.8: Bad Decisions
Os habitantes de Finger tinham muito pelo que se orgulhar do seu Estado. Mas sem sombra de dúvidas, o maior reconhecimento que seu território tem são os quilômetros e quilômetros de linhas férreas centenárias, que foram importantíssimas para a industrialização do Estado e em seus avanços com um dos principais destinos para se viver. Infelizmente, os anos de glória das ferrovias já ficou para trás há muito tempo e alguns poucos trens ainda estavam em atividade, levando cargas que caminhões comuns não comseguiam, para lugares onde as estradas não iam. As coisas apenas pioraram e o advento do apocalipse canibal foi o martelo no último prego do caixão.
ㅤㅤㅤㅤOs trilhos em alguns trechos já estão cobertos por vegetação ou de alguma forma misteriosa, completamente destruídos. Mas ainda servem como um caminho para sobreviventes perdidos e com um mínimo de esperança para continuarem sobrevivendo um dia após o outro. É essa motivação que move um trio que já está cansado de tanto viajar, mas decidiram não parar.
ㅤㅤㅤㅤCaminhando à frente de um casal, Gerald Hamilton segura as alças da mochila cinza em suas costas e pisa com passos firmes na gravilha entre os trilhos. O sol do fim de tarde não castiga sua pele já bronzeada, mas o capuz que cobre seus cabelos pretos como obsidiana impediria isso de qualquer maneira. Atrás de si, ele escuta as conversas um tanto francas do casal que caminha lado a lado e observa por cima do ombro, a bela mulher de cabelos tão escuros quanto os seus.
ㅤㅤㅤㅤDurante anos, ele nutria sentimentos secretos por Athena Smith, a policial que sempre ia tomar café em sua lanchonete no centro de Wooksborn, sua terra natal. Mas o pequeno empreendedor nunca teve coragem de se declarar e viu o amor da sua vida ser conquistada por outro: Noah Miller, um contador que havia chegado na cidade recentemente e a conheceu quando teve seu apartamento invadido. Felizmente — ou nem tanto —, Gerald manteve sua amizade com Athena mesmo após o casamento de ambos e até criou uma forte amizade com marido e manteve seus sentimentos guardados.
ㅤㅤㅤㅤMas com o início do surto, a falta do que fazer e o fato de agora passar 24 horas por dia ouvindo a voz doce, mas firme de Smith, está difícil de manter essa máscara de desinteressado amorosamente. Porém algo lhe diz que esse sentimento é recíproco em Athena. Os dois se aproximaram bastante nos últimos meses, principalmente no inverno e a relação dos dois parece mais forte do que nunca, ainda mais pelo fato dela e do marido brigarem com certa frequência desde que o apocalipse começou.
ㅤㅤㅤㅤ— Ei, pode olhar o mapa de novo? — Gerald agora se atentava a Noah, que segura com a mão esquerda, a bandoleira da espingarda em suas costas. — Tá quase anoitecendo... quero ver se vale a pena continuar andando até a civilização mais próxima. — ele para de andar e se vira para os dois.
ㅤㅤㅤㅤ— Meus pés tão me matando. Seria bom achar um lugar pra descansar mesmo. — Athena solta a mão do esposo e se senta em um dos trilhos, massageando o pé direito por baixo da bota.
ㅤㅤㅤㅤNoah tira a espingarda e sua bolsa das costas, se agachando e abrindo a mesma para tirar o mapa, que fica analisando por alguns instantes.
ㅤㅤㅤㅤ— Nós já passamos pelo entroncamento... tem uma estação ferroviária no caminho agora. Eu acho que conseguimos chegar lá, talvez já de noite. Mas vai ser melhor do que dormir ao relento aqui. — Noah olha para o amigo e ajusta os óculos no rosto. As lentes do homem eram grossas, dado o seu grau elevado de miopia. Os cachos grandes também caiam sobre a testa, a cobrindo.
