.24: Um Ato de Misericórdia
O cheiro da pólvora e da fumaça é bem mais atrativo do que o dos esgotos onde os sobreviventes estavam se esgueirando para não terem que lidar com os perigos do lado de fora e agora isso é inevitável. De dentro do beco, Kelly é o primeiro da fila, segurando tão firme a escopeta Mossberg 590, que as veias dos seus pulsos saltam por baixo da pele. O suor começa a banhar o seu rosto e pequenas partículas de sujeira se grudam nos braços musculosos e no rosto repleto de linhas de expressão. O gigante é como se fosse uma parede que protege os outros seis que estão atrás dele, também armados com escopetas, fuzis de assalto e rifles de precisão. Logo atrás de Kelly, Dylan destrava a AUG-A3 com mira óptica de zoom 2x, que pegou do arsenal e começa a caminhar até a saída do beco, de onde é possível ouvir com mais clareza, os tiros, explosões, xingamentos e gritos de agonia.
ㅤㅤㅤㅤEle, Kelly e Lydia são os primeiros a terem o vislumbre de um cenário pior do que quando eles chegaram na cidade. Logo nos primeiros segundos, um grupo formado por três homens e duas mulheres é alvejado por uma rajada constante de tiros, que destroem os restos da vidraça de uma loja do outro lado da rua larga, com quatro faixas. Há muita fumaça cinza dificultando a visão deles. O cheiro de carne queimada começa a se mostrar presente e, mesmo que eles não possam ouvi-los, ainda conseguem ver as silhuetas trôpegas, vagando atiçadas pela grande poluição sonora e também pelo cheiro de carne humana fresca, mas sem terem muita atenção por parte dos vivos.
ㅤㅤㅤㅤ— Ali! Por ali!! — vocifera um homem magro, de boné e lenço vermelho cobrindo o rosto. Ele está atrás de uma barricada de concreto, que nada mais é do que o pilar do teto de um banco que desabou. — Joguem os molotovs pra abrir caminho!
ㅤㅤㅤㅤLogo em seguida, um trio de pessoas vestindo roupas grossas e blusas enroladas em seus rostos acendem chamas em garrafas e as jogam na direção da frente inimiga. De imediato, gritos podem ser escutados, seguidos por ordens de recuo.
ㅤㅤㅤㅤ— Avancem!!! — o mesmo homem de antes sai da sua cobertura, armado com uma MP5 e abre fogo contra os que estavam fugindo. Os outros três o acompanham e eles perseguem seus inimigos.
ㅤㅤㅤㅤTendo assistido toda a cena, os sete sobreviventes neutros enfim deixam o beco, seguindo na mesma direção que os outros combatentes foram e andam com pressa até acharem um novo refúgio atrás de um ônibus capotado. De lá, eles podem ver que há dezenas de canibais vindo em sua direção, pelo outro lado da rua.
ㅤㅤㅤㅤ— As coisas aqui tão bem feias — diz Elizabeth, olhando as silhuetas esfarrapadas ainda a uma distância segura deles.
ㅤㅤㅤㅤ— E nada deles dois por aqui. — Jason firma a Scarl-L de Sarah, inclinando o corpo para fora da cobertura, vendo apenas chamas e fumaça.
ㅤㅤㅤㅤ— Devem ter ido para outra rua — sugere Yumi.
ㅤㅤㅤㅤ— Se for esse o caso, é só irmos pra onde tá tendo mais tiro. O problema é que só tem isso por aqui... — comenta Abraham, passando a mão na testa suada, tirando as mechas do cabelo que grudaram na mesma.
ㅤㅤㅤㅤLogo após esse comentário, os sete podem ouvir uma longa sucessão de tiros disparada não muito longe dali. A mesma é seguida por uma explosão e um cogumelo de fumaça sobe ao céu, podendo ser visto acima do banco de três andares, mas, ainda assim, indicando que a distância onde ocorreu é de mais alguns quarteirões.
ㅤㅤㅤㅤ— Isso foi a Vanessa? — Jason olha para Kelly.
ㅤㅤㅤㅤ— Vanessa? — pede Dylan, confuso assim como os demais.
ㅤㅤㅤㅤ— Longa história — comenta Kelly. — Mas vamos, é por aqui. — ele começa a se dirigir na direção do banco.
ㅤㅤㅤㅤOs demais o seguem, olhando para a direita e vendo que a grande horda de canibais está cada vez mais próxima e já os avistaram, erguendo os braços e rosnando vorazmente enquanto marcham na tentativa de alcançá-los. Entretanto, eles não têm a menor chance contra a velocidade dos vivos e apenas os assistem chegarem no banco e adentrarem outro beco que dá acesso à rua que eles estão buscando.
***
As salas e corredores da Rádio Green Lifes são silenciosas. Os sobreviventes optaram por se acomodarem em uma única sala do terceiro andar, que parece ser uma enorme sala e aula, já que conta com um palco com mesas, além de várias carteiras acolchoadas, que foram postas de lado, dando lugar a lençóis e alguns colchões de ar que Cameron juntou durante suas buscas, para que pudesse os dar para os sobreviventes que chegassem buscando mais informações sobre o mítico Lázaros. Era do pensamento de todos ali, poderem finalmente ter um tempo para descansarem ou até mesmo se planejarem sobre o que fazer nos próximos dias.
ㅤㅤㅤㅤNo entanto, o que aconteceu foi justamente o contrário e agora eles ficam impacientes com o fato de não terem notícias sobre os sete que partiram em uma missão altamente arriscada — pra não chamar de suicida. As únicas que parecem não estarem tão preocupadas assim — ou pelo menos, não demonstram —, são Millie e Stella, que se ocupam usando velhos documentos e papéis que acharam em uma das salas, para fazer aviões de papel e outras dobraduras.
ㅤㅤㅤㅤ— Minha mãe disse que não era pro meu pai ir, mas ele respondeu que não deixaria o tio Dylan sozinho — diz Stella, terminando um aviãozinho com as asas de tamanhos diferentes.
ㅤㅤㅤㅤ— O seu pai é um velho amigo do Dy-- — Millie ainda precisa se acostumar com a ideia. — do meu. Acho que é por isso que eles fazem essas coisas juntos. — ela arremessa o seu avião até uma lixeira posta a dois metros de distância. O objeto bate com o bico na borda de metal e cai no chão, fora.
