Capítulo 25 - Danilo
Aposto que Sansão está dormindo debaixo das minhas cobertas, só isso o impediria de ter corrido imediatamente para mim assim que abri a porta. Afrouxo a gravata e tiro o blazer, dobrando as mangas da camisa até os cotovelos e respirando um pouco no escuro antes de entrar direito em casa. Que dia maldito! Reuniões, gente chata, um contrato caríssimo sendo cancelado, a conversa de dissolução e incorporação da Eco Habitação e por aí vai. Parece que paz é uma coisa que simplesmente não existe no meu vocabulário.
Arrasto os pés pelo piso em direção a sala. A televisão está ligada em um programa qualquer, mas Leila e Sansão estão dormindo pesado no sofá, alheios ao que parece ser um documentário sobre macacos. Acho que perdi meu cachorro de vez para essa mulher, porque ele nem mesmo se move ao notar minha presença. Não tenho nem direito de ficar enciumado, pois ao menos com Leila sempre em casa agora eu não preciso me preocupar em chegar tarde como hoje.
Meu relógio marca 01h52min, mas a verdade é que mal vi o tempo passar depois que saí do trabalho. Alguns amigos queriam me ver para saber sobre os boatos de que eu havia me casado e eu nem cogitei dispensar o convite para encontrá-los. Depois de um dia de cão como hoje eu merecia rir um pouco na companhia de amigos que não via há algum tempo e me distrair ao máximo para não remoer o que vovô vai fazer daqui há mais ou menos um mês na assembleia de acionistas.
Fico parado por alguns instantes apenas observando minha "esposa" e meu cachorro espalhados no sofá. Noto que Leila ainda está usando o anel de noivado junto com a aliança de casamento, mesmo depois de eu ter dito que ela poderia vendê-lo se quisesse. Confesso que quando vi que ela ainda usava aquele anel de manhã, fiquei me controlando para não falar sobre o assunto, mas achei que a deixaria desconfortável se eu me oferecesse para tentar conseguir um bom dinheiro pela jóia por ela. De qualquer forma, o anel é dela agora, prefiro esperar para saber que fim ela irá dar nele, mas se eu pudesse decidir, adoraria que Leila continuasse com ele.
Ela está tão tranquila de olhos fechados, que não quero estragar seu sono, já que provavelmente ela devia estar bastante cansada para ter adormecido aqui mesmo. Vê-la assim me faz lembrar das palavras de Seu Maciel sobre a filha não descansar nunca e sempre estar pensando em alguma coisa em sua cabeça complicada de engenheira. Contudo, se eu a deixar passar a noite aqui, amanhã ela acordará com uma dor nas costas terrível e vai ser bem pior.
— Leila... — Eu a chamo, sacudindo-a de leve para despertá-la.
Sansão se mexe primeiro, claro, ficando rapidamente de pé sobre o sofá e sacudindo o rabo quase no rosto de Leila. Ela abre os olhos devagar, passando-os por mim sem parecer assimilar minha presença muito bem.
— Danilo? — Leila pergunta, sonolenta, como se ainda estivesse sonhando.
— Melhor você ir para cama, já está bem tarde.
Ela fica subitamente alerta ao ouvir minha voz, se sentando no sofá tão depressa que chega a derrubar o celular que segurava em uma das mãos.
— Que horas são? Está tudo bem com você?
— São quase duas da manhã, e eu estou bem, sim. Por que?
— Porque você sumiu depois que respondi que estava vindo para cá.
— Ah! — Exclamo, me lembrando que deixei o celular no carro justamente para ninguém me atrapalhar durante minhas escassas horas de descanso. — Eu saí com alguns amigos depois do trabalho, já que você estaria aqui para ficar com Sansão.
— Você está me dizendo que queria saber se eu estava vindo para casa só para que eu ficasse com o Sansão?
— É isso, sim.
— E você não tem mais nada pra me dizer? Eu achei que você quisesse me falar algo de manhã quando saí para trabalhar.
Um estalo me ocorre. Será que ela percebeu que eu queria perguntar sobre o anel mais cedo? Não é possível que eu tenha deixado tão óbvio assim que gostei de ainda vê-la usando a joia. Por via das dúvidas, invento a primeira desculpa que me vem à mente para me desviar do assunto.
— Tenho sim, claro! Muito obrigado por ter feito companhia ao Sansão e não ter deixado ele comer nenhum móvel. Eu ia mesmo te pedir para cuidar dele quando eu não estivesse em casa, só fiquei sem jeito de você me achar um folgado.