ㅤㅤㅤㅤ— Tá bom, então vamos continuar. — Gerald coça a barba e apoia a destra no revólver em seu coldre, olhando o caminho adiante e o sol começando a sumir nas árvores adiante.
A caminhada dos três perdura sem maiores problemas, a não ser pela cada vez maior, falta de iluminação. O sol já se pôs e tudo o que resta é um céu alaranjado que está perdendo espaço para o azulado da noite. Eles possuem lanternas, mas da última vez que as usaram para viajar, quase foram vistos por um grupo de pessoas que não pareciam nada amistosas, principalmente por causa de seus coletes sujos de sangue e pela conversa que trocavam sobre terem sido humilhados por um grupo “baldado” de sobreviventes e que quando tiverem outra chance, iriam acabar com a raça de cada um deles. Felizmente, o trio não foi visto por eles, que logo foram embora.
ㅤㅤㅤㅤEssas preocupações começam a tomar conta de Gerald. Ele pensa novamente em como vai ser horrível ficar fazendo a vigia durante a noite, enquanto Smith e Noah dormem agarrados. Queria ele estar no lugar do amigo. Tudo o que passava pela sua cabeça, de alguma forma, era associado a mulher. E isso o fazia ficar distante de tudo o que acontecia. Apenas a voz dela era capaz de lhe tirar desse transe.
ㅤㅤㅤㅤ— Gerald! — como de praxe, era Smith quem o tirava de seus pensamentos.
ㅤㅤㅤㅤ— An? — ele se virou e olhou o casal, se dando conta de que havia andando alguns metros alheio aos chamados deles, que estavam parados o encarando.
ㅤㅤㅤㅤ— Tem uma casa aqui, vamos dar uma olhada. — Noah aponta para a sua direita.
ㅤㅤㅤㅤGerald volta para se juntar a eles, vendo o que não havia percebido antes: uma pequena trilha entre as árvores que leva até um casebre de madeira construído mais ao fundo. Ele fica sem palavras por um instante e apenas olha o amigo, confirmando com a cabeça.
ㅤㅤㅤㅤ— Tá bom. — ele saca o revólver do coldre e caminha até a trilha, com Noah ao seu lado preparando a espingarda e Smith fecha a fila, destravando sua Beretta.
ㅤㅤㅤㅤOs três chegam no jardim arruinado na frente da casa de varanda e podem ver uma caminhonete Chevrolet 3100 castigada pela ferrugem e com os quatro pneus murchos rodeados por grama alta. As portas da casa estão abertas e Noah toma à frente, caminhando até a mesma. Smith olha para baixo e percebe que pisou em uma boneca de pano velha e suja, mas ignora isso.
ㅤㅤㅤㅤNoah assobia na porta e mantém o dedo no gatilho da Mossberg, pro caso de precisar, mas tem nenhum outro som como resposta e decide entrar sem dizer nada.
ㅤㅤㅤㅤ— Cuidado — pede Smith.
ㅤㅤㅤㅤAquela fala da mulher faz Gerald a olhar discretamente. Podia ser apenas um pedido comum, mas também um pedido de uma esposa preocupada. Aquilo o deixava confuso, mas sabia que não podia se distrair com esses pensamentos particulares e também entrou na residência abandonada — ou que pelo menos eles esperam que esteja assim.
ㅤㅤㅤㅤ— Ah, merda...
ㅤㅤㅤㅤEssas são as primeiras palavras que Gerald escuta de Noah assim que entra na residência de dois andares. O barbudo caminha até a sala e encontra seu amigo parado diante do tapete mofado da sala de estar, onde dois corpos estão deitados claramente há muito tempo. Estão raquíticos; em algumas partes, a pele podre está colada aos ossos. A mãe e a criança pequena estão lado à lado.
