Capítulo 06 - Leila
— Ele me disse que posso começar na segunda, Leila. Na segunda, acredita?
A voz animada de Rafael ecoa do outro lado da linha. Pelo visto, eu tê-lo indicado para Luís fez alguma diferença, já que agora meu ex-namorado começará a trabalhar no meu ex-emprego na segunda-feira.
De pé ao lado do sofá onde estou sentada e fazendo cara feia está Madu, revirando os olhos para cada frase que Rafael diz. Ela o odeia tanto, que nem sei como ainda não bloqueou o número dele no meu celular sem que eu saiba.
Limpo a garganta e dou meu melhor ao parabenizá-lo:
— Caramba, que bom que deu tudo certo! Parabéns, Rafa!
Estou feliz por Rafael, de verdade, mas eu também sou humana e ainda estou meio chateada por ele ter me procurado no domingo apenas porque queria que eu o indicasse para a minha antiga vaga na Solar. Confesso que eu esperava que ele dissesse que tinha sentido minha falta, que sentia muito por ter terminado comigo e que me levasse para a casa para que pudéssemos relembrar os velhos tempos. Enfim, mais um dia sendo uma iludida encalhada e ainda consideravelmente apaixonada por um ex-namorado que está muito bem, obrigada.
Rafael segue falando mais algumas coisas, as quais só respondo com "hm" ou "aaah". Madu está cada vez mais vermelha de ódio, o que está dificultando sua vida, porque a maquiagem não está ficando num tom muito bom. Ela fecha abruptamente o tubo de corretivo e cruza os braços tatuados, me dando um ultimato.
— Rafa, eu estou me preparando agora para ir à Feira. A gente pode se falar mais tarde?
— Ah, claro! Boa sorte lá, hein? Tomara que você consiga um bom investidor!
— Obrigada! Tchau! — Desligo sem nem ouvi-lo responder.
Madu se vira novamente para o espelhinho quebrado na parede da garagem e volta a trabalhar na maquiagem. Ela nem precisa disso sendo bonita como é, mas hoje é um dia especial e minha amiga quer estar à altura. Ela até tirou o piercing da sobrancelha para parecer alguém mais séria, mesmo tendo reclamado por dias que a sociedade é uma merda por tê-la obrigado, ainda que indiretamente, a fazer aquilo.
— Você precisa de um homem! — Ela solta de repente.
— Eu preciso é de dinheiro. — Respondo, me deitando de costas no sofá.
— Então você precisa de um homem rico!
— Eu prefiro ser o homem rico. — Contra argumento, encarando o gesso mofado por causa das infiltrações no teto.
A garagem dos pais de Jonas e precisa urgentemente de uma reforma. Nos instalamos aqui há algum tempo, dizendo que era provisório, coisa de seis meses, e já vai fazer dois anos. Madu trouxe os computadores, já que ela é a rainha do TI, e Jonas e eu trouxemos os fios de energia e os livros. As prateleiras de metal para guardarmos nossas gambiarras foram aparecendo, o quadro negro e o giz na parede oposta ao sofá foi doada pela dona Lurdes, mãe de Jonas, para que parássemos de rabiscar o piso com cálculos. O sofá já estava aqui e não vai sair, porque é onde nos jogamos quando estamos cansados demais para ir embora.
Aqui é pequeno, mofado e bagunçado, mas é onde nossos sonhos nasceram e estão tomando forma. Se um dia a E. M. se tornar uma grande empresa, vou ter o maior prazer do mundo em dizer que começamos numa garagem, que não tínhamos dinheiro nem para o ônibus e que tivemos que acordar de madrugada para não perdermos a hora da nossa apresentação na Feira de Startups.
— Levanta daí, senão você vai amassar toda sua roupa! — Madu reclama, me dando um tabefe no pé. — E trata de calçar um salto.
— Não, nem vem!
— Leila, meu amor, você nem tem um metro e sessenta, se você não botar um salto, ninguém vai te ver! — Madu argumenta, me olhando daquela maneira assustadoramente persuasiva que só ela tem.
