CAPÍTULO 4 - Desastrado
Era sufocante. Cada gritou de agonia, cada choro de terror, cada som que saísse daquele quarto era totalmente sufocante.
Elesis olhou para o chão do consultório, tão brilhante quando havia sido antes de ser lavado de sangue fresco e sua noite se tornar aquele terror. Havia abaixado todas as portas de ferro do consultório e acendido as luzes ali de dentro, enquanto seus pelos se erguiam todas as vezes que outro som sôfrego invadia seus ouvidos.
Até que de repente cessaram.
Elesis estava tão acostumada com o som aterrorizante dos gritos daquele cara que só notou algo de errado quando finalmente o silêncio reinou. Ela se ergueu da cadeira a qual estava sentada na recepção, arrastando os pés até aquele último quarto, parte do consultório veterinário ao lado. Suas mãos ainda estavam avermelhadas do sangue que havia limpado quando botou os dedos sobre a maçaneta da porta e a empurrou. Seus olhos percorreram o local, como se tivesse esperando encontrar o cara morto, mas, para sua surpresa, ele estava sentado na maca com o tronco enfaixado e dando um sorriso preguiçoso em direção a Kai.
O par de olhares se voltaram para ela, para o sangue seco grudado em suas mãos. Elesis varreu o local com os olhos, havia um saco de lixo aos pés de Kai, fora isso, não existia nenhum indicio do que haviam feito ali, seja lá o que fosse que tivesse sido feito ali, além dos dois homens que a olhavam com certo interesse.
— Não vai vomitar? – A voz do ferido soou firme para quem, até alguns... Ela não sabia dizer quanto tempo fazia que ele estava ali. Havia certa prepotência em sua voz, como se ele soubesse algum segredo obscuro que a deixava presa em suas mãos e ela não gostava nem um pouco da sensação.
— Não, tenho um horário do dia reservado para isso. Fica entre a faculdade e limpar o sangue que sai das tripas de desconhecidos. Infelizmente, o horário já foi.
Seus lábios se curvaram em um pequeno sorriso, ainda que parecesse totalmente contido. Suas mãos eram grandes sobre a faixa em seu tórax e seus ombros eram largos e musculosos.
— Bem que você disse que ela era atrevida. – Kai deu um meio sorriso, cruzando os braços e recostando na parede. Elesis ergueu seus olhos para ele, enquanto jogava os cabelos brancos para trás, os tirando de cima dos olhos de cobalto.
— Não tanto quanto a pedra que te fez tropeçar e cair em cima de um triturador de carne. Essa é a única explicação para o que aconteceu com você.
Ele deu de ombros.
— Eu sou desastrado. – Foi sua única resposta.
— Desastrado? – rosnou, irritadiça. Pra começo, não sabia o que a deixava mais nervosa, o fato de Kai ter falado dela para alguém ou aquele cara estranho estar lhe encarando com um sorriso nos olhos como se não tivesse cortado ao meio até instantes atrás e ainda estar sendo debochado. — Quem você... — começou, mas seus olhos se voltaram para as faixas que envolviam seu abdômen e depois para Kai, que esperava ansiosamente que ela continuasse. — O que aconteceu com você? Por que vieram para cá? Como é que você ainda está vivo? — Seu tom era autoritário e ela não tentou esconde-lo.
— Aqui era o lugar mais seguro. — Kai respondeu como se fosse óbvio. Os olhos de Elesis queimaram.
— Mais seguro que um hospital? — a resposta veio com um dar de ombros.
— Vamos. — O moreno disse, ficando em pé. Ele não estava nem pálido e aparentemente era plenamente capaz de andar. Como? Ela só queria saber como? Seus olhos acinzentados se voltaram para Elesis e ele fez uma leve reverência, curvando-se como podia. — Obrigado pela ajuda, Elesis.
— A gente se vê. — Kai disse, passando por ela com o saco de lixo nas mãos. Os dois atravessaram o corredor, indo até a porta de metal e a erguendo com facilidade, saindo dali com tanta naturalidade que era assustador.