ㅤㅤㅤㅤ— Caralho... — Gerald se aproxima e guarda o revólver no coldre, permanendo em silêncio por alguns instantes e quando ia falar, Smith lhe rouba as palavras:
ㅤㅤㅤㅤ— Vamos tirar elas daqui. — a mulher assusta os dois, que a olham. — Esse lugar não é dos melhores, mas duvido que achemos algo melhor antes da noite cair de vez.
***
O céu coberto por nuvens colabora para que a noite seja ainda mais escura, embora o frio não seja um grande problema nessa situação. Os três ainda tiveram tempo para fazer uma limpeza básica no casebre após colocarem os corpos encontrados nos fundos, em um pequeno quintal. Durante a exploração no pequeno imóvel, Noah encontrou o que talvez seja o maior achado do trio em semanas: um armário repleto de bebidas. No início, eles desconfiaram de que todo aquele estoque de whisky e vinho pudesse ainda ter um dono, mas todas as circunstâncias lhes fizeram ter a confiança de que aquilo agora era deles — além de ter lhes dado um ótimo motivo para comemorar um pouco.
ㅤㅤㅤㅤCom suas lanternas apontadas para o teto, eles conseguiram iluminar boa parte da cozinha, local escolhido por eles para se reunirem — evitaram a sala de estar por motivos óbvios — e a limparam inteira, para podem beber, mas sempre com o cuidado de não fazerem barulho.
ㅤㅤㅤㅤ— Aí… isso aqui é a melhor coisa do mundo. — sentado em uma cadeira e rindo, Noah Miller toma um grande gole do whisky e estala a língua, mostrando sua satisfação em estar bebendo. — Seria ótimo se em toda casa que a gente entrasse, tivesse um armário assim.
ㅤㅤㅤㅤGerald escuta as risadas do amigo já alterado e esboça um sorriso, olhando o pequeno copo em suas mãos. Eles usaram as próprias bebidas para lavá-los e não gastarem sua água.
ㅤㅤㅤㅤ— Você não devia beber tanto, Noah... — embora diga isso, Smith também já está com a cabeça girando, sentada no chão próxima se Gerald. Seu casaco está em algum lugar pela cozinha e uma regata marrom a cobre, deixando apenas os braços nus. Ela segura uma garrafa que está com menos da metade do conteúdo.
ㅤㅤㅤㅤ— Ah cala a boca, mãe — Noah fala com a voz embriagada, mas suas risadas cessam. Ele aparenta estar sério, mas o óculos torto e o cabelo bagunçado não o ajudam. — Você pensa que manda em mim-- — ele soluça. — …mas não tá com nada.
ㅤㅤㅤㅤNesse momento, é como se uma faísca surgisse e desse início ao incêndio dentro de Smith. A mulher abre os olhos e os direciona ao esposo, mas diferente dele, sua expressão de fúria não é mascarada pelos cabelos na frente do rosto. Pelo contrário, isso a torna mais assustadora.
ㅤㅤㅤㅤ— Eu não tô com nada?? Eu sou sua mulher, seu filho da puta cretino! Você deveria me respeitar e me tratar bem, não me mandar calar a boca! — Athena se levanta e parece que vai arremessar sua garrafa contra Noah, mas Gerald, que é o menos embriagado dos três, a segura e lhe impede.
ㅤㅤㅤㅤ— Ei, calma aí! — ele lhe tira a garrafa e a segura pelos braços sem muita força. Por um momento, ele sente e macies da pele da mulher que ama em segredo, mas se atenta ao que é mais importante assim que Noah começa a rir.
ㅤㅤㅤㅤ— E o que eu venho fazendo durante os últimos dois anos, Athena? Ein?? Eu fui o melhor marido que você podia imaginar e agora você me agradece negando o que eu sou? — ele também se levanta, mas deixa o copo sobre a mesa.
ㅤㅤㅤㅤ— Para com isso, cara. Não podemos fazer barulho — pede Gerald, segurando Smith que, embora tente, não aplica força o bastante para se soltar dele.