ㅤㅤㅤㅤ— Que bom que o tio Dylan virou seu papai. — a pequena sorri. — Ele tá mais legal agora, né?
ㅤㅤㅤㅤ— Aham... — Millie pega outra folha e começa a dobrá-la. — Eu queria que ele virasse meu pai há muito tempo. Fiquei muito feliz quando ele disse que queria ser.
ㅤㅤㅤㅤStella arremessa seu aviãozinho e, mesmo voando completamente torto, consegue cair dentro do lixeiro, a fazendo comemorar discretamente.
ㅤㅤㅤㅤ— Só tô triste porque a tia Aurora virou uma estrelinha... eu gostava dela e o tio Dylan também. Mas acho que ele vai voltar a ficar feliz por causa de você.
ㅤㅤㅤㅤ— É, a Áurea faz falta... ela teria sido uma boa mãe. — Millie baixa a cabeça, terminando o avião.
ㅤㅤㅤㅤ— Mas o tio Dylan pode ainda pode achar outra pessoa pra ser sua mamãe, né? — ela a olha.
ㅤㅤㅤㅤ— Stella, por que você faz umas perguntas tão difíceis? — Millie devolve a encarada.
ㅤㅤㅤㅤ— Eu sou curiosa. — a pequena sorri e acerta outro avião no lixeiro. — Oito a três pra mim.
ㅤㅤㅤㅤ— Bom, aí depende do Dylan... não vou ficar dando ideia pra ele. — Millie também acerta o seu avião. — Oito a quatro.
ㅤㅤㅤㅤAs duas ficam mais algum tempo arremessando os aviões de papel no lixeiro enquanto alguns outros do grupo, como Thomas, Mia, Sarah e Ashley, conseguiram dormir, mesmo com o calor forte que faz dentro da sala, que não é amenizado mesmo com as janelas abertas. Com o passar do tempo, as folhas acabam e o lixeiro agora está transbordando de aviões de papel dos mais variados tamanhos. Stella comemora o placar de 186 a 127 ao seu favor, quando vê sua mãe se aproximando, amarrando o cabelo para tentar suportar o calor:
ㅤㅤㅤㅤ— Stella, filha. Você não quer ir lá pra fora comer algo? Aqui tá muito quente.
ㅤㅤㅤㅤ— Tá bom, mamãe. — a pequena se levanta do chão e olha para Millie: — Vem com a gente.
ㅤㅤㅤㅤ— Ah, eu não sei... — a garota olha para Alex.
ㅤㅤㅤㅤ— Tudo bem, Millie. A Stella gosta muito de você. Além do mais, é bom que você come algo também. Se o Dylan for seguir à risca as tarefas de um pai, assim que ele chegar, vai perguntar se você comeu algo. — a mulher sorri, pondo a canhota na cintura.
ㅤㅤㅤㅤ— É que eu... queria ficar um pouco sozinha. Não se preocupa, não aconteceu nada. Só... quero pensar numas coisas.
ㅤㅤㅤㅤ— Claro, tudo bem. Mas o convite tá de pé. Vamos estar naquele jardim.
ㅤㅤㅤㅤ— Tchau, Millie. — Stella se despede acenando com a mãozinha direta e sai da sala com sua mãe.
ㅤㅤㅤㅤAgora sozinha, Millie flexiona os joelhos e abraça as pernas, se encostando na parede, finalmente pensando nos riscos que todos do grupo que estão do lado de fora correm, mas principalmente em Dylan. Logo, o medo de perder o seu agora pai começa a surgir dentro dela. E isso a consome aos poucos.
Um sangrento confronto se desenrola na frente de um pequeno centro comercial que possui uma enorme fachada e, diferente da maioria dos prédios em Daywake, não está com muitas avarias além de marcas de tiros espalhadas em alguns pontos. Já na rua em frente, a situação é completamente diferente: fumaça e cadáveres preenchem o cenário. Tiros são disparados por todos os lados e há muitos gritos de guerra entre explosões e sons de carne sendo dilacerada por balas de diversos calibres.
ㅤㅤㅤㅤParado atrás de uma caminhonete tombada, Orc termina de recarregar a M-249 com sua última caixa de munição e sai da cobertura, já abrindo fogo contra seus combatentes, que não têm chance contra a rajada contínua da metralhadora e os que não são atingidos, buscam refúgio atrás de qualquer cobertura ou simplesmente se jogam sobre o asfalto, ralando-se em cacos de vidro, destroços ou poeira. O que o gigante caucasiano não percebe é que a sua ofensiva possui uma pequena plateia, escondida atrás de uma fileira de carros abandonados e sem utilidade nenhuma.
ㅤㅤㅤㅤ— A gente aproveita que eles tão distraídos e ataca! — Kelly fala em alto e bom tom, mas, apesar disso, devido ao som dos disparos, os demais têm dificuldades de ouvi-lo, apesar de terem entendido a mensagem.
ㅤㅤㅤㅤ— Vamos esperar mais um pouco! — declara Dylan, empunhando a AUG com as duas mãos e observando o confronto.
ㅤㅤㅤㅤ— O quê?! — o grandalhão contesta. — Vai mesmo perder tempo??
ㅤㅤㅤㅤ— Vamos esperar eles se livrarem dos outros! — Elizabeth se intromete. — Ou quer lutar contra os dois e mais um grupo desses arrombados?
ㅤㅤㅤㅤKelly então percebe que o plano faz um real sentido e, mesmo impaciente, assente e fica no aguardo do momento certo, assistindo com os demais a Ny dar início à sua participação: com agilidade e destreza, a ninja avança fora da linha de tiros de Orc e enquanto corre, consegue executar tiros perfeitos nas cabeças daqueles que escolheram os piores locais possíveis para se proteger. Ela ainda consegue atingir — não mortalmente —, alguns dos que estavam mais bem escondidos e estes ou caem no chão, ou tentam fugir, mas dão o azar de serem avistados por Orc e enfim abatidos.