Leila abre a boca para dizer mais alguma coisa, mas desiste antes de emitir qualquer som. Ela pega o celular de cima do sofá, conferindo alguma coisa nele para em seguida ficar de pé e olhar para qualquer canto que não para mim. Agora tenho certeza que ela está totalmente desperta e tenho a impressão de que está irritada também, apesar de eu não fazer ideia do motivo.
— Vou para o quarto, então. Boa noite! — Diz ela com a voz soando levemente trêmula.
Leila dá dois passos em minha direção para sair da sala, mas eu a detenho, me colocando em seu caminho.
— E você, está tudo bem?
— Por que eu não estaria? — Leila sorri de lábios cerrados para mim e consigo sentir uma acidez em suas palavras que me deixa ainda mais certo de que ela está bem irritada.
— Você está meio estranha.
— É impressão sua, não se preocupe comigo. — Leila desvia de mim, quase caindo sentada no sofá. Faço menção de ajudá-la a se equilibrar, mas ela dispensa minha ajuda. — Não se preocupe comigo. — Ela repete, caminhando até o próprio quarto e fechando a porta atrás de si.
O assunto foi encerrado ali sem que eu nem tivesse a chance de insistir nele. Fico algum tempo de pé na sala apenas com a luz da televisão me iluminando e sem entender absolutamente nada do que acabou de acontecer. Repasso mentalmente toda a conversa, ficando ainda mais confuso com toda essa situação. Será que eu cometi algum erro? E se meu erro não aconteceu agora, mas, sim, pela manhã? É possível, porque Leila saiu de casa praticamente fugindo de mim.
Minha cabeça lateja só de ficar remoendo isso e eu decido deixar para me preocupar amanhã. Agora, tudo que preciso é de um bom banho e minha cama.
❤
Vejo Leila subindo num ônibus lotado quando estou voltando da academia pela manhã. Ainda é muito cedo, tão cedo que achei que ela ainda estivesse dormindo, eu mesmo estaria dormindo, caso tivesse conseguido pregar os olhos à noite por causa dos problemas no trabalho. No entanto, Leila está neste exato momento desaparecendo em um ônibus e com uma bolsa nas mãos, que pela minha experiência carregando as malas dela por aí, só pode conter alguns pares de roupas dentro.
Infelizmente, deixei o celular em casa sob a mesma política de ontem de não querer ser perturbado e isso me faz perder um tempo precioso sem saber onde diabos Leila pensa que está indo com mala e tudo daquele jeito. Assim que chego, minha primeira reação é abrir a porta do quarto dela para conferir se mais alguma coisa sumiu, mas está tudo no lugar e incrivelmente bagunçado, diga-se de passagem.
A cama é a única coisa relativamente arrumada por aqui, forrada e bem esticada. Sobre a mesa, que coloquei no quarto para que Leila pudesse fazer as coisas dela do trabalho ou estudos, há uma papelada infinita toda espalhada, alguns livros abertos e bolinhas de papel emboladas pelos cantos, vez que o cesto de lixo já não cabe mais nada. O guarda-roupa está com uma porta aberta e a toalha de banho verde está pendurada nela, ainda secando. Há roupas no chão também, amassadas e do avesso, que não sei dizer se estão limpas ou sujas, ou apenas Leila decidiu que não iria usá-las hoje e as largou ali mesmo. Não faço ideia de como, mas ela revirou tudo aqui e não tem nem 48 horas que está morando nesse quarto. Agradeço a Deus por não sermos mesmo um casal, porque certamente teríamos problemas com isso.
Deixo a bagunça dela como está e vou até meu quarto em busca do meu celular. Procuro o número de Leila na lista de contatos e coloco para chamar. Três, quatro, cinco toques e cai no correio de voz. Repito a ligação de novo e de novo, sem sucesso. Resolvo enviar uma mensagem, me surpreendendo ao ver que havia duas mensagens dela de ontem à noite, ambas ainda não lidas. Na primeira, Leila pergunta a que horas eu chegaria, já na segunda ela diz que cozinhou algo para o jantar e que iria comer sozinha se eu não me apressasse.
Algo passa pela minha cabeça e eu custo a acreditar que possa ser verdade. Largo meu celular sobre a cama e corro para a cozinha, abrindo a geladeira e me deparando com mais do que água dentro dela. Não acredito que Leila fez compras e ainda cozinhou ontem, e eu nem mesmo li as mensagens que ela havia me enviado. E ela estava dormindo na sala quando cheguei, me esperando!