ㅤㅤㅤㅤ— É a maluca aí que tá pirando, amigo. — Noah ri novamente. — Toma umas doses e já age toda alterada...
ㅤㅤㅤㅤ— Vai se foder! — a voz da mulher é exaltada e Gerald cobre sua boca com a mão, a impedindo de continuar gritando.
ㅤㅤㅤㅤ— Calma criancinha... sei que o doce acabou, mas não precisa ficar esperneando. — o cacheado ergue o dedo do meio para a esposa e sorri.
ㅤㅤㅤㅤ— Já chega, cara! — Gerald solta Smith e vai ele mesmo até o amigo, abaixando a sua mão e o encarando: — Você que tá provocando ela, porra! Se tem uma criança aqui, é você! Agora cala a porra da boca antes que atraia os mortos pra gente!
ㅤㅤㅤㅤ— Você também quer crescer a voz pra mim, Gerald?
ㅤㅤㅤㅤOs dois homens ficam em silêncio, se encarando tensamente. Smith fica parada, parecendo ter recuperado um pouco de seu estado sóbria teme que uma briga maior entre os dois possa acontecer, mas tudo o que ela escuta a seguir são mais risadas de Noah.
ㅤㅤㅤㅤ— Ah, cara... quer saber? Vocês arruinaram minha noite. — ele se afasta de Gerald e pega duas garrafas cheias que estavam na mesa, caminhando para fora do cômodo logo em seguida. — Eu vou beber bem longe de vocês, seus putos. Até amanhã! — e sai dando as costas para eles.
ㅤㅤㅤㅤOs passos que Noah deu nos degraus de maderia logo cessaram, seguidos pelo som de uma porta sendo fechada. Após isso, o silêncio caiu como uma pedra sobre os dois que ficaram na cozinha. Gerald suspira de alívio por tudo aquilo ter passado sem maiores problemas e olha para Smith por cima do ombro, vendo a mulher tirar o cabelo da frente do rosto e se abanar com a destra, dando alguns passos sem rumo e logo parando.
ㅤㅤㅤㅤ— Você tá legal?
ㅤㅤㅤㅤ— Tô, né? O que posso fazer? Pegar minhas coisas e ir pra casa dos meus pais? — ela ri ironicamente.
ㅤㅤㅤㅤGerald avista ali uma oportunidade. Ele caminha na direção de Smith, que não o olha diretamente pois está com a cabeça baixa. O homem respira fundo e a olha fixamente.
ㅤㅤㅤㅤ— Ele não devia tratar você assim.
ㅤㅤㅤㅤ— Me conta uma novidade, Gerald.
ㅤㅤㅤㅤ— O que quero dizer é que... ele não-- você não merece um idiota que nem ele te tratando como uma qualquer.
ㅤㅤㅤㅤSmith ergue o olhar. Gerald fica imóvel, nervoso pois a feição da mulher não é de raiva ou estranhamento. É um rosto triste, carente, decepcionado por tudo o que está acontecendo.
ㅤㅤㅤㅤ— Smith, eu... eu quero fazer o que o Noah não é capaz. Eu--
ㅤㅤㅤㅤO homem não tem tempo de concluir seu pensamento. Smith fica na ponta dos pés e aproxima seu rosto do dele, culminando no beijo de ambos. A sensação é indescritível para Gerald, que sente o calor do momento, o gosto do álcool na boca da mulher o embriaga de emoções. Ele fantasiou com esse momento por anos, Smith era a protagonista em seus sonhos e agora está os tornando realidade. Agora ele sequer pensa mais em Noah ou no que ele faria caso os flagrasse nesse momento. Ele começa a tomar as rédeas da situação e mantém Smith em seus braços enquanto beija seu pescoço, ouvindo a respiração da mulher pesar em sua orelha.