ㅤㅤㅤㅤ— Boa, Orc... — Ny passa as costas da canhota na testa suada e ofega, escutando um resmungo do seu amigo. — Essa cidade tá sendo pior do que a encomenda... vamos procurar um carro que ainda ande e sair daqui. Se ao menos o jipinho não tivesse sido destruído.
ㅤㅤㅤㅤAgora que o ambiente está menos barulhento, os sobreviventes escondidos começam a se aproximar, com exceção de Dylan, que apoiou a AUG no porta-malas do Chevrolet Malibu e levou o olho direito à mira, cravando-a em Ny. Ele a observa por alguns instantes e lhe acompanha enquanto ela caminha até um dos corpos e puxa o ar para dentro dos pulmões, prendendo a respiração e encostando o dedo no gatilho, pronto para disparar.
ㅤㅤㅤㅤFaltando milímetros para que o gatilho seja ativado, o homem que cujo corpo Ny pilharia revela ainda estar vivo e se levanta de uma vez, segurando a mulher pelos braços e já se pondo de pé, pronto para atacá-la de qualquer maneira. O momento em que ele ficou de pé coincidiu exatamente com o que Dylan apertou o gatilho do fuzil e um único projétil calibre .55.6 é disparado, passando rente à orelha esquerda de Ny, que havia inclinado a cabeça pelo susto, qual se intensifica ao ver o rosto do seu atacante explodir em sangue, detritos de ossos e massa encefálica. O tiro eclode na sua nuca, fazendo a cabeça se jogada para trás, junto com o corpo.
ㅤㅤㅤㅤ— Merda! — Dylan vocifera, com os dentes cerrados.
ㅤㅤㅤㅤOrc, que estava se movendo para ajudá-la, cessa seu avanço e se vira, percebendo a quantidade de rostos conhecidos que estavam bem próximos de executarem um ataque surpresa e ruge, erguendo a metralhadora ainda quente e apertando o gatilho. Os sobreviventes precisam buscar refúgio para não serem alvejados. Um pouco mais atrás, Ny se vira e observa o tiroteio, com o rosto sujo de sangue e a cena da morte pausada em sua mente, mas sabe que eles agora estão em novo confronto e que seus recursos estão ficando mais escassos. Isso fica ainda mais evidente quando a pesada arma que Orc porta para de atirar, sem munição.
ㅤㅤㅤㅤ— Orc! Vamos entrar!! Despistamos eles lá dentro! — a loira cata sua AR-15 do chão e começa a disparar, enquanto se move até as escadarias de pedra do shopping.
ㅤㅤㅤㅤDevido a arma usada contra eles ser uma bem menos letal — se comparada com a M-249 —, isso permite que os sobreviventes possam revidar os tiros, mas ainda tendo cautela para não ficarem muito expostos. Abraham dispara duas rajas curtas em Ny, mas ela corre em diferentes sentidos, hora se abaixando e hora saltando, conseguindo se esquivar dos projéteis, enquanto Orc, que recolheu uma AK-47 de um dos corpos, recebe sem sentir nada, alguns tiros das pistolas disparadas por Elizabeth, Yumi e Jason. A dupla consegue transpor as escadas e adentra o prédio pelas portas de vidro, que agora estão apenas com as armações.
ㅤㅤㅤㅤ— Avancem, depressa!! — Dylan passa a bandoleira da AUG pelo peito e começa a correr até as escadas, vendo que a horda de sangrentos que eles viram anteriormente já alcançou aquela rua.
ㅤㅤㅤㅤKelly, Yumi e Elizabeth vão logo atrás do policial, enquanto Lydia, Abraham e Jason fecham a fila, mirando suas armas nos canibais, mas não atiram para pouparem suas munições.
Depois de terem entrado nas instalações do shopping, a dupla passa por dezenas de lojas de roupas saqueadas, com muito do seu estoque espalhado pelo piso embolorado. Ainda há alguns corpos que jazem mortos pelos arredores, ou com tiros nas cabeças ou completamente dilacerados. Desviando de todo e qualquer obstáculo, Ny se dirige até uma sorveteria que ocupa o espaço de duas lojas pequenas, saltando o balcão, enquanto Orc dá a volta no mesmo.
ㅤㅤㅤㅤ— Aqui, aqui! — ela o chama na forma de um sussurro até os fundos do estabelecimento e após adentrarem, a mulher se agacha perto de uma mesa de metal, vendo seu amigo se sentar no chão, com o peitoral subindo e descendo rapidamente. — Orczinho...? Tá tudo bem?
ㅤㅤㅤㅤPela primeira vez desde que eles chegaram em Daywake, Ny está tendo tempo para observar o estado dele, que apesar de resistir como uma rocha aos combates intensos, também está se esgotando rápido. Suas roupas estão repletas de rasgos causados por tiros de calibre .22 ou 9 milímetros. Suas mãos estão calejadas de tanto segurar a M-249 e controlar o coice violento que a arma possui. As axilas e o pescoço estão encharcados de suor e ele se esforça para controlar a respiração, mas seu nariz não o ajuda. Ao vê-lo nessa situação, uma mistura de raiva e tristeza começa a se formar no âmago de Ny, que fica com um semblante sério e pega a AK-47 para si.
ㅤㅤㅤㅤ— Fica aqui, Orc. Eu vou cuidar deles e aí a gente foge. — no momento em que a mulher se levanta, ela sente a pesada mão do caucasiano a segurar pelo braço. — O que foi??
ㅤㅤㅤㅤOrc a solta e tira seu caderno de anotações do bolso da blusa, o abrindo e parando em uma das páginas com mensagens já prontas, apontando para uma e mostrando para Ny:
ㅤㅤㅤㅤ— "Vamos fazer isso juntos"... — ela o encara, com pesar. — Você tem certeza? Eu consigo segurar eles.
ㅤㅤㅤㅤO gigante confirma com a cabeça e se levanta, pegando de volta a kalashinikov, que fica pequena nas suas enormes mãos. Ny assente de volta e os dois se dirigem até a saída da sorveteria, deixando a provisória segurança que haviam encontrado e indo de encontro para o que Ny espera ser o último desse dia horrível.