É claro que ela ficou brava, é claro que ela está me odiando agora, é claro que...
Paro por um instante, analisando melhor a coisa toda. Não é para tanto, ou é? Não somos casados de verdade para que ela fique me esperando até altas horas da madrugada no sofá da sala, fazer essas coisas nem faz o tipo dela. Leila cozinhou ontem e comeu tudo sozinha, cuidou do meu cachorro, que agora gosta mais dela do que de mim, e cochilou na sala porque estava cansada. É isso, óbvio que foi isso que aconteceu. E quanto a estar irritada, qualquer pessoa fica irritada quando é acordada de um sono bom e precisa ir para a cama. Nada disso tem a ver comigo.
Porém, e se tiver mesmo algo a ver comigo? E se eu fui um belo de um babaca ontem, ainda que sem querer?
Não, não quero nem mais pensar a respeito! Tenho problemas demais na empresa para ficar tentando adivinhar o que se passa pela cabeça de Leila. Ela sabe muito bem que se há algo errado, pode falar comigo para tentarmos resolver tudo, se não disse nada é porque não há nada para ser dito. E ainda que haja algo que tenha a incomodado, mais tarde ambos estaremos em casa e poderemos sentar e conversar como dois adultos.
❤
Leila não volta para casa há quatro malditos dias.
No primeiro dia, ela ainda me disse por mensagem que ficaria na E. M., após ter visto minhas cinco ligações na manhã em que eu a vi subindo no ônibus. Não havia uma explicação na mensagem para aquela atitude, ela apenas perguntou o que eu queria para ter ligado tão cedo e quando eu disse que a tinha visto sair com uma bolsa nas mãos, a resposta que recebi foi que ela não voltaria para casa à noite e que se eu precisasse de algo poderia ligar mais tarde.
Depois disso eu escrevi e apaguei uma pergunta várias vezes na caixa de texto, sem conseguir me decidir sobre o que fazer. Respostas curtas são sempre o padrão dela, não há nada de estranho nisso e, no mais, Leila vivia dormindo na E. M. antes do casamento, então pareceria estranho se eu perguntasse o porquê dela não voltar para casa justo aquele dia. Até onde sei, Leila e os amigos estão montando o escritório, deve haver muito trabalho a ser feito e ela provavelmente achou melhor dormir por lá. Acredito que tenha sido bom, porque é perigoso ficar para cima e para baixo de ônibus. Ao menos eu quis me convencer disso no começo.
Tentei focar no trabalho ao máximo naquele primeiro dia e fazer isso me manteve distraído por um tempo. Entretanto, as horas passaram depressa demais e quando dei por mim eu já estava de novo em casa. Aproveitei o silêncio da casa vazia para continuar trabalhando até o sono chegar, mas Sansão tinha outros planos para nossa noite.
Meu cachorro ficou o tempo inteiro entrando e saindo do quarto de Leila, fingindo não escutar quando eu dizia para não fazer aquilo. Precisei fechar a porta e brigar com ele para deixar as coisas de Leila onde estavam, mas Sansão só parou de choramingar e arranhar a porta depois de arrastar para fora uma das blusas dela que estavam jogadas no chão do quarto. Quando eu vi aquilo, só consegui torcer para que aquela blusa não tivesse nenhum valor sentimental, porque se depender de Sansão, Leila nunca mais vai poder vestir aquilo de novo.
Quando cheguei em casa no dia seguinte, Leila novamente não estava e isso se repetiu pelos próximos dias sem que eu recebesse mais nenhuma mensagem dela avisando quanto tempo pretendia ficar fora. Sei que eu não deveria me incomodar tanto, moro sozinho há anos e estou habituado a isso, mas me vi incomodado, incomodado pra caramba.
Achei que com o passar do tempo a sensação de que algo está errado iria diminuir até desaparecer, contudo os dias seguiram uma marcha insuportável e meu humor vem piorando a cada segundo que eu perco olhando para o meu celular sem receber qualquer notícia de Leila. Decidi em algum momento que a culpa é de Sansão por continuar arrastando a blusa laranja dela pelos cantos, das frutas apodrecendo na geladeira e do meu frasco de shampoo quase acabando no banheiro comum também, mas no fundo eu estou bem ciente de que a culpa é minha por não saber lidar com Leila e ficar pensando demais em coisas que estão além do meu controle.