Elesis encarou o ambiente. Não havia sinal nenhum do que havia acontecido ali, como se um cara tivesse sido costurado de cima abaixo, ou seja lá k que foi que tivessem feito.
Eles haviam ido embora como se aquilo acontecesse todos os dias, lhe deixando tão desnorteada que tudo o que conseguiu pensar foi em fechar a porta do consultório veterinário, pegar sua bolsa em sua sala e correr para casa.
O sangue seco em suas mãos lhe deixava totalmente agoniada, seus pés se forçavam para frente exigindo uma frequência de seus pulmões que eles mesmos não reconheciam. Não soube quanto tempo demorou para chegar em casa até virar a chave na maçaneta da porta na sala de estar.
— El? — a voz de seu pai gritou vinda da cozinha. Eles estavam jantando. — Filha, onde você estava? Já tava te ligando, preocupado.
Seus olhos se voltaram para o sangue em seus dedos.
— Desculpa, pai. Vou terminar o trabalho da faculdade, eu como mais tarde. — disse ao correr para as escadas sem olhar para trás. Pode ouvir sua mãe dizendo algo, mas não entendeu do que se tratava, ainda que parecesse preocupada.
Entrou em seu quarto trancando a porta e jogou suas coisas no canto ao lado da porta. Seus olhos desceram para suas mãos, o sangue seco ainda estava ali, assim como as manchas em sua roupa. Ironwood arrancou-as com destreza, puxando a blusa pelo pescoço, fazendo os cabelos escorrerem para suas costas enquanto deixava as calças pelo caminho até o banheiro.
Ela conseguiu ver seu reflexo pelo espelho. O rosto estava pálido e as olheiras fundas continuavam lhe deixando cadavérica, os cabelos cor de fogo pareciam ser a única coisa viva em si, assim como o sangue que ia até seus cotovelos finos demais. Seus ombros estavam ossudos, os braços pareciam gravetos, os seios que foram muito mais fartos agora eram somente uma sombra do que foram um dia, seus joelhos estavam muito aparentemente, assim como seu quadril, os ossos se mostrando embaixo da fina camada de pele. Sua barriga estava reta, suas pernas finas, seu colo fundo e desnutrido. Só de olhar ela conseguia ver que a perda de peso estava cada vez pior, mas não era isso que ela reparava e sim nas manchas rubras em suas mãos.
Se voltou para a cortina da banheira, a arrastando em um puxão, abrindo a torneira e se enfiando embaixo da água que descia pelo chuveiro. Ela estava muito mais fria do que gostaria, mas se acostumou com o choque assim que ele lhe atingiu.
Observou a ponta de seus dedos, a água rosa que vinha por seus cotovelos, descendo por sua mão e pintando pela ponta da sua unha em direção a porcelana branca da banheira, se misturando a água que corria por seus pés até o ralo. Era incrivelmente familiar e só de observar seu corpo queria entrar em colapso.
Suas mãos tremeram ao pegar o sabonete e esfrega-lo sobre sua pele, o rosa se misturando e subindo tão rapidamente que era quase como se nunca tivesse existido, mesmo que o cheiro permanecesse e lhe provasse que não estava ficando louca.
Respirando fundo, observou o trabalho concluído. Limpa dos pés a cabeça, empurrou o fecho do ralo para o buraco e viu enquanto a água que descia do chuveiro enchia a banheira. Seus joelhos fracos se curvaram enquanto ela se sentava e o abraçava, a água descia mais quente agora, caindo sobre suas costas e molhando os cabelos que começavam a se misturar ao seu redor.
Fechou os olhos, recostando-se na banheira, deixando o calor aquecer seu corpo e tentar relaxa-lo, ainda que parecesse tão difícil.
Seus olhos começaram a pesar até se fechar, o calor da água lhe embalava e o cheiro de sangue parecia ficar cada vez mais longe.
Teve forças somente para erguer os braços e fechar o registro assim que a água cobriu seus seios.
