Capítulo Único
"It's terror time again!"
- Música do Scooby-Doo
Dormir, dormir, dormir... Eu preciso mesmo dormir?
Na teoria, dormir deveria me fazer relaxar, descansar, renovar minhas energias, mas toda vez que eu tento dormir revivo o mesmo sonho, e as mesmas situações que me deixam ainda mais ansioso e irritado do que já estava antes.
Eu poderia escrever mil páginas desse relato resumindo em reclamações e maldizeres os meus lamentos noturnos, mas que importância teria aos leitores se eu não me apresentasse antes?
Me chamo Rodrigo, tenho vinte e dois anos, sou estudante de cinema, e eu convivo com o problema onírico relatado há quase três meses.
Agora que vocês já me conhecem, e estão cientes que irão carregar o fardo desse desabafo pelos próximos minutos e além deles, podemos prosseguir.
Mas essa não é uma história sobre o sonho que eu tento evitar, é uma história sobre o momento que fui induzido a encará-lo.
Tudo começou numa madrugada solitária de agosto. Era sábado, e eu estava caminhando por uma rua escura e silenciosa, invejando os habitantes das adjacências que eram capazes de fechar os olhos e descansar em paz. Eu estava voltando de uma festa, lutando comigo mesmo para permanecer acordado enquanto o sono se misturava com os efeitos das substâncias entorpecentes que eu havia consumido.
Não era a primeira vez que eu tentava inibir meus sonhos. Já tomei ansiolíticos e pílulas, bebi chás das mais diversas plantas, fiz todo tipo de mandinga, até aquelas que não me orgulho, mas nada funcionou. O mesmo sonho continuava me perseguindo, impregnado no fundo do meu subconsciente ou seja lá onde os sonhos são fabricados, e nenhum tipo de magia ou tecnologia poderia tirá-lo de lá.
Continuei minha caminhada à medida que o tempo e o espaço se distorciam. Cada passo me fazia cambalear como se eu andasse com uma perna só, percorrendo metros que se transformaram em quilômetros sem que eu percebesse. Mais de uma vez tentei ver as horas no meu relógio, mas os números sempre apareciam diferentes quando eu olhava, seguindo padrões improváveis. Hoje mesmo, muito tempo depois do ocorrido relatado, ainda me deparo com situações parecidas que desafiam a lógica dos meus sentidos. Enquanto registro esses eventos, muitas vezes preciso revisar a mesma escrita repetidas vezes, pois sempre me perco na coerência verbal dos termos e no emprego do plural e do singular.
Olhando em volta tudo que eu via era o, sempre belo, céu noturno, a lua distante, um manto de estrelas, a calmaria da rua, e dois olhos felinos que me observavam de cima de um muro. Me fixei nesses elementos por um instante, sem perceber os faróis de um carro se aproximando por trás de mim. Tentei manter a calma enquanto continuei minha caminhada arrastada, aprendi da pior maneira que numa situação assim, se fosse um assalto, não vale a pena apressar o passo.
O condutor do veículo parecia claramente interessado em mim de alguma forma, mas não como eu esperava. O carro avançou até estar do meu lado. Aí sim eu apressei o passo, mas o carro continuava me acompanhando de alguma forma, como se suas rodas fossem capazes de flutuar pela velocidade.
Encarei suas janelas escuras quando o vidro começou a se recolher. O próprio carro parecia por si só deslocado do tempo, com seu modelo preto de cadillac vintage, mas os passageiros conseguiam facilmente serem ainda mais excêntricos. O motorista era um homem relativamente baixo e magro, usava um paletó preto e possuía um penteado impecável, tudo nele demonstrava elegância, mas sua principal características era o sorriso, um sorriso largo, cintilante, e que nunca se desfazia. Por essas razões, achei adequado lhe chamar de Senhor Riso.
Mas aquele sentado no banco do carona transparecia ser mais enigmático e interessante que seu companheiro automobilístico. Era um homem alto e magro, de postura tensa e soturna, tinha a pele extremamente pálida e seus olhos espelhavam o céu estrelado em suas orbitas, seus cabelos eram negros e volumosos, e vestia-se com algo que, uma hora, parecia um manto negro e, em outros momentos, parecia um visual punk oitentista. Ele exalava mistério e fantasia em sua presença. Não tinha como definir, era pura magia.
Aquela aparição perpétua me lembrava uma figura mitológica com vários nomes, dentre eles João Pestana, Morpheus, Sandman, ou simplesmente Sonho. Acredito que a denominação "Morpheus" deva ser mais adequada, levando em consideração a repetição que a palavra "sonho" terá ao longo dessa narrativa.
— Quer uma carona? — Morpheus me perguntou, apoiando-se na janela do carro. Seu tom de voz era tão indescritível que aumentou ainda mais o sono que eu lutava para evitar. Era tranquilizante como um episódio de Cardcaptor Sakura.