ㅤㅤㅤㅤOs sete sobreviventes se mantêm próximos, mas com um pequeno espaço aberto entre eles. Todos estão com suas armas destravadas e prontas para atirar, sabendo que é inevitável o fato de que a horda de sangrentos do exterior venha invadir o pequeno shopping. Por isso, eles têm em mente que precisam ser rápidos para encontrar os dois, ou terão problemas para saírem depois.
ㅤㅤㅤㅤ— Prestem atenção nos telhados dessas lojas. A Ny gosta de subir e atacar por cima — diz Jason, segurando uma espingarda de cano cerrado.
ㅤㅤㅤㅤ— Beleza — Abraham o responde e olha para cima, vendo que há um enorme vão entre os tetos das lojas e a cobertura de metal sustentada por vigas e cabos de aço.
ㅤㅤㅤㅤYumi olha constantemente para trás, tentando a todo custo controlar o seu pânico em saber que eles estão sob encalço de centenas de canibais aterrorizantes. Juntos, eles chegam perto de uma fonte que ainda possui água, mas está completamente suja devido à falta de manutenção do lugar, mas algo chama a atenção dela, que o fato do espelho marrom não estar plano, mas sim tremendo, como se um tremor tivesse iniciado.
ㅤㅤㅤㅤ— Gente...? — Lydia chama a atenção dos outros, que começam a escutar passos pesados vindo.
ㅤㅤㅤㅤ— Puta merda!! — Kelly é o primeiro a se mexer após Orc surgir de dentro de uma loja de tênis com duas entradas, disparando contra a fachada de vidro ainda intacta, a espatifando. o afrodescendente atira com sua Mossberg, mas o tiro se espalha e mesmo que alguns detritos atinjam Orc, nada fazem contra o avanço do gigante, que se aproxima rápido e furioso, ficando no meio de Dylan e Abraham.
ㅤㅤㅤㅤO grandalhão esfarrapado é atingido por cinco tiros da AUG de Dylan, antes de acertar o antebraço coberto pelas placas no tórax do policial e o joga para trás. Abraham também tenta disparar, mas é atingido antes pela AK-47 que Orc projetou contra ele, o fazendo errar todos os três tiros da rajada e ir ao chão também. Em fúria, o grandalhão avança contra Kelly, que ao invés de atirar, apenas se prepara para receber o peso do seu adversário, firmando as pernas no chão. o choque entre os dois faz com que o musculoso de colete seja arrastado por cerca de três metros, mas nada que o faça soltá-lo. Yumi e Lydia miram seus rifles contra as costas de Orc, mas são impedidas por Ny, que havia aproveitado a confusão para se aproximar silenciosamente e, no momento certo, segurá-las pelas cabeças e bater uma na outra, deixando-as desnorteadas.
ㅤㅤㅤㅤElizabeth vê toda a cena e investe contra a ninja, pois sabe que se atirar com uma calibre .12 daquela distância, pode atingir quem não quer. Durante sua corrida, ela se pergunta por que diabos Kelly pediu que a maioria trouxesse escopetas, sendo que à longa distância, elas são quase inúteis. Entretanto, esse pensamento é afastado agora que ela tem espaço o suficiente para atirar e ergue a Mossberg 500, no momento em que Ny corre na sua direção. A acobreada consegue efetuar o disparo, mas Ny, por muito pouco, se joga para baixo, escapando do tiro e ainda atingindo a sua oponente com uma rasteira, a derrubando no chão.
ㅤㅤㅤㅤEscutando um xingamento vindo dela, Ny apenas se recompõe e já parte para cima de Elizabeth, se agachando e segurando a cabeça da mulher, batendo-a contra o piso de azulejos duas vezes, lhe tomando a escopeta logo em seguida. A mulher ainda consegue tempo para olhar ao redor e ver que Abraham já estava de pé, pronto para atirar com a M-16, mas ela mira a Mossberg e atira, acertando acima da cintura do homem, que é protegido pelo colete, mas, ainda assim, solta um grito de dor e volta a cair, dando margem para que Ny corra até ele e pise em sua cabeça, também o deixando a ver navios. Logo em seguida, ela olha para Dylan e apesar de o mesmo estar bem diferente, ela o reconhece pela mancha vermelha ao redor do seu olho e as lembranças daquele dia fatídico voltam a lhe perturbar, mas ela sabe que não pode deixar isso a abalar, pois nesse momento, o homem está apontando um fuzil para ela.
ㅤㅤㅤㅤ— Relaxa, camarada!! — afastados da outra briga, Jason e Kelly têm a dura tarefa de lidar com Orc. O peso-pesado desfere dois socos no estômago de Kelly, que ainda o segura e tem as pancadas amortecidas pelo colete à prova de balas. O gigante então segura e aperta os braços de Kelly com toda a força, fazendo-o soltá-lo, mas assim que fica com a coluna reta, Jason salta em suas costas, tentando o sufocar com a espingarda.
ㅤㅤㅤㅤ— Jason, sai daí!! — Kelly imediatamente lembra de como Jacob pereceu e então avança contra o caucasiano, lhe dando um soco direto rosto e mesmo sentindo a pancada nos dedos, ele consegue o objetivo que é não o deixar atacar Jason.
ㅤㅤㅤㅤPorém, o golpe também deixa Orc mais furioso e o homem segura Kelly pelo rosto, lhe acertando uma cabeçada tão violenta, que além de quebrar o nariz do bombeiro, também o machuca e ele sente seu próprio sangue escorrer pelo canto da sua boca. Ainda em estado de fúria, o grandalhão chuta a perna do seu rival, o fazendo cair de joelhos e lhe desfere um soco no meio do rosto, machucando ainda mais o seu nariz e o derrubando.
ㅤㅤㅤㅤCom seu principal inimigo temporariamente fora de combate, ele se concentra em Jason, que a essa altura, já o soltou e agora está de pé atrás dele, com sua espingarda pronta para atirar. Todavia, o policial de Clerittown é impedido pela virada brusca de Orc, que bate o braço na arma, fazendo-o errar o tiro e deixá-la escapar das suas mãos.
ㅤㅤㅤㅤ— Puta que-- — Jason tenta recuar para ter tempo de sacar sua Colt, mas é agarrado pelo pescoço, começando a ser sufocado pela pesada mão esquerda de Orc.