— Primeiro, eu tenho um metro e sessenta e três. Segundo, eu fico com bolhas nos pés e nem sei andar direito de salto alto, Madu.
— Não me interessa. Eu tirei meu piercing, não custa nada você calçar um salto e passar um corretivo nessas olheiras.
Levo minhas mãos inconscientemente ao rosto. Eu tenho andado péssima, sem dormir, sem comer direito e uma maquiagem realmente não iria fazer mal. Querendo ou não, nossa imagem vai fazer alguma diferença hoje e me sinto até mal por ver Madu fazendo tanto esforço, enquanto eu nem mesmo estou tentando.
— Tudo bem, passe um reboco nessa minha cara, por favor!
Minha amiga nem esconde a animação. Ela adora me fazer de cobaia, tem até todas as cores de base e corretivo para a minha pele em sua nécessaire, o que é muita consideração, tendo em vista que temos tons de pele bem diferentes. Madu é amarela, enquanto minha pele é de um tom café com leite. Na verdade, nossas diferenças vão bem mais longe do que a cor da pele.
Madu deve ter 1,70m mais ou menos, já eu sou um anão com meus 1,63m. O cabelo dela é curtinho, porque ela adora mostrar a tatuagem no pescoço, ao passo que eu fico meses e até anos sem cortar meus fios cacheados. Madu é estressada e propensa a mandar qualquer pessoa que a encha o saco para aquele lugar, quando eu mal consigo discutir com alguém sem começar a chorar. Nossas diferenças são enormes e eu poderia listá-las infinitamente, mas são exatamente elas que fazem com que nós duas sejamos tão próximas. Se não fosse por Madu e por minha prima Bruna, eu seria ainda mais caótica e solitária do que já sou normalmente.
Pensar em Bruna me faz olhar pela décima vez para o meu celular em busca de algum sinal de vida dela. Ainda estou na luta para evitar minha família e minha tia, então não posso nem pensar em ligar para casa, mas confesso que estou preocupada com a falta de notícias. Faz dois dias que não nos falamos e Bruna nem sequer visualiza minhas mensagens.
— Vou te borrar inteira se você não ficar quieta! — Madu reclama com o tubo de base nas mãos.
— Desculpa, eu só queria ver se tenho notícias de casa.
— Você está reclamando disso há dias. Deveria ter pegado um ônibus e ido ver se está tudo bem.
Com certeza eu devia ter feito isso ao mínimo sinal de que algo não estava certo, só que que estou com medo de ter minhas suspeitas confirmadas sobre realmente ter alguma coisa séria acontecendo em casa. Hoje é um dia decisivo demais para mim e eu tenho que estar concentrada ao máximo. Sei que é egoísta ao extremo pensar dessa forma, mas essa bendita Feira pode ser minha última chance de fazer as coisas darem certo, não posso deixar nada perturbar ainda mais a minha cabeça.
— Vou pegar um ônibus direto para casa depois que sairmos da Feira.
— Quer que eu vá com você? Adoro a comida da sua tia! — Madu dá uma piscadinha sacana para mim. Interesseira.
— Se você for, Jonas deve querer ir também.
— Claro, porque ele ainda não desistiu de ficar com sua prima até hoje. Aquele nerd está mesmo a fim de se tornar padrasto, pelo visto, como se sua prima fosse querer um molenga daquele...
— Madu! — Eu a corto antes que ela comece com o discurso de que Bruna é areia demais para o caminhão de Jonas.
— Ok! — Ela arqueia as sobrancelhas e se afasta um passo de mim. — Terminei meu milagre. Agora calça o salto e vamos atrás do nosso dinheiro!
Balanço a cabeça de leve, apertando os lábios para não sorrir. O efeito Maria Dulcineia começa a fazer efeito em mim e sinto toda a exaustão e desânimo das últimas semanas sendo substituídas por uma animação crescente.
Madu está mais do que certa. Está na hora de irmos atrás do nosso dinheiro.
