Capítulo 22 - Pária Martel
Se Sara fosse uma deusa, ela concederia ao seu pai todo tipo de desejo. No pior dia de sua vida, ele preparou biscoitos amanteigados na tentativa de confortar seu coração doído. "Estão deliciosos", mentiu Sara. Mas talvez estivessem. É só que ela não sentia direito o sabor deles. O paladar estava tão entorpecido quanto o de alguém gripado.
Ao amanhecer do dia seguinte, pensou que o gosto amargo pelas coisas teria passado, mas sentiu o mesmo sabor sem graça no café da manhã.
Enquanto ela mordiscava o biscoito insípido, Camilo sentou-se à mesa com um exemplar do Utopia em mãos. Mergulhado em uma leitura dinâmica, foi folheando o caderno fidalgo com um interesse ansioso.
— Ótimo. Você não virou notícia — comentou, aliviado, ao passar pela última página. — Apesar da garantia do aurano Lamar, fiquei preocupado de ver seu nome estampado no jornal.
— Já olhou o restante? — Sara perguntou, deitando os olhos sobre os outros cadernos. Eram mais destinados aos vulgares, mas também exploravam assuntos gerais do interesse da casta superior. Apanhando um deles, intitulado "Notícias de Neriquia", comentou: — É onde anunciam os párias, não é?
— Você não é uma pária, nem uma vulgar. Eles não te colocariam aí.
Sara não tinha tanta certeza. Se estivessem dispostos a noticiar o episódio, não se limitariam a um parágrafo no canto da folha; em vez disso, dissecariam seu histórico de vida envolvendo sua doença aurânica numa matéria de página dupla, com uma manchete intitulada "A Pária Fidalga" ou algo igualmente escandaloso. Felizmente, não havia nenhuma chamada suspeita na folha de rosto.
Ainda assim, deslizou o olhar por todas as páginas. Engarrafamentos causados por obras na Central de Neriquia; linhas de trem paralisadas para reparo num trecho da região Norte, na altura de Moroçó; atuação da polícia aurana, em Cor da Fé, na região Sul, na prisão de uma vulgar por contrabando de armas de fogo; médico detido em hospital após pacientes acusarem-no de rosafobia após se recusar a atender um neriquiano rosa. Mais adiante, sua atenção foi capturada pela foto de uma jovem, acompanhada do título: "Pária é detida no CA da região Sudeste". A garota na imagem tinha olhos verdes; pele negra clara, cabelos castanhos semilongos e cacheados; e uma tatuagem de maçã no braço.
Estava prestes a ler a matéria, quando Alana entrou na sala de refeições. Um "bom dia" escapou sorrateiro dos lábios da irmã. O pai cumprimentou-a de volta. Sara deu mais uma mordida no biscoito.
Enquanto Alana se juntava à mesa, passando a misturar o café e o leite na caneca, Sara voltava sua atenção para o jornal. Começou a ler o primeiro parágrafo, mas sua concentração estava dispersa, como se estivesse em meio a uma festa barulhenta. As frases simplesmente escorriam da sua mente para o limbo. Sua visão periférica fisgou a mão da irmã pegando sabe-se lá quantas colheradas de açúcar para entornar no café. O barulho do metal raspando no vidro ao mexer a bebida deu-lhe uma aflição tão grande que ela largou o pedaço do biscoito no prato e se levantou.
Sem dar satisfações a ninguém, apanhou o jornal e saiu do cômodo. Subiu as escadas num desassossego. Entrou no quarto batendo a porta e girando a chave na fechadura. Sentou-se na cama e soltou do peito um ar revolto.
O Utopia dobrado em sua mão, aos poucos, afastou o desconforto causado pela presença da irmã. Enfim, ajeitou-se na cama e abriu o jornal sobre o colo, folheando-o até a mesma página de antes.
Ontem, no dia 7.1 de Morganite, no Centro de Alistamento da região Sudeste, em Guimarães Costa, uma vulgar chamada Marcia Martel tentou prestar ilegalmente o exame de alistamento. A pária se disfarçou usando uma peruca verde — item de posse ilegal para qualquer neriquiano —, sob o nome falso de Denise Alves, e foi descoberta após fracassar no exame, supervisionado por um supremo aurano. Marcia tinha notas quase perfeitas na escola e chegou até mesmo a ganhar um concurso literário. Fábia Tizente, a aurana responsável pelo caso, lamenta que uma vulgar tão exemplar tenha se deixado cair em desgraça, uma vez que contava com um leque enorme de moldes à sua disposição no Instituto do Trabalho. Como sempre acontece nesse tipo de ocorrência, abriu-se uma investigação para identificar qual ou quais foram os criminosos que possibilitaram o ingresso da pária no CA.