No quarto dia, em plena sexta-feira, percebi que descontar o estresse no trabalho não estava mais dando certo. Para piorar, ainda peguei Alexandra comentando com Marcinha que o casamento não me fez nada bem e que eu estava muito mais chato do que o de costume depois que enfiaram uma aliança no meu dedo. Elas calaram a boca assim que me aproximei, embora o trecho que ouvi tenha sido suficiente para acabar com o pouco de bom humor que me restava.
Como se não fosse o bastante, tive que vir à sede do Grupo Torres resolver alguns assuntos que não poderiam esperar que minha vida de recém-casado se acalmasse um pouco. Quase não consegui disfarçar o quanto estou a um passo de ter uma síncope nervosa na frente do meu avô e ele até que tinha boas notícias para mim hoje.
Na saída ainda tive o azar de pegar a merda do mesmo elevador que meu irmão. Bem que tentei fechar a porta antes dele entrar, mas não deu muito certo. Agora eu estou torcendo internamente para que Marcos não fale comigo, nem sequer olhe para mim, no entanto ele está disposto a conversar hoje. Maravilha!
— Ouvi dizer que vovô conversou com você sobre a possibilidade de testar uma linha de materiais de construção sustentável na fábrica.
— Estou vindo dessa conversa que você ouviu.
— Imaginei que você fosse ficar mais feliz. — Marcos enruga a testa, surpreso com a aspereza do meu tom de voz. — Está tudo bem com você?
Está tudo bem com você? Está tudo bem com você? Por que infernos todo mundo está me perguntando isso? Me olho rapidamente nas portas espelhadas do elevador para ter certeza de que ainda sou o mesmo Danilo de sempre, não conseguindo enxergar nada de errado comigo para justificar a quantidade de olhares estranhos que venho recebendo a semana toda. Eu sempre me irrito com o trabalho, principalmente quando as coisas não correm bem, e nem por isso cochicham sobre mim pelos cantos, como minhas funcionárias estavam fazendo mais cedo, ou Marcos fazia essa careta de preocupado.
Forço minha voz a soar o mais suave possível, considerando que nunca consigo conversar direito com meu irmão e que não quero começar a fazer isso agora, ao responder:
— Estou ótimo, Marcos. Muito ocupado, mas ótimo.
— E Leila, como está?
Como vou saber se faz quatro dias que não a vejo?
— Está bem. Trabalhando demais também. — Forço um sorriso, ciente de que não estou mentindo. Leila deve estar ocupadíssima mesmo, ocupada até o último fio de cabelo para sumir por quatro dias sem aparecer nem para saber se continuo vivo.
— Vocês estão se adaptando bem à vida de casados?
— Como assim?
— Faz quase uma semana que vocês estão dividindo o mesmo teto. Ainda é cedo, mas a esta altura acredito que você já entendeu que casar não é tão simples, espero. — Ele explica, bem humorado demais para o meu gosto.
— Ah, não, Marcos, você vai mesmo querer me dar lições de como ter um casamento de novela dentro de um elevador?
Meu irmão solta uma gargalhada alta diante da minha alfinetada. Hoje deve ter sido um dia bom para ele, porque em outra situação Marcos estaria nesse exato momento batendo boca comigo enquanto descemos pelos andares do prédio.
— Você sabe que no começo a mãe e eu desconfiamos muito do seu casamento, não sabe?
— Como eu não iria saber se vocês dois jogaram isso na minha cara com todas as letras?
— É, nós fizemos isso. — Ele volta a rir, meio nostálgico ao que parece. — Acho que erramos um pouco ao julgar você. Leila é uma ótima mulher, Danilo, percebi isso no seu casamento, vendo vocês sorrirem um para o outro. Não deixe que ela se arrependa de ter dito sim para você no altar.
— Por que ela se arrependeria? Eu cumpri tudo o que prometi que faria por ela, na verdade eu até fiz mais do que prometi, Marcos. Eu respeito as decisões dela e a escuto falar, mesmo que ela prefira não falar nada. Eu até entendi que Sansão agora prefere o colo dela ao meu e nem reclamo da bagunça que ela faz! Por que é ela quem se arrependeria do casamento, hein?
Só percebo que falei demais depois de já ter colocado tudo aquilo para fora e estar ofegante como se tivesse corrido uma maratona. Estou profundamente irritado com tudo, com Leila, com esse contrato e comigo mesmo por estar nesse grau de desequilíbrio por algo tão minúsculo. A coisa é exatamente o que eu acabei de dizer para Marcos, eu tenho feito de tudo para agradar Leila, contudo não entendo por que ela continua se afastando. É difícil demais para mim entender o que ela quer e isso definitivamente me tira do eixo.
