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.4: Anticure

O outono em Finger traz consigo um verdadeiro espetáculo de cores e cenários durante todos os meses em que o mesmo perdura. As árvores de todo o Estado ganham diferentes tons de laranja e amarelo e quase todos os dias é possível ver enormes grupos de pássaros migrando para o Sul, a fim de evitarem o frio que está por vir, acompanhado de grandes nevascas. Segundo as previsões mais recentes, a iminente estação das neves desse ano será a mais forte da última década. Mas por enquanto, a temperatura ambiente é o bastante para agradar a todos que não tiram férias. O clima frio reúne famílias na frente de lareiras, além de ter a época natalina por vir. Com o inverno praticamente batendo na porta, com certeza o último lugar onde qualquer um gostaria de estar é em uma das inúmeras rodovias que cortam o território estadual.

ㅤㅤㅤㅤNa rota 36; uma das mais importantes rodovias de Finger — uma quilométrica com duas pistas de três faixas cada —, o tráfego está relativamente tranquilo, com poucos veículos trafegando de ambos os lados. Esse é o tipo de viagem preferida do consultor financeiro Edwin Rock, ao volante de sua Land Rover Defender.

ㅤㅤㅤㅤ— Sim, mãe. Eu tô no caminho de casa — o homem responde à ligação enquanto escuta a mesma pelo fone em sua orelha direita. — Sim, tô com o resultado do exame, mas ainda não li. Tá na minha maleta... vou ler quando chegar. — ele observa a pasta de couro no banco de trás. — Claro que é o resultado correto, mãe. Eu vim pra Denverport atrás do melhor profissional do ramo. — Edwin fica em silêncio, ajustando a gravata azul enquanto observa alguns carros do outro lado da rodovia, indo em direção à metrópole. — Certo, também te amo, mãe. Chego em casa daqui algumas horas.

ㅤㅤㅤㅤ— Você não devia falar enquanto dirige... é perigoso.

ㅤㅤㅤㅤA voz feminina chega aos ouvidos de Edwin e o homem caucasiano, com cachos negros e uma barba por fazer olha para a sua direita, vendo uma mulher usando um vestido amarelo bem simples. Ele retribui o sorriso da morena de olhos verdes, que está com as mãos sobre as pernas.

ㅤㅤㅤㅤ— Andar sem o cinto de segurança também, querida.

ㅤㅤㅤㅤ— Eu sei que tô segura com você, meu bem. — o sorriso da mulher aumenta.

ㅤㅤㅤㅤEdwin torna a olhar para a estrada, percebendo que está indo de encontro a um engarrafamento e reduzindo a velocidade da sua SUV, até parar no final da grande fileira de veículos. O homem tenta ver além do carro à sua frente, mas não consegue identificar onde o congestionamento começa e nem o que o causou.

ㅤㅤㅤㅤ— Droga... — Edwin olha o Rolex dourado em seu pulso esquerdo, marcando 17:53; horário local. — Vou chegar em casa lá pelas onze, desse jeito... — pelo retrovisor, ele pode ver outros carros parando logo atrás do seu.

ㅤㅤㅤㅤ— Tudo bem, querido. Pelo menos estamos juntos — diz a morena no banco do passageiro.

ㅤㅤㅤㅤ— Ah, Maria... não sei o que seria da minha vida sem você. — Edwin se inclina para a direita, na intenção de beijá-la.

ㅤㅤㅤㅤMaria também se inclina, mas antes que possam sentir um ao outro, os dois são surpreendidos por uma alta buzina de caminhão. Ao olhar para trás, o consultor financeiro pode ver o pesado veículo se chocando contra os veículos e os fazendo capotarem ou invadirem a pista do outro lado. O homem não tem tempo para reação alguma a não ser tentar agarrar Maria para lhe proteger, mas antes que ele consiga encostar na sua amada, o caminhão da Volkswagen se choca contra a sua Defender, fazendo a traseira do veículo se erguer e capotar sobre o guard rail que separa as duas margens da rodovia. O carro se choca contra outros veículos acidentados e para capotado; com as rodas para cima.

