Capítulo 18 - O teste de Durval (2)
O frio na barriga retornou com força. Sara entrara naquela reunião preparada para lidar com respostas definitivas, ou mesmo com algum tipo de acordo, mas não com um teste surpresa. O que raios teria que fazer?
Durval debruçou-se sobre a mesinha de madeira que os separava, chamando atenção para uma caixinha de porcelana fechada. Ao retirar a tampa, usou o polegar e o indicador para pinçar algo lá de dentro. Era pequeno, vermelho, não, amarelo, tão amarelo quanto a cor das unhas de Durval. Só então Sara percebeu que o supremo segurava uma lumeia.
— Presumo que já tenha entendido o que precisa fazer — disse Durval.
— Eu... tenho que mudar a cor dela, não é? — deduziu a garota, assaltada por flashes de memória de uma brincadeira no Jardim de Infância. Desde então, nunca mais havia tocado em uma lumeia.
— Assim como o arauto, as lumeias também reagem ao contato com a aura. A diferença é que, no caso desta flor, é necessária uma quantidade muito menor, em comparação ao artefato. Por isso as crianças fidalgas conseguem alterar as pétalas assim que seus cabelos ganham cor. Logo, se você conseguir transformar essas pétalas amarelas em azuis, considerarei que tem alguma chance de sucesso no exame de alistamento.
Durval depositou a flor sobre a mesa, à espera da jovem.
Sara olhou para a lumeia como se nada mais em volta existisse. Era uma imagem paralizante, de descompassar o coração. Uma flor tão pequena, mas que se avolumava segundo a segundo em sua mente, provocando suor em sua testa. Precisava tocá-la, definir o rumo de sua vida. Lembrou-se, então, que não estava sozinha. Buscou os rostos do pai e da irmã, que a observavam com apreensão semelhante.
— Você consegue — sussurrou Alana, fazendo-a perceber a mão quente da irmã sobre a sua. O calor proporcionado por aquele toque e por aquelas palavras aliviou um pouco a tensão que dominava seu corpo.
Enfim, voltou os olhos para a flor. Lentamente, inspirou e expirou o ar pela boca. Lentamente, estendeu a mão direita em direção à mesa. Lentamente, aproximou seu dedo indicador para tocar uma das pétalas. E num gesto súbito, como o bote de uma cobra, agarrou a flor inteira, prendendo-a firmemente dentro do punho, acreditando que o maior contato com a pele aumentaria suas chances.
— E então? — disse Durval, que, assim como os demais, observavam apreensivos a mão fechada da garota.
Sara manteve a lumeia escondida, pois outro pensamento lhe viera à mente: talvez o tempo de contato com as pétalas também influenciasse o resultado. Então, quanto mais ela enrolasse, maiores seriam as chances de aprovação.
— Abra a mão, guria — pediu Durval, impaciente.
Sara apertava o punho de nervosismo. Tentou enxergar o pedacinho de alguma pétala nas brechas entre seus dedos, como garantia de que aquilo terminaria bem.
— Abra-a agora! — insistiu o supremo, adicionando rigor à voz.
Forçada pelo aurano amarelo, e também pela dor causada pela pressão dos dedos, Sara lentamente descerrou a mão até deixá-la espalmada. A lumeia, com as pétalas amassadas, descansava sobre a pele suada. O azul de seus olhos não encontrou o mesmo azul nas pétalas, somente o amarelo de Durval.
— Hm, é uma pena. — disse ele, com um tom de lamento que soou quase indiferente. — Parece que sua vida como maga será mesmo inviável.
Mais uma vez, Alana se manifestou quando Sara não conseguia.
— Não pode dar a ela mais tempo? Pode ser que aconteça daqui a alguns minutos. Talvez horas! Se o caso dela é especial, o resultado pode vir de forma inesperada.
— Improvável — disse Durval, movendo a cabeça em negação, o olhar pousado sobre as pétalas amarelas. — É como multiplicar zero por qualquer número. O resultado não vai mudar.
O fatalismo do supremo aurano atingiu Sara em uma ferida já aberta em seu peito, de onde vertiam sensações negativas que sua mente não conseguia estancar. Elas vazavam para fora de si, num ranger furioso de dentes e no fluxo de lágrimas prestes a cair. E foi quando o choro escorreu, que Sara reagiu de acordo com a tempestade de sentimentos que a arrasava por dentro. A garota soltou um grunhido e novamente fechou a mão, dessa vez com força e rapidez, como se quisesse esmagar aquela maldita flor. Levantou-se do sofá em um impulso agressivo e dirigiu-se à porta com passos fortes.
— Sara, espera! — chamou Alana.
Mas a voz da irmã não a deteve. Sem olhar para trás, saiu da sala batendo a porta. Com lágrimas quentes desfigurando sua aparência, caminhou pelo corredor de volta ao saguão e parou de frente ao elevador. Apertou o botão. Talvez aquele prédio compreendesse seu desejo de fuga e solidão, ou talvez ele só estivesse escorraçando uma fidalga inconveniente, pois o elevador chegou em menos de cinco segundos, vazio, oferecendo-lhe um espaço onde ninguém notaria suas lágrimas e faria perguntas as quais não queria responder.