— Parece que você já entendeu sozinho que casamento não é uma coisa fácil. — Marcos volta a falar depois de um tempo esperando que eu me acalme.
— Tá, eu entendi, sim! Você tem um manual aí em e-book no celular que vai me ensinar o que fazer?
As portas do elevador se abrem no térreo no instante em que Marcos volta a rir da minha cara. Ele dá dois tapinhas no meu ombro e me lança um olhar esquisito que parece dizer que entende minha situação. Afasto a mão do meu irmão e saio do elevador primeiro, não achando a mínima graça na reação dele.
— Danilo! — Marcos me chama, apressando os passos para me alcançar.
Respiro fundo e me viro para ele com quatro pedras nas mãos, sem paciência nenhuma para assisti-lo se dobrar ao meio de tanto rir.
— Que inferno, o que você quer?
— Eu ia dizer que o melhor que você tem a fazer agora é ir atrás dela e se desculpar, moleque.
— Mas eu não fiz nada de errado!
— Não sou eu quem você tem que convencer disso.
Marcos acena para alguém às minhas costas. Ele me dá mais um olhar esquisito de piedade e me deixa falando sozinho, caminhando rápido para a saída do prédio. De onde estou, consigo ver Valéria esperando por meu irmão enquanto conversa alguma coisa com um dos guardas na entrada. Conhecendo a peça, Marcos deve estar sem carro de novo, porque ele sempre espera até o último quilômetro para trocar o óleo ou dar uma revisão no automóvel, e nesses momentos sobra para Valéria vir buscá-lo no trabalho depois de pegar as meninas na escola. Os dois trocam um selinho e dão as mãos, desaparecendo juntos de vista como a típica família de comercial de margarina que são.
Tomo meu rumo também, para não correr o risco de encontrar com Tales e ouvir asneira em pleno fim de expediente. Entretanto, no caminho para casa, fico pensando nas coisas que Marcos me disse. Sempre dou importância demais ao que ele fala e agora não é diferente, porque estranhamente meu irmão parece ter razão sobre Leila e eu.
As palavras de Marcos e a vontade de resolver logo o que está me incomodando me fazem mudar de direção. Estou há todos esses dias tentando me convencer de que não fiz nada errado e que a falta de comunicação de Leila comigo é algo normal, mas a verdade é que sei a resposta para todas as minhas perguntas desde que a deixei sozinha cuidando do meu cachorro.
Estaciono o carro em frente ao novo escritório da E. M. algum tempo depois, ainda sem saber muito bem o que dizer para Leila após todos esses dias em que não nos falamos. Encaro o prédio espremido entre outros dois prédios maiores, esperando vê-la por uma das janelas de vidro. Não é grande coisa, mas já é bem melhor que a garagem dos pais de Jonas e eu posso imaginar o quanto aqueles três devem estar felizes com essa pequena conquista.
Vejo Madu saindo do prédio com um celular na orelha e uma cara péssima. Ela atravessa a rua, desviando dos carros, xingando um ou outro que ousou não respeitá-la enquanto desfilava pelo asfalto. Resolvo saltar do carro e abordá-la antes de ir atrás de Leila, para sondar o terreno.
— Danilo! — Madu grita meu nome assim que me vê descer do carro. — Espere um segundo, já te retorno. — Ela diz para a pessoa no telefone e desliga.
— Oi, Madu!
— Finalmente você veio buscar sua esposa! Eu estava preocupada desse casamento ter acabado antes de ter começado.
Não faço ideia do que responder, por isso escolho apenas sorrir e fingir concordância. Olho para o prédio de novo, agora incerto sobre ter sido uma boa escolha ter vindo até aqui sem avisar.
— Vai lá em cima. Qualquer coisa coloca Jonas para fora para vocês dois conversarem sozinhos.
— Não é para tanto!
— Huumm, ok! Se você diz... — Madu solta uma risadinha incrédula e indica o prédio com o queixo.
Sigo a direção indicada por ela e alguns lances de escada acima estou entrando no que parece ser a recepção do escritório da E. M. Jonas é o primeiro que me vê chegar, pulando da cadeira em que estava sentado e olhando nervoso de Leila para mim. Ela está de costas para a porta, se equilibrando sobre uma escada, com um martelo na mão.