ㅤㅤㅤㅤEnquanto aperta a jugular do pequeno homem — comparado a ele —, o caucasiano olha para o outro conflito e vê Ny pisando na cabeça de Abraham após acertar o mesmo com um tiro e, em seguida, arremessar a escopeta contra Dylan, que precisa de agachar para não ser atingido pela arma.
ㅤㅤㅤㅤ— Não devia ter voltado!! — Ny corre contra o policial, que se levanta e usa a AUG como uma defesa contra a cotovelada que ela iria lhe dar. Mesmo sentindo uma pontada de dor no osso, ela não recua da sua investida e dá um gancho de esquerda no abdômen de Dylan, que é protegido pelo colete. — Merda!!
ㅤㅤㅤㅤEla sente Dylan alcançar a gola da sua blusa com a canhota e girar ambos os corpos, usando a inércia para empurrá-la para trás, agora tendo tempo para erguer a AUG outra vez, mas Ny já estava prepara para algo e no momento em que foi agarrada, já direcionou a mão direita até as adagas em sua coxa e puxou uma, a qual arremessa contra o homem, acertando seu antebraço esquerdo. A lâmina perfura o músculo e fica presa no mesmo, fazendo-o perder total estabilidade do fuzil e não atirar. Ela aproveita essa distração para correr contra ele mais uma vez e agora, com caminho livre, lhe acerta um cruzado de direita em seu olho machucado e em seguida, se abaixa, aplicando uma rasteira nas pernas de Dylan, o derrubando.
ㅤㅤㅤㅤ— Eu disse que não devia ter vindo aqui!!! — as emoções oriundas das lembranças do seu maior erro voltam a ganhar força e Ny fica por cima de Dylan, tentando lhe acertar vários golpes no rosto, mas não são concentrados o suficiente para que possam causar algum dano no policial. O que essa cena mais parece é a de um casal cuja mulher descobriu uma traição.
ㅤㅤㅤㅤJason está com o rosto vermelho enquanto tenta inutilmente se soltar da mão de Orc, que observa toda a cena e nota algo peculiar, mas igualmente perigoso: a mulher de traços asiáticos está sentada no chão ao lado da outra que Ny derrubou inicialmente e está segurando uma Glock nas duas mãos, mirando contra a sua amiga. Com um gutural furioso, Orc dá dois passos até uma lixeira de ferro e a pega, jogando-a com toda a força contra Yumi, que é atingida pelo objeto, mas não antes de atirar. Porém, por ainda estar tonta após o choque de cabeças, seu disparo atinge apenas o braço esquerdo de Ny, que sente uma forte dor no seu bíceps e grita, cessando seus ataques contra Dylan.
ㅤㅤㅤㅤVendo sua amiga ferida, Orc está decidido e aperta mais o pescoço de Jason — que está quase perdendo a consciência — e começa a andar até onde a asiática está, mas o que ele não percebe é que Elizabeth havia recuperado uma parte dos sentidos. O suficiente para ir até a AK-47 que ele havia largado quando atacou Kelly e agora está com o gigante inimigo na mira, abrindo fogo contra ele, mas não mais nas pernas ou o tronco. Os cinco disparos atingem e explodem o pé direito de Orc em uma nuvem de sangue jorrante. O caucasiano grita de dor e solta Jason, que cai puxando desesperadamente ar para os pulmões.
ㅤㅤㅤㅤSentindo o sangue de Ny pingar sobre o seu braço direito, Dylan aproveitou que a mulher foi atingida para erguer a destra até o ombro dela e lhe empurrar para o lado, tirando-a de cima dele e agora invertendo o jogo a seu favor. Porém, ele não a ataca pois escuta o grito de Orc e dá tempo para que a mulher puxe a adaga que estava presa em seu antebraço e consiga a cravar em seu ombro esquerdo, atravessando as proteções do colete. Vendo a expressão de dor do homem, Ny vai puxar a arma e golpeá-lo agora no pescoço, mas uma sucessão de tiros e um novo grito de Orc a impede.
ㅤㅤㅤㅤO uivo que Orc dá nesse instante é diferente dos outros que ela estava acostumada a ouvir. Não expressa raiva, um grito de guerra ou um alerta. Pela primeira vez, ela vê como é um gutural de dor vindo dele.
ㅤㅤㅤㅤ— Orc?? — ela solta a adaga presa em Dylan e dá um soco na bochecha do homem, que estava distraído com o gigante mascarado e sai de cima dela, ficando sentado ao seu lado. Ny se vira e apoia-se nos braços. — ORC!!!!!
ㅤㅤㅤㅤA cena que se segue é a do seu melhor amigo cambalear para o lado, permitindo que ela veja Kelly, com o rosto sujo de sangue, se aproximar segurando sua Mossberg 590 com o cano pressionado contra as costas de Orc. Tudo fica em silêncio para ela, que se assusta com o primeiro tiro, que já é suficiente para romper a proteção metálica do caucasiano e este fica paralisado, olhando Ny gritar seu nome enquanto se levanta.
ㅤㅤㅤㅤ— ORC!!!! — ela corre sem se importar com a dor em seu braço e com as lágrimas voando dos seus olhos. Ela se assusta mais duas vezes, que correspondem aos outros dois tiros que Kelly efetua contra o grandalhão, que cai de joelhos e depois vai ao chão, finalmente derrotado.
ㅤㅤㅤㅤKelly mira a escopeta na mulher, que o ignora completamente, mas quando aperta o gatilho, vê que a arma está sem munição. Porém, isso acaba não sendo importante para ele, pois Ny cessa seu avanço, caindo de joelhos ao lado do seu amigo:
ㅤㅤㅤㅤ— Orc!! Não, não... Orc!!! — ela está, completamente, desesperada, tentando virar o corpo do seu amigo, mas lhe faltam forças e ela desiste, abraçando ao redor da sua cabeça e deitando o corpo sobre o dele. — Orc, por favor não!!! Eu disse que não devia ter vindo... eu disse... não faz isso comigo...!
