8. Fogo em palha seca
Cheguei junto com Priscila na casa da Lari, tive de implorar para que ela não me abandonasse e fosse comigo para apoio moral. Como imaginei, Vitor estava jogado no sofá com os pés para cima, os tênis largados perto da porta. Tentei não revirar os olhos e focar no sorriso leve da Lari.
Ela estava tensa, percebi. Não sabia se era Vitor, ou se era meu encontro iminente com ele.
De alguma forma, nos ajeitamos na sala, desconfortáveis, tímidos. É claro que Lari e Vitor ficaram agarrados num dos sofás, eu e Priscila ficamos sentadas lado a lado no outro, de frente para eles.
Percebi logo que Vitor tinha escolhido o filme, era um enredo estranho de ação com muitos tiros e gritos, algo que eu sabia que Lari odiava. Tentei conter o incômodo no peito. Apesar de parecer durona, Lari era romântica, gostava do drama, não da ação. Ela nunca me deixava escolher os filmes, por mais que eu reclamasse.
Suspirei, tentando não ficar tão irritada, mas algo se apertava dentro de mim. Por que ela se anulava tanto perto do Vitor?
Eu estava angustiada. Mais uma vez, Lari quase não tocava no próprio celular, e Vitor estava ao lado dela quase sempre. Afundei minhas unhas na palma das mãos para me controlar.
Assistir ao filme foi uma tortura. Era totalmente desinteressante e cheio de violência gratuita, sem um enredo decente. Pedi para ir ao banheiro em certo momento, Priscila deve ter percebido que eu estava chateada porque disse que iria tomar água e me acompanhou pelo corredor.
— Você está bem? — perguntou baixinho, colocando-se em minha frente. Dei de ombros, sem saber o que fazer.
— É só difícil não voar em cima dele — sussurrei. Estávamos paradas no corredor, era fácil nos ouvir dali. Com sorte, com o barulho da televisão, nossa conversa ficaria abafada.
Priscila me deu um sorrisinho.
— Eu sei, toda vez que o Vitor respira mais alto, você revira os olhos — respondeu, e eu revirei os olhos em resposta. — Pê, isso é importante, Lari precisa de você por perto, tá? Insiste nela, ou vocês vão se afastar e ela não vai ter nenhum apoio — relembrou Priscila, e eu inspirei muito fundo, assentindo com a cabeça. Tudo bem, eu seria a pessoa madura, eu relevaria tudo porque me importava com Larissa e queria ajudá-la.
Lavei meu rosto para me acalmar e voltei para a sala, afundando no sofá. Priscila já estava lá, assistimos ao filme em silêncio, o que foi muito estranho. Sempre que eu assistia a alguma coisa com Larissa, o ritual era rir e zoar até não poder mais, mesmo que fosse um filme de terror — ela só estava quieta, Vitor prestava atenção na televisão, Priscila desconfortável e eu no meio do fogo cruzado.
Finalmente teve uma cena em que duas mulheres, personagens secundárias, se beijaram no filme. Eu sorri levemente.
— Ok, a única coisa interessante no filme inteiro — provoquei, tentando soar brincalhona, mas dizendo a verdade. Era um filme com péssima representatividade, as mulheres extremamente sexualizadas, mas pelo menos o beijo das duas fora algo rápido e natural.
Vitor levantou as sobrancelhas.
— Você e Lari já... — Ele deixou a pergunta pairando no ar, e eu sabia o que Vitor queria perguntar. Olhei para a televisão, para a cena das duas mulheres. Minhas bochechas ficaram quentes.
Vocês já se beijaram?
— Não, sempre fomos só amigas — Lari respondeu rapidamente, eu me assustei com a pontada de desespero que ouvi em sua voz.
— Por que? Você se incomodaria? — retruquei num tom falsamente adocicado, tentando conter a ironia entalada na garganta. Eu vira o olhar interessado de Vitor na cena do beijo sáfico, aquilo revirou meu estômago.
— Não, acho sexy — respondeu ele, fazendo com que algo desabasse dentro de mim. A fúria queimou numa questão de segundos, espalhando-se como fogo em palha seca pelo meu corpo.
— Você só pode estar brincando — murmurei, estressada. Priscila já estava colocando a mão no meu braço e apertando num tom de advertência. Tudo bem, eu era realmente implicante com Vitor, mas ele pedia. — E se ela beijasse outro garoto? — Ele franziu as sobrancelhas e negou com a cabeça.
— Nós namoramos — disse. Eu gargalhei, ácida, por cima do barulho de tiroteio do filme.