— Leila, eu vou conferir se Madu achou algum lugar para pagar os boletos, tá bom? — Jonas anuncia de repente, escapando para fora da sala sem nem ouvir o que Leila responde.
Ela apoia um prego na parede pintada de verde muito escuro e prepara o martelo. Me aproximo em silêncio, observando-a trabalhar toda concentrada. Leila pega um quadrinho de cima do último degrau da escada e o pendura na parede, afastando o rosto um pouco para conferir se não ficou torto.
— "É aqui que os sonhos começam." — Leio em voz alta as palavras no quadro. — Você precisa colocá-lo mais para a direita.
Ela se vira subitamente, se desequilibrando nos degraus pelo susto. Estendo os braços por puro reflexo, firmando a escada com uma mão e o corpo de Leila com a outra, evitando por pouco que ela caia, levando a escada e aquele martelo para o chão.
— O que você está fazendo aqui?
Nem sei por que eu ainda esperava que ela dissesse um simples "oi" antes de começar a questionar minhas intenções.
— Você sumiu por quatro dias. As pessoas estão achando que nosso divórcio está a caminho, sabia?
— Que exagero! — Ela afasta minha mão, que, por algum motivo, ainda estava em sua cintura, e desce da escada. — Eu disse que você poderia me ligar se precisasse de mim.
— Eu não precisei, por isso não liguei.
— Então o que você está fazendo aqui?
Engulo em seco diante da intensidade do olhar dela. Leila não parece brava como da última vez que nos vimos, nem surpresa por eu estar aqui, o que dá a entender, ao menos para mim, que ela esperava que tivéssemos essa conversa em algum momento, mas queria adiá-la tanto quanto eu.
— Eu achei que te devia um pedido de desculpas.
— Desculpas pelo quê?
— Por ter deixado você sozinha em casa no outro dia.
Ela assente devagar, refletindo sobre o que eu disse. Na minha cabeça, quando eu finalmente me desculpasse, o clima bom que senti entre a gente no dia do casamento voltaria instantaneamente e poderíamos rir sobre aquele breve desentendimento no caminho para casa, contudo a coisa não parece tão simples.
— Espera, você não achou que fiquei esses dias sem ir para a sua casa por causa daquilo, achou?
— O que você queria que eu pensasse?
— Que eu tinha muito trabalho para fazer? — Leila abre os braços indicando a sala que ainda está recebendo os últimos ajustes na decoração.
— Leila, você sumiu por dias!
— Eu não sumi, Danilo, você sempre soube onde me encontrar, apenas decidiu vir só agora.
Meu corpo inteiro fica rígido ao ouvir aquilo. Mil e uma respostas passam pela minha cabeça, mil e uma hipóteses de começar uma segunda briga que sei que vou perder para essa mulher, mil e uma coisas que não saem da minha boca, porque Leila está certa sobre tudo.
A última mensagem que trocamos foi ela quem enviou, eu sempre soube onde encontrá-la, sempre soube o que fazer se precisasse dela, mas escolhi não me mover. É justo que Leila me trate desse jeito, pois mesmo tendo agido como um idiota, eu esperei que ela voltasse para que eu sentisse que ela sempre estaria ali quando eu precisasse de alguém para cuidar de Sansão.
Porém, ainda que eu saiba de tudo isso e entenda os pontos que sempre levam nosso esforço em se aproximar para a lata de lixo, eu não consigo saber como superar tudo isso e recomeçar. Desculpas não parecem o bastante, falar sobre isso muito menos. Não é assim que Leila funciona e não é assim que eu estou acostumado a resolver meus problemas com uma mulher.
O silêncio entre nós dois cresce ao ponto de se tornar desconfortável para mim até mesmo olhar Leila nos olhos. Ela pigarreia, se afastando alguns passos para ver melhor a posição do quadro na parede atrás de mim.
— Meus pais estão indo embora amanhã de manhã. — Ela começa. — Pensei em ir à casa de tia Célia depois que saísse daqui. Você quer vir também?
Pisco algumas vezes, absorvendo as palavras dela. Não parecem significar muito a princípio, mas é perceptível que o tom de voz dela está mais suave agora. Me viro para a parede, fingindo observar o posicionamento do quadro para que ela não veja o sorriso se alargando devagar no meu rosto.
— Pode ser. — Respondo, por fim.
Então ajusto o quadro alguns centímetros para a direita, alinhando-o direito na parede e lendo de novo o que está escrito nele:
"É aqui que os sonhos começam..."
❤
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