ㅤㅤㅤㅤEla, por sua vez, se entrega por completo àquilo. O álcool parece tornar tudo melhor e ela leva as mãos a cintura do homem, desafivelando seu cinto. Gerald não faz nenhum movimento para impedí-la, se sente cada vez mas envolvido, excitado, contente por finalmente tê-la. Ele gira com ambos e se curva para erguê-la pelas coxas, a sentando sobre a mesa com cuidado para não machucá-la ou fazer barulho.
ㅤㅤㅤㅤEntre beijos, carícias e peças de roupa sendo jogadas no chão, os dois se veem arfando com a movimentação do coito. Sem camisa, Gerald sente o corpo quente nu de Smith em contato com o seu, suas línguas dançam durante mais um beijo intenso. Nenhum dos dois quer parar com aquilo. Enquanto ela se deita na mesa e prende a cintura de Gerald com as pernas; enquanto ele passeia com as mãos pelo seu corpo esbelto, os dois esquecem completamente todos os problemas que lhes levaram a cometer tal pecado.
***
O sol da manhã invade por pequenos buracos no teto e nas paredes, criando feixes concentrados de luz e iluminando as partículas de poeira que flutuam pela cozinha. Um desses feixes incomoda os olhos de Smith, que desperta estranhando a posição em que seu corpo está. A primeira coisa que ela nota logo após sua cabeça lhe avisar forma de dor que ela está de ressaca, é um antebraço abaixo do seu pescoço. A mulher de cabelos pretos e ergue o tronco com pressa e percebe que está nua. Assustada, ela olha para trás e vê Gerald dormindo.
ㅤㅤㅤㅤ— Ah, não… merda, merda, merda!! — ela se levanta e começa a procurar por suas roupas.
ㅤㅤㅤㅤAos poucos, Gerald também desperta e sente sua cabeça latejando. Ele também se dá conta de que está sem roupas, mas se alarda bem menos do que a mulher que vê se vestindo rapidamente enquanto se senta em uma cama feita com lençóis velhos no chão.
ㅤㅤㅤㅤ— O quê… — ele passa as mãos no rosto e põe o cabelo para trás. — Bom dia. — e olha para a mulher.
ㅤㅤㅤㅤ— Bom dia? — Smith o encara assim que termina de abotoar sua calça jeans. — Que bom dia, droga?? O que a gente fez? — ela rapidamente veste sua blusa.
ㅤㅤㅤㅤ— Olha... só sei que fizemos... e foi muito bom.
ㅤㅤㅤㅤ— Cala a boca, Gerald. — a morena pega a calça dele e lhe joga. — Eu sou casada, porra. Você esqueceu??
ㅤㅤㅤㅤ— Mas... aquilo de ontem.
ㅤㅤㅤㅤ— Não fala, por favor! — ela ergue a mão esquerda e põe a destra na cabeça dolorida. — Só se veste antes do Noah aparecer.
ㅤㅤㅤㅤEm silêncio, Gerald se conforma e começa a se vestir. Assim como Smith, ele odiaria ter que explicar que ele perdeu. Que seu lugar agora seria assumido por um homem disposto a fazer sua amada feliz.
ㅤㅤㅤㅤAssim que Noah desceu as escadas, com uma ressaca tão grande quanto a deles, a primeira coisa que fez foi ir até Smith e se desculpar pelo que disse. Entretanto, o clima de desconforto já estava agravado e a mulher apenas lhe disse que estava tudo bem e que o álcool “os fez cometerem loucuras que jamais fariam se estivessem bem”. Essa frase foi claramente entendida por Gerald, que passou o resto da manhã com a cara fechada. As únicas palavras que disse foram para responder ao pedido de Noah para eles vasculharem as redondezas antes de deixarem o casebre, a fim de procurarem por mantimentos.