Ao sair do edifício, caminhou sem destino pelas ruas de prédios comerciais que se erguiam como gigantes de concreto. Envolvida pelo ritmo frenético da Central de Neriquia, com sua sinfonia desordenada de buzinas e vozes e seu odor de fumaça e gasolina, ela misturou-se à multidão de corpos cuja densidade só existia na capital. Mesmo distraída consigo mesma, atravessou ruas largas sob o sinal vermelho do semáforo e ignorou conscientemente panfletos empurrados em sua direção. Sua mente estava longe, presa em uma frustração que provavelmente carregaria até o fim da vida. A lumeia ainda estava em sua mão, amassada, mais frágil e desgastada que antes... e ainda amarela.
Sara arrebentou as pétalas como se rasgasse as folhas de caderno preenchidas de ofensas que recebia no Jardim de Infância. Os pedaços da lumeia, leves como papel, foram ao chão e se misturaram à poeira que cobria o asfalto e as calçadas. E com a mesma mão que havia segurado a flor, impregnada com o aroma da planta, limpou as lágrimas que voltaram a cair.
O que faria agora? Se contentaria em levar uma vida sem magia, igual a dos vulgares que andavam ao seu redor? Não foi isso o que sonhou, não foi isso o que desejou, não foi isso o que pediu a deusa Shala.
Parou de andar. Olhou em volta para se localizar. Conhecia aquela região da cidade razoavelmente bem para se guiar pelas ruas cheias de movimento. Por isso, traçou mentalmente um trajeto para o templo mais próximo dali. Queria trocar uma palavrinha com a deusa de sua aura.
Demorou uns quinze minutos para alcançar o templo. A essa altura, o pai e a irmã já deviam ter terminado aquela merda de reunião e estavam retornando ao hotel, à sua espera. Por isso não iria demorar muito, para não preocupá-los.
Neriquianos visitavam as câmaras de seus respectivos deuses para fazerem pedidos ou agradecimentos, mas quando Alana entrou no recinto, não tinha intenção de fazer uma coisa nem outra. Sentou-se no banco de madeira mais próximo da estátua de Shala e desprendeu seus sentimentos em relação à deusa azul:
— Nas histórias que lia, você e os outros deuses sempre operavam milagres em favor dos personagens. Foi assim com o mago mirim. Por isso acreditei que o mesmo aconteceria comigo. Só que não estou dentro de uma história, estou? No mundo real, eu tenho a impressão de que certos milagres estão fadados a nunca acontecer. — A garota observou a face divina e acalentadora talhada no mármore, uma expressão que, antes, aferrava-se à conclusão de que tudo ficaria bem, mas que agora soava como um pedido de desculpas lamentável. — Mesmo que seja uma deusa, é como se suas bênçãos não fossem pra todos, como se estivessem condicionadas a algo maior. Eu... pensei que entidades divinas pudessem dobrar a realidade, criar resultados no limite do improvável. Mas se esse fosse o caso... — Sara puxou uma mecha de seu cabelo escuro para frente dos olhos azuis. — Por que os vulgares nunca entram na Academia? Por que esse tipo de milagre nunca se realiza?
— Ora. Mesmo sendo uma fidalga, vejo que está começando a enxergar o mundo como uma vulgar — pronunciou uma voz metálica ecoando na câmara.
Sara virou-se para trás e viu um sintético de Shala parado em frente à porta. Quando foi que ele havia entrado? Estivera tão compenetrada em sua frustração que não o ouvira abrir e fechar a porta?
— Não é que a deusa azul não seja capaz de realizar esse milagre. É que ele apenas ainda não aconteceu — disse o ser de máscara, andando até os bancos da primeira fileira e se postando diante da estátua. — Shala e os outros deuses talvez estejam à espera de um escolhido, alguém pelo qual valerá a pena operar esse milagre.
Apesar de a presença daquele sintético lhe soar estranha, Sara retrucou:
— Se é assim, parece que não sou essa tal escolhida.
— Isso ainda não foi definido — disse ele, encarando a jovem por meio da máscara prateada adornada com safiras no lugar dos olhos. — Eu sou um sintético de Shala, não sou? Portanto, a minha vontade é a vontade de nossa deusa. E tenho algo aqui que, talvez, conceda o milagre que tanto busca.
Sara reparou que o sintético carregava uma sacola de papel pardo, a qual lhe foi entregue em seguida. Ao conferir o que havia dentro, não acreditou até retirar o conteúdo. Era uma peruca azul, do mesmo tipo e tamanho de seu cabelo.
— Por que está me dando isso? — perguntou a jovem. Assim como pintar as unhas ou o cabelo, perucas cobriam parte da identidade neriquiana. Era um adereço ilegal para ambas as castas.
— À Sara Buarque pode ter sido negada a chance de fazer o exame de alistamento. Já Alana Buarque...
* * * * * *
AVISO: O capítulo 19 será postado somente no dia 11/01/2025.
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