos ainda entrelaçadas... Tudo aquilo me atinge de uma maneira tão intensa que sinto minha cabeça girar.
Por um instante, apenas ficamos daquele jeito, os lábios colados, sem fazer nenhum movimento. Então, o desejo que venho suprimindo há meses fala mais alto e meu corpo busca por Leila quase desesperadamente. Enrosco minha mão em seu cabelo macio, guiando lentamente o beijo, deslizando meus lábios sobre os dela e me permitindo experimentar todas as sensações de poder beijá-la de verdade. Sinto as mãos tímidas dela apertarem o tecido da minha camisa, o corpo se aproximando mais do meu e fazendo minha pele arrepiar.
Eu a quero, meu Deus como eu a quero! Não faço ideia de como consegui me esquivar desse sentimento por tanto tempo. Me inclino mais sobre ela, intensificando um pouco mais nosso beijo, incapaz de refrear minhas mãos e os meus instintos.
Entretanto, ao contrário do que espero, Leila se retrai um pouco e me afasta. Pisco algumas vezes sem entender muito bem o que aquilo quer dizer, encontrando no rosto dela apenas uma expressão confusa. Penso em perguntar se eu fiz algo de errado, mas assim que a pergunta cruza minha cabeça, eu entendo perfeitamente aonde foi que eu errei.
— Leila... Leila, por favor... — Eu começo a dizer, não sabendo ao certo como me desculpar. — Eu sinto muito. Eu...
— Você sente muito? — Ela pergunta baixinho, quase em um sussurro.
— Sim... Eu...
Ela desvencilha de mim e fica de pé, se segurando no sofá por causa do álcool. Eu achei, por um instante, que ela estava tão envolvida quanto eu, mas eu devo ter mesmo me enganado e estragado absolutamente tudo.
— É melhor eu ir para o meu quarto. — Leila diz, ofegante, se afastando de mim cada vez mais.
Um calafrio percorre minha espinha ao entender de vez o que aquilo significa. Eu fui muito estúpido, muito estúpido! Havia uma cláusula, uma linha invisível que nenhum de nós poderia jamais ultrapassar e eu mandei tudo pelos ares quando resolvi ignorar minha razão. O que eu esperava fazendo isso, que ela viesse dormir comigo e nós nos tornássemos um casal de verdade? Onde diabos eu enfiei minha cabeça?
Fico de pé, tomando cuidado para não me aproximar demais e não piorar o que já está ruim.
— Leila, me desculpe. De verdade, me desculpe! Eu prometo que isso nunca mais vai acontecer, foi só um acidente...
— Tudo bem. — Ela me corta, parecendo estranhamente chateada. — Vou dormir, vá você também fazer o mesmo.
Leila se vira e anda depressa até o quarto, trancando a porta. Nunca a vi trancando a porta antes, nunca a vi tremer tanto antes perto de mim, assim como eu nunca tinha a beijado de verdade antes.
Desabo no sofá, completamente desnorteado com o que acabou de acontecer. Não tenho ideia de como vou conseguir olhar nos olhos dela amanhã, mas tenho certeza de que nada entre nós dois será como antes.
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