ㅤㅤㅤㅤAthena Smith não tomou partido em ir com eles. Sua cabeça estava a ponto de explodir com a ressaca aliada ao peso em sua consciência. Não sabia como contar isso a Noah — nem se deveria contar. Tudo o que ela queria é poder voltar no tempo e impedir que tudo aquilo tivesse acontecido. Agora ela apenas se despede dos dois homens que se embrenham na floresta. Quando eles não podem mais ser vistos, ela adentra a residência e pega uma das garrafas d'água com uma pequena toalha, subindo ao segundo andar.
Noah caminha mais à frente, lutando contra a forte dor de cabeça. Ele se arrepende de ter bebido tanto. Quando acordou, quase caiu ao pisar em uma das garrafas vazias que estavam no quarto onde ficou. Algumas árvores à sua frente parecem girar, os sons dos pássaros parecem cornetas, a luz do sol parece um farol de LED. Tudo parece maior do que ele realmente vê ou escuta, menos uma coisa: o silêncio de Gerald.
ㅤㅤㅤㅤ— Fala comigo, cara. Não me deixa achar que tô alucinando nesse mato — diz ele, soltando o gatilho da espingarda para coçar os olhos por baixo do óculos.
ㅤㅤㅤㅤ— Eu tô bem aqui com você. — Gerald não queria isso. Ele queria estar com Smith. Nada consegue tirar da sua cabeça a recusa da mulher depois da noite alucinante de amor que eles tiveram. Ele lembra dos momentos, dos gemidos, do calor humano, mas tem que parar por um momento pois começa a sentir o sangue descer para a sua pelve.
ㅤㅤㅤㅤ— Olha, eu também tenho que me desculpar com você. — Noah chega à margem da floresta, sentindo a brisa agradável da manhã refrescar seu corpo suado. — Eu fui um puta babaca ontem de noite.
ㅤㅤㅤㅤ— É, você foi. — Gerald também sai da floresta e pode ver, mais adiante, uma retroescavadeira cercada por vegetação e um monte de terra que parece estar começando a se transformar em um morro.
ㅤㅤㅤㅤ— Sim, eu mereço o esporro. Acho que o álcool me fez pôr pra fora as merdas que eu não queria dizer. — Noah também percebe a máquina abandonada e fica mais atento, caminhando na direção da mesma. — Eu amo a Smith, cara... aquela mulher é sensacional; a mulher da minha vida.
ㅤㅤㅤㅤCada elogio que Noah Miller faz à esposa, também aumenta a raiva que nasceu dentro de Gerald, que acha isso completamente ridículo; ele agora querer falar bem da mulher que tratou tão mal há apenas algumas horas. As dobras de sua mão começam a doer conforme ele aperta a coronha do seu revólver.
ㅤㅤㅤㅤ— Esses últimos meses têm sido difíceis, cara. Mas eu ainda a amo. Não queria que estivéssemos passando por essa fase... Espero que a gente encontre um lugar bom logo, pra que possamos nos entender. Voltar um pouco ao que era antes.
ㅤㅤㅤㅤUm nojo sobe na garganta de Gerald, mas ele permanece neutro conforme eles se aproximam da retroescavadeira. Sons de grunhidos os alertam, mas não há nenhum infectado próximo que eles enxerguem, mas Noah é o primeiro a entender:
ㅤㅤㅤㅤ— Cacete... — ele para a uma distância segura da borda de uma grande vala com cerca de dois metros de altura e com mais de dez canibais sujos de terra presos lá dentro. — Mas que porra tavam fazendo aqui? — Noah olha para a retroescavadeira vazia e com as janelas sujas, entregando mais ainda que aquilo foi feito há muito tempo.
ㅤㅤㅤㅤGerald não dá ouvidos ao seu inimigo; é isso que Noah é para ele agora. Alguém que precisa sair de jogo para não atrapalhar a sua vida ao lado de Smith. Vida essa que vai ficando cada vez melhor à cada passo sorrateiro que ele dá na direção do cacheado. Ganha força quando ele ergue a mão direita e atinge seu primeiro clímax assim que a coronhada atinge o topo da cabeça de Noah, o desequilibrando e fazendo-o cair para a frente, escorregando na borda da vala e despencando para junto dos mortos-vivos.