ㅤㅤㅤㅤTodos ficam em silêncio. Nem mesmo Elizabeth tenta atacá-la com a kalashinikov e apenas fica de pé, vendo a horda de sangrentos adentrar o shopping, atraídos pela movimentação humana, gritos e tiros. Ainda no chão, Dylan retira a adaga que estava em seu ombro e a solta, sentindo o sangue escorrendo por baixo do colete. Ele respira fundo e fica de pé, pondo a destra sobre a Ranging em seu coldre e a sacando. Abraham já se levantou e ajuda Yumi a se levantar, juntando-se a Lydia. Kelly ampara Jason, que apesar de estar com grandes marcas vermelhas no pescoço, está consciente. Todos observam o policial se aproximar de Ny, que nota a sombra se materializando sobre ela.
ㅤㅤㅤㅤSoluçando descontroladamente, ela ergue metade do corpo e se vira, olhando Dylan mirar em seu rosto com o revólver cor de carvão. Ela não tenta controlar o seu choro e apenas abaixa a cabeça, se rendendo. Dylan observa a ação da mulher e vê que suas suspeitas estavam corretas. Os olhos dele começam a se encher de lágrimas, ao pensar em tudo o que teorizou e principalmente ao lembrar dos últimos momentos de Aurora. Algo dentro dele não quer que ele aperte o gatilho, mas ele sabe que isso é necessário agora — e não é por causa dos sangrentos que estão se aproximando com seus grunhidos vorazes e sedentos por carne quente.
ㅤㅤㅤㅤRapidamente, ele fecha os olhos, vira o rosto e o som do tiro ecoa por todo o lugar.
***
Uma leve angústia se forma em Millie, por ela estar em um ambiente que não lhe é nada confortável. Porém, ela não aguenta mais ficar parada e agora anda de um lado para o outro, perto da escotilha onde viu Dylan e os demais pela última vez. A claustrofobia que lhe ataca é uma inconveniente companhia, mas ela não pode fazer muita coisa quanto a isso. Ela já pensou algumas vezes em abrir a escotilha e mirar uma lanterna no fundo, mas o cheiro azedo dos esgotos não iria lhe ajudar nesse ambiente fechado. O calor também se faz presente e ela assopra dentro da regata algumas vezes, passando as mãos pelo pescoço suado. Com os pensamentos perdidos no grupo que saiu, ela dá um pulo de susto quando a porta atrás dela é aberta:
ㅤㅤㅤㅤ— Millie! Eles chegaram! — é Ashley quem lhe dá a notícia.
ㅤㅤㅤㅤ— O quê?? Eles não iam entrar por aqui? — ela aponta pra escotilha.
ㅤㅤㅤㅤ— A gente achava isso também, mas eles apareceram na lá na frente. Vem! — ela a chama e sobe as escadas, sendo seguida pela menor.
ㅤㅤㅤㅤAs duas alcançam o piso térreo em minutos e correm por alguns corredores até chegarem no hall de recepção, onde as ripas de madeira que Cameron havia posto nas portas agora foram removidas e os sobreviventes vão entrando. Kelly, Jason e Abraham são calorosamente recebidos por Sarah, Alex e Stella, enquanto Mia recebe Yumi, Lydia e Elizabeth. Amy já estava lá e Millie se aproxima dela, junto de Ashley, notando a ausência de Dylan e isso lhe causa um aperto no coração, que só é aliviado quando ela o vê finalmente entrar e Cameron começa a fechar as portas, com a ajuda de Downs e Thomas. A menina quer ir abraçá-lo, mas não o faz pois o vê carregando o que parece ser um corpo em seu ombro, enrolado em vários lençóis e com uma mancha vermelha na cabeça.
ㅤㅤㅤㅤ— O que é isso? — Ashley tira as palavras da boca de Millie e todos olham para Dylan.
ㅤㅤㅤㅤ— Ele insistiu pra trazer... por isso a gente não usou os esgotos — responde Abraham, cobrindo os olhos de Stella.
ㅤㅤㅤㅤ— É a Ny?? — Sarah desfaz o abraço em Jason e se aproxima de Dylan. — E cadê o Orc?
ㅤㅤㅤㅤ— Ele era muito pesado. Nem se todo mundo ajudasse, daria pra trazer ele — diz Kelly, limpando o sangue do seu nariz com um lenço.
ㅤㅤㅤㅤ— E por que raios você trouxe ela?? — o tom de Sarah se eleva.
ㅤㅤㅤㅤDylan fica em silêncio, ofegante por ter carregado o cadáver por todo o trajeto. Ele olha seu grupo e depois encara Sarah:
ㅤㅤㅤㅤ— Eu não preciso explicar isso. — ele começa a andar, se afastando deles.
ㅤㅤㅤㅤ— Ma-- — Sarah iria o responder, mas sente a mão de Jason a segurar.
ㅤㅤㅤㅤ— Deixa ele, amor. É coisa dele mesmo... — a voz dele sai rouca.
ㅤㅤㅤㅤA militar, assim como os demais, apenas observa Dylan sumir na escuridão, mas Cameron sabe — e alguns outros lembram — que aquele é o caminho que leva ao jardim onde está a torre.
O dia já se despediu, dando lugar a noite repleta de estrelas. Os sons dos tiros e explosões deram uma trégua e o que mais se ouve de qualquer lugar são grilos e alguns outros insetos. Todos do grupo estão reunidos em uma espécie de cantina onde se banqueteiam dos estoques de feijões e outras comidas enlatadas que Cameron possuía na dispensa. O clima é de descontração, apesar de todos já estarem cientes do que aconteceu mais cedo. O único que vai na contramão dos demais é Dylan. O policial teve seus cortes tratados por Ashley assim que ele terminou de enterrar Ny nos arredores da torre. Decisão essa que foi muito questionada por Sarah, mas no geral, ninguém se opôs e tentou impedi-lo de fazer isso.
ㅤㅤㅤㅤEle ainda passou algumas horas agachado de frente ao túmulo da mulher, até ser chamado por Amy para virem comer. A jovem está de frente para ele na mesa, vendo ainda estar pensativo:
ㅤㅤㅤㅤ— Come, Dylan. Você mal tocou na comida. — ela e Millie trocam olhares preocupados.
ㅤㅤㅤㅤ— Eu vou, só tô pensando comigo mesmo.