❤
Jonas veio primeiro para a Feira e deixou nosso estande prontinho para a exposição. Nossa logo, nossa proposta, nossos computadores prontos para iniciar uma simulação... Está tudo perfeito, como imaginamos, e mal vejo a hora das pessoas começarem a chegar. Já passei e repassei todo meu discurso de apresentação, está tudo na ponta da minha língua e sinto que desta vez vai dar tudo certo.
Olho para meu relógio de pulso e arrisco um sorriso. São exatamente 8h00. Dou as mãos para Madu e Jonas, e me obrigo a respirar fundo. É agora.
É agora!
A Feira aos poucos vai se enchendo de pessoas. Estudantes, pesquisadores, empresários, investidores, todos passando devagar pelos corredores e parando em um estande ou outro, ouvindo o que alguns sonhadores como nós têm a dizer. Madu está distribuindo panfletos, enquanto Jonas explica alguns princípios da engenharia elétrica para alguns estudantes. E eu? Bem, ainda estou aguardando algum possível investidor se aproximar.
Ajeito meu crachá na lapela do blazer preto e abro um sorriso largo para as pessoas que passam pelo estande. Não importa o que aconteça, vou me manter confiante e positiva. Não cheguei tão longe para que não escutem o que tenho a dizer.
No entanto, as horas passam e nenhum propenso investidor se aproxima. Peguei alguns panfletos das mãos de Madu e estou tentando de todas as formas possíveis parar as pessoas que caminham próximas ao nosso estande. Meus pés estão ardendo dentro das sandálias de salto alto e minha maquiagem deve estar começando a derreter, mas nada disso me dói mais do que não ver ninguém se interessando pelo nosso projeto.
Minha cara não deve estar escondendo muito bem o quanto estou frustrada, pois assim que entrego o último panfleto e me volto para Madu para pegar mais alguns, ela me diz:
— Vai tomar uma água, você parece prestes a chorar!
Nem tento contestar, pois sei que ela tem razão. Estamos aqui há muito tempo e tenho quase certeza de que todo mundo está com fome e exausto.
— Vou trazer alguma coisa para vocês comerem. — Digo para Madu antes de me afastar.
Tiro o blazer e enrolo as mangas da minha camisa social até os cotovelos, tentando respirar um pouco e me acalmar. Está tudo muito quente aqui nesse espaço imenso fervilhando de pessoas. Aproveito meu mínimo descanso para dar uma olhada em outros estandes e especular possíveis tendências para o mercado em que pretendemos atuar.
Há de tudo por aqui, um projeto mais inovador e interessante que o outro, diversas ideias que eu adoraria ter, inclusive. Paro em um estande em que estão apresentando um tipo de asfalto feito de garrafa pet. Estou concentrada nas explicações quando tenho a impressão de ouvir meu nome. Giro o rosto de um lado para o outro, mas não consigo ver ninguém conhecido por perto.
Antes que eu volte a prestar atenção na explicação sobre o asfalto de garrafa pet, acabo ouvindo outra vez alguém chamar meu nome e agora tenho certeza de ter ouvido mesmo. Dou as costas para o estande e me viro totalmente para as pessoas que passam por mim em busca de algum rosto conhecido. Franzo a testa e um arrepio me sobe a espinha. Tenho andado estressada demais e ouvir coisas pode ser um sinal de que estou ficando louca.
Entretanto, uma terceira vez escuto alguém chamar meu nome, agora próximo de mim o suficiente para saber que é um homem. Viro meu rosto para a minha direita, de onde veio o som, e encontro um cara olhando fixamente em minha direção. Aperto os olhos e ajusto meus óculos contra o rosto, mas não consigo saber ao certo de onde o conheço.
Ele começa a andar em minha direção, estampando um sorriso de alguém que acabou de ganhar na loteria, passando pelas pessoas sem se importar em esbarrar nelas. Olho ao meu redor para confirmar se eu realmente sou a única que está percebendo aquela cena bizarra se desenrolando, mas as pessoas parecem alheias ao que está acontecendo.
Estamos há poucos passos um do outro quando sinto meu braço ser puxado abruptamente.
— Meu Deus, você está surda? — Jonas praticamente grita no meu ouvido. — Não me ouviu te chamar?