ㅤㅤㅤㅤ— Mas que porra!! GERALD!! — os óculos de Noah se foram e, com eles, a sua visão. Sentindo a cabeça doer mais do que nunca, ele não soltou a escopeta durante a queda e tudo o que vê à frente são vários borrões marrons e cinzas ficando cada vez mais próximos. Vultos que grunhem, rosnam, babam; criaturas famintas que não lhe darão trégua. — GERALD!!! ME AJUDA!! — desesperado, ele aperta o gatilho.
ㅤㅤㅤㅤParado no terreno elevado, Gerald não move um músculo. Ele observa a aflição do seu amigo em atirar. O segundo disparo, assim como o primeiro, sequer atinge a cabeça do infectado mais próximo, mas o joga para trás. Pela sua contagem, restam três cápsulas e mais duas são ejetadas sob os gritos de Noah. Quando a quinta é disparada e nada mais pode ser feito, Gerald se vira e se afasta do que agora é uma cova comunitária. Noah foi enterrado como um indigente desesperado. Os gritos mais altos e o som de carne sendo rasgada, de sangue sendo jorrado, entregam isso. Agora Gerald pode viver sua lua de mel ao lado da mulher que tanto ama.
— Ele o quê?? — Smith pergunta com pavor e supresa. Ela não pode acreditar no que Gerald acabou de lhe dizer.
ㅤㅤㅤㅤ— Nós fomos cercados, Smith. — o barbudo se esforça em sua atuação. — Noah gastou todas as balas da escopeta e os monstros não paravam de vir. Eu escapei por pouco, tentei salvar ele, mas quando me virei, ele já tava sendo devorado... — ele faz uma longa pausa. — Não tinha nada que eu pudesse fazer...
ㅤㅤㅤㅤ— Meu Deus… — Athena se afasta dele e leva a destra à boca, chorando. — Meu Deus...
ㅤㅤㅤㅤ— Ei. — ele se aproxima da mulher e pega em braço com delicadeza. — Eu tô aqui com você. Noah também era meu amigo... não sinto a mesma dor que você, mas me culpo por não tê-lo salvado... — Gerald hesita, mas abraça a morena que enfim desata a chorar. — Vai ficar tudo bem... vai ficar tudo bem...
***
Devido ao último acontecimento, Smith pediu para eles passarem mais uma noite no casebre e a ideia foi prontamente aceita por Gerald, que se manteve o tempo inteiro perto da mulher, que aceitou sua companhia — afinal, é a única que ela dispõe no momento. O dia passou devagar. O apetite de Smith não lhe deixou comer mais do que três barras de ceral antes de ir se deitar.
ㅤㅤㅤㅤGerald estava preocupado com seu amor. Não imaginou que a perda de alguém tão desprezível a afetaria tanto assim, mas lhe daria o tempo que fosse preciso para superar isso. Ele estava se sentindo bem com as aberturas que ela lhe deu, como a de pedir que ele lhe fizesse companhia na cama de um dos quartos ao anoitecer. Agora ambos estão deitados e ela está envolvida nos braços do homem, de costas para ele.
ㅤㅤㅤㅤEntretanto, algo perturba a mente dele. Noah podia ser um péssimo marido, mas ele contava tudo para Athena. Gerald sabia disso; era próximo do casal, conhecia seus costumes e tratamentos. Se ele quer ser melhor do que Noah, ele precisa ser sincero. Mesmo que isso signifique entrar em uma situação tensa com Smith.
ㅤㅤㅤㅤ— Ei a-- — ele pigarreia, quanse deixava seu pensamento falar por si. — Smith? Ainda tá acordada?