Após a leitura, os olhos de Sara recaíram novamente sobre a foto da "pária". Esse termo era humilhante! Não somente definia o crime que alguém havia cometido, mas também marcava uma posição ainda mais baixa que a dos vulgares na hierarquia social. O tratamento que recebiam era bastante indigno: seus salários eram cortados pela metade, e as profissões as quais podiam exercer eram limitadas às mais humildes. Não havia espaço para párias se tornarem artistas, cientistas, educadores, atletas ou qualquer outro profissional com potencial de reconhecimento público.
Por muito pouco, Sara também não fora rebaixada a esse status. Se tivesse, teria dado adeus a uma carreira de violinista. Sua questão financeira, por outro lado, não seria problema. Mas e quanto àquela garota chamada Marcia Martel? Será que teria o suporte da família ou de pessoas próximas? Ou será que todos a tratariam com enorme desdém, dizendo o quanto estavam decepcionados com ela?
Ao pensar nisso, sentiu um aperto no peito. Teve vontade de entrar naquela foto e abraçar a garota. Ontem elas tinham o mesmo sonho e hoje partilhavam a mesma frustração. Seus corações deviam estar pulsando uma dor igual.
O som de batidas na porta quebrou o turbilhão de seus pensamentos.
— Sara...
A voz da irmã a fez revirar os olhos e deitar na cama. Não abriria a porta para ela, de forma alguma. Apesar disso, ela foi aberta. A cretina tinha usado a chave mestra.
— Não quero papo contigo — declarou, virando-se de costas para Alana.
— Eu sei. Mas... só me escuta. Ontem... quando entrei na sala do exame, uma garota com madeixas verdes foi minha testemunha. Ela se chamava Denise, mas esse não era o nome real dela. Na verdade, ela nem era fidalga. — Sara arregalou os olhos. A coincidência no relato fez com que ela se virasse bruscamente para a irmã. — Quando chegou minha vez de testemunhar o brilho dela no arauto... o artefato não brilhou. Aquela garota era uma vulgar.
Sara pegou o jornal que estava na cama, dobrado na página que acabara de ler, e o estendeu para Alana.
— Essa garota? — quis saber.
Alana apanhou o jornal, e a expressão no rosto soltou a resposta antes mesmo de sua boca.
— Ela mesma! É verdade. Os párias são anunciados no Utopia depois que falham no exame — comentou, movendo os olhos pelas linhas da notícia. — Marcia Martel... Então esse era o nome dela. — Alana sacudiu o jornal levemente, enfatizando a inevitabilidade daquilo. — Vê? Isso teria acontecido com você, se tivesse tentado se alistar.
— Não tem como saber — retrucou, sentindo a raiva pela irmã esquentar novamente.
— Sara, seu corpo é o mesmo de uma vulgar. Eu estava lá quando essa garota tentou fazer o que você queria e falhou. Quando tudo acabou, o rosto dela parecia tão... confuso, partido... impotente. — Alana largou o jornal sobre a cama e encarou Sara com uma intensidade perturbadora. — Você pode me odiar pelo que fiz, e tudo bem. Mas eu fico aliviada por não ter visto aquele rosto em você.
Sara sentiu os olhos se inundarem com lágrimas nascidas de um coração quebrado.
— E como você acha que está o meu rosto agora?
Os lábios de Alana tremeram, mas não se abriram em resposta.
— Sai do meu quarto — pediu Sara, com a voz fraca, mas resoluta.
E não precisou pedir uma segunda vez. Alana, com os ombros caídos, virou-se e saiu. Assim que a irmã fechou a porta, as lágrimas de Sara caíram, silenciosas, uma após a outra.
Ela limpou o rosto com as mãos, olhando para a página do jornal ainda na cama. Num impulso, abriu a gaveta da mesa de estudos e pegou uma tesoura. Então, cuidadosamente, recortou a notícia sobre a garota que havia sonhado o mesmo sonho que ela.
— Sinto muito... — murmurou, como se pudesse, de algum modo, se comunicar com a jovem da foto. —... Marcia Martel. — o nome pronunciado com a voz grave, como se quisesse gravá-lo para sempre em sua memória.
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