— Desculpa, eu... — Sacudo a cabeça de um lado para o outro, a percepção me atingindo.
Então era apenas Jonas que estava me chamando. Não era aquele cara, não era a morte, como minha avó costuma dizer, nem é a minha mente me pregando uma peça. Era só Jonas que estava atrás de mim por algum motivo.
— O que houve?
— Um investidor! Ele está lá no estande e Madu está conversando com ele. Você precisa...
Nem deixo Jonas terminar de falar ao puxá-lo pela mão e correr entre as pessoas, com o coração batendo na garganta de tanta felicidade.
❤
Nosso possível investidor estava bastante interessado no projeto até eu apresentá-lo nosso orçamento inicial. O homem de uns 50, 60 anos, dono de uma empresa de energia fotovoltaica ficou cor de rosa e sem palavras por alguns instantes, apenas encarando os números no papel.
— Vou entrar em contato com vocês assim que possível. — Ele diz, dando um sorriso amarelo para nós.
Droga.
— Claro, claro. Estaremos esperando o contato. — Jonas fala com seu tom simpático de sempre.
E simples assim o homem vai embora com um cartão da E. M. no bolso e um envelope nas mãos com nossa proposta. Não duvido nada que ele descarte tudo isso na primeira lata de lixo e eu nem sei se sou capaz de julgá-lo caso faça isso. Somos apenas uma startup e estamos sonhando alto demais.
— Puta que pariu! — Madu esbraveja, desabando no chão do nosso estande.
— Sem drama, Dulcineia! Você aguenta coisas piores sem reclamar que eu sei. — Jonas se abaixa diante dela, tentando puxá-la para cima pelos braços.
Madu, por sua vez, responde a Jonas com um exímio chute no joelho.
— Sua sociopata! — Ele a xinga, mancando para longe de Madu.
— Descansem um pouco os dois. — Digo para meus amigos, tentando acalmá-los, mesmo estando eu mesma por um fio.
Pego o que resta dos nossos panfletos e me dirijo para fora do estande, me convencendo de que preciso ficar firme, devo isso a mim e aos meus amigos. Pensando pelo lado não tão ruim, pelo menos alguém se interessou por nós e nos ouviu. Duas horas atrás nem isso nós tínhamos. O dia pode até ser longo, mas não vou desistir agora. Não posso e não quero!
Estendo a mão e ofereço panfleto por panfleto às pessoas circulando ao redor do nosso estande. Sorrio o máximo que posso, converso o máximo que posso, me esforço mesmo que esteja prestes a desabar. Alguém vai aparecer, eu sei que alguém vai.
Jonas diz que vai buscar algo para que a gente possa comer, já que eu sequer consegui ir à praça de alimentação mais cedo. Madu assume o lugar dele e tira as dúvidas das poucas pessoas que se aproximam, enquanto sigo firme na panfletagem, apesar de estar complicado ficar de pé com esses saltos malditos.
Por sorte, coloquei alguns curativos adesivos no bolso, porque sabia que meus calcanhares ficariam em carne viva. Me encosto bem rente ao estande, para ficar fora do caminho das pessoas, e me abaixo para colocar um curativo no meu calcanhar dolorido. Sinto alívio imediato ao interromper o contato infernal da correia da sandália com minha pele machucada.
Me preparo para ficar de pé quando vejo um par de sapatos sociais muito perto de mim. Passo os olhos devagar pelos sapatos, pela calça social, pelas mãos, cujo punho esquerdo está envolvido por um relógio aparentemente muito caro, e pelo blazer cinza sob medida até encontrar olhos muito escuros me encarando de cima.
— Leila! — O homem diz meu nome e eu quase caio sentada ao me dar conta que era o mesmo cara e a mesma voz de antes. — Finalmente encontrei você.
❤
Oie! Como vão as coisas?
Mais dois capítulos postados de SAGSCD e eu adoraria saber o que estão achando da história hahaha
Muitíssimo obrigada por lerem. Vejo vocês no próximo domingo.
Bjx,
Thaly :)
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