***

Edwin acordar lentamente, como se tivesse encerrado uma agradável noite de sono. Porém, ao se lembrar do ocorrido que o fez ficar inconsciente, ele rapidamente se dá conta de que está de ponta cabeça, preso ao seu banco pelo cinto de segurança. O consultor então se solta do mesmo e cai batendo a cabeça e os ombros no teto do Defender e também sobre o air-bag já vazio, lhe arrancando resmungos de dor.

ㅤㅤㅤㅤ— Maria? Maria?! — ele olha todo o interior escuro da SUV e não acha a mulher.

ㅤㅤㅤㅤAo deixar o veículo com certa dificuldade, ele vê que a noite já afundou Finger e o frio do quase inverno gerou uma fina neblina sobre a Rota 36, que agora é palco de um grave acidente. São dezenas de carros acidentados e, além de não saber onde Maria está, outro fato que preocupa Edwin é não haver um único socorrista atendendo os feridos, levando em conta o tempo que já se passou. Sua cabeça dói e gira devido a um corte no topo da testa e ele tem um caminho se sangue seco até o final do rosto. Embora esteja zonzo, ele identifica um odor pútrido que alcança suas narinas e o faz cobrir o nariz, enquanto os olhos lacrimejam. Ao olhar ao redor, ele pode ver uma silhueta cambaleante se aproximando.

ㅤㅤㅤㅤ— Maria?? — ele se afasta do Defender e caminha até a silhueta, mas para ao ouvir um grunhido parecendo estar misturado com um gargarejo e ver que quem se aproxima dele é um homem trajando um blusa gola pollo rosa e uma calça comprida branca, mas ambas as roupas estão sujas com sangue proveniente de um grande ferimento no seu ombro direito e no tórax.

ㅤㅤㅤㅤO indivíduo caminha e fica sob os feixes de um farol piscante permitindo a Edwin poder ver que uma parte da sua face foi arrancada e os dentes vermelhos estão expostos, enquanto os olhos brancos e leitosos o encaram profundamente.

ㅤㅤㅤㅤO consultor, ao ver o estado em que se encontra o outro homem, começa a andar para trás, mas acaba por tropeçar em um pedaço de pneu de um dos carros e cai sentado no asfalto frio e úmido, resmungando de dor. Seu barulho é seguido por mais grunhidos que vêm de várias direções e ele olha para todas que pode, mas quando se volta para o desconhecido mutilado na sua frente, vê que o homem está perigosamente próximo e já se jogando contra si.

ㅤㅤㅤㅤ— Não! Não! Sai de perto de mim! — Edwin tenta se defender com seus braços, mas o estranho monstruoso consegue se curvar e alcança seu ombro com os dentes.

ㅤㅤㅤㅤO homem cacheado grita ao sentir a mordida lhe arrancar um pedaço da blusa social branca e outro da sua carne. Enquanto a criatura se ergue para puxar a carne, Edwin aproveita para empurrá-lo e jogá-lo para a direita, ficando livre. Em estado de choque, o consultor tenta se levantar enquanto sente o sangue jorrar do seu ferimento, mas cai sentado novamente, agora batendo as costas contra sua Defender virada. Ele olha na direção da floresta à direita da pista onde ele trafegava e pode ver claramente uma mulher usando um vestido amarelo simples:

ㅤㅤㅤㅤ— Maria?? Maria, é você? — ele consegue ficar fica em pé e segue até o guard rail.

ㅤㅤㅤㅤ— Querido, pegue sua pasta! — a voz da mulher é alta. O desespero em seu rosto é evidente.

ㅤㅤㅤㅤ— O... o quê? — ele fica sem entender.

ㅤㅤㅤㅤ— Sua pasta, amor, rápido! — Maria insiste e ergue o olhar para a estrada.