ㅤㅤㅤㅤ— Tá tudo bem? — a menina o olha.
ㅤㅤㅤㅤ— Tá, tá sim. — Dylan suspira e finalmente começa a comer a feijoada que Kelly preparou com os enlatados.
ㅤㅤㅤㅤDe repente, todos têm sua atenção direcionada para Cameron, que está atrás do balcão da cantina e bateu em uma garrafa de vidro com um garfo:
ㅤㅤㅤㅤ— Sei que é chato interromper vocês durante a refeição, mas quero aproveitar que todos estão reunidos aqui pra falar mais uma vez sobre o Lázaros. Pra que possamos discutir sobre ir pra lá. — o jovem põe as mãos sobre o balcão.
ㅤㅤㅤㅤ— Primeiro que a gente não tem nenhum carro e os suprimentos tão escassos — comenta Sarah. — Isso sem falar, outra vez, da distância.
ㅤㅤㅤㅤ— Eu sei disso, mas podemos recolher veículos dos lugares mais afastados da cidade. Nem toda Daywake é um campo de guerra descontrolado e, de qualquer maneira, nós temos que sair desse lugar em algum momento.
ㅤㅤㅤㅤ— Olha, não importa muito pra onde a gente vá, eu vou acompanhar esse grupo pra onde for — diz Thomas, sentado na mesma mesa que Downs, Mia e Ashley.
ㅤㅤㅤㅤ— Esse Lázaros... Porto de Myev... não vai ser fácil chegar lá, mas também não foi fácil chegar aqui. É uma viagem longa, mas com sorte, não vamos precisar fazer outra depois. — Abraham olha para o cabeludo magrelo no balcão.
ㅤㅤㅤㅤ— Tá sugerindo da gente ir? — indaga Alex.
ㅤㅤㅤㅤ— Fiquei só um dia nessa cidade e já tenho certeza de que semanas na estrada é bem mais seguro do que aqui. — ele encara a ruiva.
ㅤㅤㅤㅤ— Eu tô com o Abraham — Lydia se manifesta, automaticamente fazendo Yumi concordar.
ㅤㅤㅤㅤ— A gente também — anuncia Jason, incluindo além dele, Sarah, Kelly e Elizabeth. — Também tem chance da gente acabar achando um lugar tão seguro e bom quanto esse Lázaros no caminho.
ㅤㅤㅤㅤ— Bom, se a maioria vai... — Ashley sorri e de ombros.
ㅤㅤㅤㅤCameron olha orgulhoso para cada uma das mesas e para na dos Foster, que ainda não se pronunciaram:
ㅤㅤㅤㅤ— E vocês?
ㅤㅤㅤㅤDylan olha para Amy e Millie e ambas confirmam com a cabeça. O único gesto do policial repete esse e Cameron sorri de orelha a orelha.
ㅤㅤㅤㅤ— Ótimo! Vou começar a preparar minhas coisas agora mesmo depois venho aqui explicar o plano. — ele sai apressado da cantina e atravessa a porta que já estava aberta, deixando os demais comendo, embora muitas dúvidas ainda pairem no ar.
***
Todo o grupo teve pouco tempo para dormir depois que Cameron explicou que seu plano era sair durante a madrugada, para não levantarem suspeitas e irem até um pátio de veículos apreendidos para se motorizarem e usar a saída Norte de Daywake. Dando assim, a volta até a Rodovia Interestadual, que leva diretamente para Myev, onde fica o porto de mesmo nome e o Lázaros, seiscentos e doze quilômetros ao Leste. Dylan sequer dormiu — assim como mais alguns —, apenas esperou o horário das quatro da manhã e já estava de pé quando Cameron chegou na sala de aula.
ㅤㅤㅤㅤO grupo lotou bolsas e malas de tecido com tudo o que restava de recursos dentro da rádio. Enlatados, garrafas de água e sucos, pacotes de café instantâneo, frutas em conserva, talheres, pratos e copos de plástico, lenços de papel e umedecidos, além de todo o arsenal do lugar; até o último cartucho de munição. Rádios, pilhas e pequenas baterias também compõe o estoque do grupo. Com tudo pronto, os sobreviventes dividiram as bagagens entre si e até Stella está carregando uma pequena bolsa nas costas, mas recheadas de itens de papel e plástico. Eles se preparam para saírem pelos fundos da rádio e passam pelo pequeno jardim onde Ny foi enterrada. Dylan é o único que olha para o túmulo, chamando a atenção de Millie, que prefere ficar em silêncio.
ㅤㅤㅤㅤPelo seu relógio digital, Cameron vê que já são 04:39 da manhã e abre a saída de emergência nos fundos do edifício, saindo de lá armado com a MP40. Com exceção de Stella, todos carregam armas de fogo com silenciadores ou armas brancas, como facas e bastões. O grupo segue pelas sombras de becos, tentando fazer o mínimo de ruído possível, para não atraírem atenção indesejada. O céu começa a ficar mais claro aos poucos, conforme o tempo e o relógio de Cameron marcam. Às 05:18, ele avista o pátio da delegacia. Entretanto quando se aproxima, suas boas vibrações são duramente abaladas:
ㅤㅤㅤㅤ— Ah, merda... merda, merda, merda!! — ele dá um soco no vento frustrado.
ㅤㅤㅤㅤ— Ei, lembra que não estamos sozinhos aqui. — Dylan se aproxima dele, olhando para o pátio que agora virou um cemitério repleto de carcaças de carros carbonizados.
ㅤㅤㅤㅤ— O que a gente faz agora? — pergunta Amy, segurando um taco de aço com as duas mãos.
ㅤㅤㅤㅤ— Vamos continuar — responde Dylan. — Estamos perto da saída Norte. Vai demorar mais do que o esperado, mas não vamos mais estar na cidade.
ㅤㅤㅤㅤ— Ele tem razão — concorda Abraham, segurando a mão de Stella. — Carro, a gente acha pelo caminho e dá um jeito de pegar. Vamos focar em cair fora dessa cidade.
ㅤㅤㅤㅤ— Certo, vamos logo então. — Cameron se apressa, Dylan vai logo atrás e o grupo inteiro se move.