Sabia que uma hora ela iria ficar fria e se arrependeria de ter feito aquilo, mas ela não tinha forças. Não tinha forças para entender o que havia acontecido aquele dia, para entender o que estava acontecendo com a sua vida, para chorar, se lamentar, viver seu luto como alguém "normal", não tinha forças nem para manter a comida no próprio estômago. Só se deixou levar pelo carinho da água na sua pele enquanto seus olhos se fechavam.
Sentiu quando a água começou a esfriar, seus dedos embaixo d'água já estavam enrugados. Sentiu ter visto até o mesmo brilho azulado da noite passada, o reflexo cor de cobalto quase familiar lhe envolvendo por alguns instantes, a água esquentando novamente e o cansaço tirando o que restava da sua força de vontade antes de render.
XXXXXXX
A janela aberta mostrava a cidade animada logo abaixo, as luzes das janelas e até mesmo a música que vinha de algum lugar. A noite estrelada recaia e a brisa noturna fazia as cortinas balançarem.
Seus olhos saíram da reconfortante imagem para a cama de dossel a sua frente. O tecido transparente também balançava a deixando ver partes da pessoa deitada nela.
Suas pernas avançaram com urgência até ali, quase desesperada para estar próxima. Ela conseguia ver com detalhes o seu corpo: as pernas torneadas eram grandes, suas mãos quase cediam a vontade desesperada de toca-las somente para sentir os músculos rígidos sob sua pele quente. Seu quadril estava tapado pelos lençóis de seda, mas seu abdômen parecia ter sido desenhado em uma pedra de mármore, tão firme e perfeitamente desenhado que parecia surreal, os braços eram tão magníficos quanto, grandes e definidos e as mãos ásperas se arrastaram por cima das suas com intimidade, ainda que estivesse sentada de costas para ele.
— Você já sabe o que deve fazer quando chegar a hora. — A poderosa voz fazia seus pelos se ouriçarem, tão quente que parecia uma carícia sobre seus ombros.
— Não será necessário, nós iremos conseguir. — Ali, sua própria voz era assim, diferente, firme e cheia de si. Poderosa.
Resquícios de um riso ressoou no ar a sua volta. Incrédulo.
— Prometa que não vai tentar salvar ninguém.
— Ninguém ou ele? — a malícia naquela última palavra era quase palpável. O corpo à sua costas se retraiu, acuado. Desde quando ela era capaz de acuar alguém?
— Ninguém.
Foi a vez de ela sorrir, ainda que não fosse um sorriso feliz.
Ele se aproximou, ficando de joelhos na cama, suas mãos de arrastando, ásperas e calejadas, por suas braços e ombros. O beijo depositado em seus ombros, subindo por seu pescoço, era capaz de arrepiar qualquer um, mas não aconteceu.
— Você sabe que eu te amo, não sabe?
Sim, ela sabia.
— Eu também amo você. — Mentiu antes de se deixar ser consumida por seu fogo.
Seus olhos pesaram e quando voltaram a se abrir, estava de novo em seu inferno. Kai gritava para que ela corresse, o espectro sorria dizendo que havia ganhado e quando tentava avançar antes de que ele encostasse naquela coisa brilhante, reconheceu outro rosto.
Era o amigo de Kai, o moreno cortado ao meio que lhe olhava a beira da morte. Ela sabia que ele sofria, tinha visto aquele mesmo olhar mais cedo naquele mesmo dia.
O cheiro do sangue chegou ao seu nariz e ela pulou na cama, desesperada e ofegante. Estava pronta para vomitar de novo, mas a ânsia não veio. Respirou fundo, contendo o desespero enquanto tentava assimilar onde estava.
É um sonho, disse para si mesma, somente um sonho.
A luz que vinha da penumbra da sua janela dizia que já tinha amanhecido. Apertou o peito, sentindo os cabelos molhados sobre seus ombros e observou o quarto. A sua frente, o espelho mostrava seu corpo nu e os seios aparentes, dizendo que havia saído da banheira e se jogado diretamente na cama, mesmo que não fizesse ideia de como havia feito isso.
Jogou-se contra os travesseiros, puxando o edredom. Respirando fundo, ela se ajeitou e tentou voltar a dormir, sem vomitar pela primeira vez em dias.
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