ㅤㅤㅤㅤEdwin então se vira e vê dezenas de silhuetas vacilantes surgindo da neblina e essa visão faz sua espinha gelar. Quando olha novamente para Maria, vê que agora ela corre até a floresta. Mesmo sentindo um forte medo, o consultor corre até a Defender e se agacha na porta de trás, cuja janela está destruída. Sentindo os cacos de vidro perfurando seus joelhos e mãos, ele visualiza a pasta marrom coberta de vidro e estica a destra, pegando a mesma. Quando se põe de pé, ele é surpreendido agora por uma mulher usando um suéter branco. Embora a aparência desta não seja tão horripilante quanto a do primeiro desconhecido, ela também ergue os braços e grunhe, só não alcançando Edwin pois ele projetou seu corpo para a esquerda, desviando da investida e fazendo a mulher cair de cara no asfalto.

ㅤㅤㅤㅤ— Maria! — o homem então começa a correr, saltando o guard rail de metal, mas a tontura o faz bater com a canela na estrutura de metal. Um alto grito de dor sai de si, mas ele consegue se levantar e, cambaleando, alcança o gramado que dá acesso à floresta.

A mordida no ombro de Edwin lateja e espirra sangue conforme ele manca abraçado com sua maleta. Esbarrando em árvores de vez em quando, ele começa a sentir seu corpo queimar e um cansaço extremo o acomete, o fazendo se apoiar em um dos troncos. Ele tosse e ao ver que está cuspindo sangue, seu corpo começa a se tremer de pavor. Suas forças para ficar de pé começam a se esvair e ele caminha mais alguns metros, até parar se sentando próximo de uma árvore, sob uma clareira.

ㅤㅤㅤㅤ— Maria... por favor, querida... onde você tá...? — sua voz sai fraca; a queimação em seu corpo o consome e a dor da mordida em seu ombro é surreal.

ㅤㅤㅤㅤ— Querido? É você? — a voz de Maria sai por entre as árvores e a mulher surge por trás de um tronco, se aproximando do homem.

ㅤㅤㅤㅤ— Maria... — Edwin sorri. — Você tá bem, meu amor...?

ㅤㅤㅤㅤ— Sim, meu bem. Eu tô sempre bem, assim como você imagina sempre. — a morena se agacha e fica na sua frente.

ㅤㅤㅤㅤ— O-o quê? Imaginar? — ele se encosta no tronco, olhando Maria. — Mas... você tá aqui, na minha frente... você é real. — Edwin olha para sua mulher, que não aparenta estar cansada e muito menos ferida. Seu vestido está limpo e seu cabelo, perfeito.

ㅤㅤㅤㅤ— Não, Ed... não sou. Eu só apareço porque você quer que eu faça isso.

ㅤㅤㅤㅤ— Não, não... não... isso não pode... não... — seus olhos começam a se encher de lágrimas.

ㅤㅤㅤㅤ— Abra a sua pasta, querido. Pegue o resultado do seu exame.

ㅤㅤㅤㅤAinda confuso, Edwin olha sua pasta de couro coberta de sangue, jogada no chão de terra e a pega, abrindo-a com as mãos trêmulas. Sujando os vários papéis com sangue, ele encontra o documento que procurava e começa a lê-lo, o pondo sob a luz da clareira. A primeira coisa que ele vê no papel é “Consultório de Psicologia Dr. Ferdinand Rodriguez”.

ㅤㅤㅤㅤ— “Após a realização de seções de com o paciente Edwin B. Rock, foi constatado que o mesmo possui Esquizofrenia, transtorno adquirido provavelmente após a morte da sua esposa, Maria B. Rock, em julho de dois mil e dezoito, em decorrência do câncer de mama. O paciente alega vê-la e conversar com a mesma várias vezes ao dia, mas em dados momentos, ele nega tal afirmação.” — ele encara Maria, parada de pé na sua frente, chorando.

ㅤㅤㅤㅤ— Já fazem dois anos, Ed... mas isso está acabando. Nós vamos nos ver de novo. — a morena de olhos verdes se afasta dele, andando até a floresta.

ㅤㅤㅤㅤ— Maria! Me espera, por favor!! — sua voz se eleva e ao olhar a mulher, ele vê a mesma entrando na floresta enquanto os desconhecidos da Rota 36 surgem, erguendo os braços mortos para lhe alcançar.

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