O sol começa a jogar seus raios sobre as planícies de Finger, já tendo expulsado por completo a escuridão da noite. Os sobreviventes conseguiram deixar os limites de Daywake e agora se dirigem até a Interestadual que deve levá-los a caminho de Myev. Todos caminham um pouco cansados pela péssima noite de sono e também por estarem carregando bagagens pesadas há quase duas horas. Mais atrás do grupo nômade, Dylan deixa a AUG presa pela bandoleira e olha para a frente, vendo Millie parada com as mãos nas alças da mochila.
ㅤㅤㅤㅤ— Por que não tá com os outros? — ele alcança a menina e os dois seguem juntos.
ㅤㅤㅤㅤ— Vim te fazer companhia. E conversar também.
ㅤㅤㅤㅤ— Sobre?
ㅤㅤㅤㅤ— Por que fez aquilo com aquela mulher? A Ny. Achei que você quisesse se vingar a todo custo, não a enterrar.
ㅤㅤㅤㅤA pergunta feita de modo direto faz Dylan suspirar e ter sua mente novamente tomada por pensamentos sobre Ny, Aurora e si mesmo. Mas ele se mantém neutro, pois essas coisas não o abalam na mesma intensidade que antes.
ㅤㅤㅤㅤ— Você não tava lá, quando a Ny matou a Áurea. Não viu o que aconteceu depois. — Dylan solta a AUG, que fica presa pela bandoleira ao redor do seu peito.
ㅤㅤㅤㅤ— E o que aconteceu depois? — ela o olha.
ㅤㅤㅤㅤ— Eu fiquei desesperado ao vê-la morrer, mas depois que me acalmei, pude relembrar com calma de tudo... a Ny não queria ter feito aquilo.
ㅤㅤㅤㅤ— Quê? — Millie fica surpresa.
ㅤㅤㅤㅤ— Ela poderia ter matado a Elizabeth e a Yumi, mas não fez... ela não mataria outra mulher. Mas perdeu a razão. Da mesma maneira que eu perdi quando vi você caída, quando ela te atacou — ele abaixa a cabeça.
ㅤㅤㅤㅤ— Eu lembro disso... um pouco.
ㅤㅤㅤㅤ— Pois é. Eu que ataquei ela. Não gosto nenhum pouco do que fiz e isso ficou me remoendo por um tempo. O mesmo aconteceu com ela... Ao perceber o que fez, ela ficou em choque. Podia ter se virado e me matado, podia ter atacado a Yumi ou a Elizabeth, mas tudo o que ela fez foi ficar parada. O Orc que a tirou daquele lugar.
ㅤㅤㅤㅤ— Então acha que ela não era ruim? Mas a Sarah disse que ela os perseguiu pelo Estado inteiro.
ㅤㅤㅤㅤ— Não sei bem como é essa história, mas, de qualquer forma, já acabou. Não acho que a Ny é isenta de nada. Ela era alguém que cometeu um erro grave e tava sofrendo por isso. Eu vi.
ㅤㅤㅤㅤ— Então não foi atrás dela por vingança?
ㅤㅤㅤㅤ— Uma parte de mim, sim. Eu tava furioso pelo que perdi... a Áurea me faz falta todos os dias, mas acredito que se ela tivesse viva, iria me convencer a não agir dessa forma. Ela era uma pessoa incrível a esse ponto... — ele sorri de canto. — Eu fui atrás da Ny pra ter certeza se o que eu achava era verdade ou não.
ㅤㅤㅤㅤ— Entendi.
ㅤㅤㅤㅤ— Quando o Orc foi morto, eu me vi nela. Desesperada, triste, em choque. Ela realmente o amava, talvez não da mesma forma que eu amava a Áurea, mas o modo como ela agiu.. ela tava sofrendo. Eu a matei não por raiva, ou outra coisa parecida. A matei pra que ela não sofresse assim como eu. Um ato de misericórdia. — ele fica em silêncio e suspira, olhando para baixo. Está prestes a falar algo por Millie estar muito quieta, mas então sente a mão da menina segurar a sua destra e quando a olha, vê que ela está sorrindo para ele.
ㅤㅤㅤㅤ— Você é uma boa pessoa. Tenho sorte de ter você como pai. — seu sorriso aumenta um pouco.
ㅤㅤㅤㅤDylan sorri de volta para a menor e aperta um pouco a sua mão.
ㅤㅤㅤㅤ— E eu de lhe ter como filha. — ele olha para a frente e vê que eles estão se aproximando de uma ponte onde os demais do grupo já cruzaram até a metade e o que lhe chama a atenção é uma mureta com meio metro de altura, feita de concreto e que serve como uma proteção a mais para que carros fora de controle não despenquem. — Ei, você lembra do que me disse uma vez? Sobre quebrar um clima de tensão fazendo algo que te divirta? Bom... o clima não tá tenso, mas pode aproveitar que não tá aparecendo nada.
ㅤㅤㅤㅤMillie olha para a mureta e rapidamente entende o que Dylan quis dizer.
ㅤㅤㅤㅤMais à frente, com o grupo, Cameron decide olhar para trás, por dar falta de Dylan e Millie e vê que os dois estão andando mais devagar, pois a menina está se equilibrando sobre a mureta enquanto segura a mão do policial. Ela pende para os lados algumas vezes, mas é segurada por Dylan, que lhe pede para ter cuidado, e é respondido pelos seus risos, chamando a atenção dos demais, que também os olham. Amy é a que mais se alegra com a cena.
ㅤㅤㅤㅤ— Isso não vai atrasar a gente? — pergunta Cameron, ajustando a alça da sua mochila.
ㅤㅤㅤㅤ— Deixa de ser estraga prazeres, garoto. — Abraham o encara e depois olha para os dois, parando de andar assim como o resto do grupo. — O que você tá vendo ali não são duas pessoas perdendo tempo num mundo de merda. Você tá vendo um pai e uma filha tirando algo de bom num mundo de merda. Não estraga o momento.
ㅤㅤㅤㅤTodos ficam parados, assistindo a esse momento paternal entre os dois, que estão alheios à plateia, por um momento, esquecendo todos os problemas que estão acontecendo. O sol atrás deles ganha mais brilho, indicando o alvorecer de uma nova jornada.
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