ㅤㅤㅤㅤ— Sim... — a voz da mulher é baixa e neutra.
ㅤㅤㅤㅤGerald umedece os lábios e tenta formular as palavras para que encontrar o melhor jeito de explicar para Smith que ele é o responsável pela morte do seu marido.
ㅤㅤㅤㅤ— O Noah, ele... eu o matei. Era melhor ele morto... eu amo você. Amo você desde o primeiro momento que te vi... ele não, ele não era bom pra você. Eu sou. E agora nós podemos finalmente ficar juntos.
ㅤㅤㅤㅤO silêncio toma conta do quarto e isso o preocupa. Porém, ouvir a voz doce dela logo o acalma.
ㅤㅤㅤㅤ— Pra... ficarmos juntos?
ㅤㅤㅤㅤ— Isso, eu amo você, Smith… agora podemos ser só nós.
ㅤㅤㅤㅤO que Gerald não vê é a completa expressão de raiva e nojo no rosto da mulher. Ela não consegue acreditar no que acabou de ouvir e isso transforma sua dor em ódio. Porém, ela suaviza sua expressão e passa a destra no rosto, limpando algumas lágrimas que se acumulavam em seus olhos antes de se virar e ficar de frente para o assassino, mas sabe que não pode fazer nada que lhe dê razões para matá-la também — afinal, ele se mostrou capaz de qualquer coisa. Indo contra qualquer um de seus princípios, ela o encara por alguns instantes sob a luz da lua que penetra pela janela e antes que ele pudesse dizer algo, ela o cala com um intenso beijo.
ㅤㅤㅤㅤIsso é justamente a resposta que Gerald esperava. Que Smith fosse compreensiva e que o sentimento se tornasse recíproco. Ele retribui com fervor e junta seu corpo ao dela, mas logo se deixa ser dominado quando ela põe a perna por cima da sua e gira o corpo, ficando por cima dele. Gerald se sente em um sonho quando a morena retira sua blusa e apenas a recebe com todo o seu amor.
***
Na manhã seguinte, Gerald ainda está tomado pela alegria de ser o único homem na vida de Smith. O êxtase da noite anterior ainda não passou e enquanto ele desperta, um sorriso se forma em seu rosto e ele abre os olhos devagar, se dando conta de que está sozinho na cama. Logo se preocupando, ele ergue o tronco e vê que ela não está no quarto, nem mesmo as roupas da mulher estão no chão — e nem as suas. Estranhando isso, ele desce da cama despido mesmo e sai do quarto.
ㅤㅤㅤㅤ— Smith?? Amor? — ele eleva a voz, mas não tem resposta.
ㅤㅤㅤㅤChamando-a mais algumas vezes enquanto desce as escadas na direção da cozinha, ele dá falta de mais coisas importantes: as bolsas do trio sumiram; nada mais restou lá. Aflito, ele chama alto pela mulher e não tem resposta alguma. Saindo da casa e chegando na varanda, ele para assim que vê seu revólver jogado na grama, junto de um pedaço de papel surrado. Com lágrimas pingando do seu queixo, ele se abaixa para pegar o papel e o desdobra, vendo a única frase ali escrita com lama:
“Se você for esperto, vai saber o que fazer com a arma.”
ㅤㅤㅤㅤEle foca a visão no revólver e o cata da grama, vendo a coronha de madeira ainda suja com o sangue seco de Noah. Agora aos prantos, ele abre o tambor e vê que nele tem apenas uma única bala e isso lhe destrói. Ele não quer acreditar que seu amor se foi, que não o aceitou, que lhe deixou para trás e preferiu viver sozinha. Isso é demais para ele. Sem Smith, ele não é nada. Apenas mais um perdido no mundo. Com as mãos trêmulas, ele encaixa o tambor de revólver e o destrava, colocando o cano da arma em sua boca, realizando assim, o último pedido da sua amada.
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