— Então ela pode beijar meninas porque você acha sexy, mas garotos estão fora de questão? — Levantei do sofá com os braços cruzados, esperando que ele respondesse. Vitor só ficou me olhando de maneira embasbacada.
— Pietra... — começou Larissa, mas eu estava impaciente e queimando por dentro, estava de saco cheio.
— Vai se foder, Vitor. Nossa sexualidade não existe para a merda do seu fetiche — acusei, aumentando o tom das minhas palavras. Olhei para Larissa em busca de ajuda, em busca da indignação dela. Como ela conseguia ouvir aquilo do próprio namorado sem se revoltar?
— Por que você está tão brava? Ele não disse nada...
— Vai se foder você também! — Fiquei arrependida no mesmo momento. Que incrível, Pietra, você tem cinco anos. Ótima amiga, ótima maturidade, que apoio incrível você está sendo.
Virei sem dizer nada e segui para a porta com passos rápidos, Priscila correu para me alcançar já no portão. Seguimos para a rua sem dizer nada, nem Lari e nem Vitor tentaram nos chamar, então só continuamos a andar em qualquer direção.
Senti as lágrimas no meu rosto, a trilha calorosa e úmida deixada por elas.
— Ei, quer falar sobre isso? — perguntou Priscila, muito suavemente. Eu funguei alto e sequei as lágrimas com a ponta dos dedos.
— Eu só não sei como ela aceita aquilo, como ela não vê nada e o defende tão cegamente. — Minhas palavras soaram gaguejadas. Priscila suspirou e entrelaçou a mão na minha, apertando meus dedos.
— Pode acontecer com qualquer um, Pê, mesmo com pessoas incríveis. Você vai abrindo uma exceção ali e aqui, dando poder para a pessoa, convencendo-se de que vale a pena tê-la ao seu lado — comentou baixinho, o tom entristecido. Eu observava a cidade dourada no sol poente, os poucos carros passando na rua residencial. O comércio ficava quase todo concentrado na avenida principal. — É algo gradual, nem sempre consciente. — Priscila deu de ombros, e nós caminhamos por um tempo em silêncio. Estávamos indo em direção à casa dela agora, um caminho com mais movimento e cercado de ipês floridos.
As ruas estavam lotadas de flores amarelas e eu as chutava com desinteresse.
— Você tinha razão, acho que gosto da Lari de uma maneira romântica, mas demorei para admitir porque não sabia quais os limites da nossa amizade — sussurrei baixinho, tentando não tremer e criar coragem. Olhava para o asfalto coberto de flores amarelas esmagadas, ouvia os carros passando enquanto caminhávamos na calçada. — Mas também gosto de você — confessei num lapso súbito de coragem, levantando os olhos para ela. — Eu gosto muito de você, tipo, muito mesmo. Eu sei que você não pensa nas pessoas de maneira sexual, e eu não me importo com isso. Só queria saber se... tem alguma chance de ser recíproco. — Mal conseguia respirar, zonza.
Priscila parou na calçada, um pouco chocada, e eu parei na frente dela, aflita por uma resposta. Ela me encarou por um momento, piscando, processando.
— Eu pesquisei sobre diferentes tipos de atração — disse ela, cuidadosamente. Mexeu num cachinho de maneira nervosa, afofando os cabelos volumosos. — Aparentemente, eu só sinto atração romântica, mas não sexual. Nunca senti. Sou assexual estrita, mas birromântica — complementou com um sorrisinho inseguro. — Pê, desculpa, eu não... não te vejo de outra forma que não minha amiga. — Baixou o olhar e chutou um montinho de flores amarelas, um pouco desconfortável. Eu senti meu coração desabar um pouquinho, mas já esperava por aquilo. Ela nunca dera sinais de que se interessava por mim de maneira romântica.
— Não se desculpe, não tem nada para se desculpar — falei rapidamente, não querendo que ela se sentisse culpada ou triste por isso. — Eu adoro a nossa amizade, de verdade. Você não tem obrigação de retribuir nenhum sentimento, mas gostaria que pudéssemos continuar sendo amigas, se você quiser. — Eu atropelava as palavras por causa do nervosismo, mas percebi que não conseguia viver sem ela, sem a amizade dela.
Priscila sorriu para mim, aquele sorriso capaz de iluminar o mundo. Ela me puxou para um abraço forte e eu afundei contra ela, sentindo seu cheiro suave e sua pele quente.
— Claro, eu amo você, sabe disso, não sabe? — sussurrou, e eu sorri e concordei.
Eu a amava também.
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