— Não precisa — Disse. Apesar de minhas projeções vocais se limitarem a uma enxurrada de murmúrios indecifráveis, acredito que deu para entender o que eu quis dizer.
Não me lembro de ter feito qualquer movimento enquanto eu falava, mas de alguma forma fui parar dentro do carro. Quando dei por mim, já estava sentado no banco de trás, entre o motorista risonho e o carona enigmático. Obviamente eu não queria estar ali, mas alguma força invisível me manteve calmo, incapaz de entrar em desespero. Me recostei no banco e observei o carro se mover, transmutando a rua silenciosa em borrões cinzentos nebulosos.
— Você não parece bem, Rodrigo — Morpheus perguntou enquanto me encarava através do retrovisor com seus olhos estrelados. Nunca descobri como ele sabia o meu nome, mas pouco importa. Eu devia está tão doido nessa noite que provavelmente tinha uma faixa com meu nome amarrada na minha testa sem que eu percebesse — Alguma coisa te aflige? Ou seria um sonho?
Não respondi, talvez porque eu não tive tempo, minha experiência surreal começou nesse exato momento. A voz de Morpheus ecoou uma última vez na minha mente, e ainda posso ouvir claramente suas palavras.
— Fale-me sobre os seus sonhos!
De algum modo inexplicável, eu não estava mais naquele carro. Agora eu estava descendo de um ônibus na porta da minha faculdade, acompanhado por vários outros jovens estudantes. O dia estava alegre e ensolarado, as árvores estavam ainda mais belas, acompanhadas pelo divertido canto dos pássaros. Tudo parecia calmo, e muito mais bonito, do jeito que só fica quando nós estamos apaixonados, mas eu conhecia bem aquele cenário, era lá onde tudo começava.
Caminhei até minha sala de aula sem estranhar o fato de não ter encontrado ninguém pelo caminho, nem mesmo qualquer um daquela multidão que desembarcou do ônibus junto comigo. Em compensação, ao chegar ao meu destino, descubro o motivo de seus sumiços repentinos, por alguma razão estavam fazendo uma festa na minha sala de aula. Toda a sala havia sido esvaziada das cadeiras desconfortáveis e da mesa principal, e em seu lugar agora tinha uma pista de dança improvisada onde dançarinos desengonçados bailavam sob um globo de luz ao som de Eurythmics, Desireless, Madonna, Bowie, e outros artistas das antigas com visual andrógeno.
Tinha muita gente nessa festa, todos os meus companheiros da classe de cinema, e alguns outros de todos os cursos imagináveis. Os engenheiros químicos Carbona e Bário estavam lá, junto do veterinário Félix e de uma professora de literatura chamada Felícia. Até mesmo um calouro do nosso curso chamado Lucas havia sido convidado, e trouxe junto seu namorado, um estudante de administração chamado Isaque. E todos esses rostos conhecidos dançavam, dançavam como se não houvesse amanhã, e como se um professor nunca fosse chegar para acabar com a brincadeira.
Victor, talvez aquele com quem eu seja mais próximo, me reconheceu quando eu atravessei a porta e me deparei com a festa. Ele começou a acenar para mim enquanto me chamava aos gritos. Assim que o reconheci no meio da pista de dança, Victor começou a abrir caminho entre os dançantes com empurrões enquanto vinha na minha direção.
— Mano! A festa tá boa para caralho! — Victor disse num tom eufórico e animado, nitidamente alterado por algum efeito psicodélico aplicado no interior daquela sala.
— Deve tá mesmo — Respondi, meio sem vontade. Festas, pessoas felizes e aglomerações nunca entraram na restrita lista de coisas que me interessam.
— Mas podia tá melhor — Victor se jogou por cima de mim, passando o braço sobre meus ombros e me agarrando. Fui pego de surpresa por esse movimento, e instintivamente inclinei meu corpo para trás — A galera tá afim de farinha. Vai lá buscar para a gente.
— Ah não! — Reclamei, conseguindo me largar de Victor — Eu acabei de voltar de lá, sério mesmo que vou ter que andar tudo de novo?
— Vamos lá, vai pela gente — A galera abandonou a pista de dança para espionar nossa conversa sem a mínima discrição. Meu nome começou a ser gritado por eles como uma torcida organizada de time de futebol em dia de clássico — E você não vai sozinho, elas vão com você.
Virei-me, encarando os demônios que assombram minhas noites. Os dois personagens que compunham minha equipe numa campanha que eu nunca quis jogar, e onde o mestre da dungeon claramente me odeia.
Eram duas mulheres, uma mais alta e outra mais baixa. A mais baixa tinha cabelo escuro e curto, trazia em seu rosto um sorriso simpático em contraste com seus olhos claros e suas bochechas rosadas, e vestia um vestido preto semelhante ao uniforme de uma empregada doméstica. Mas ela não era humana, seus olhos tinham tom de ferrugem, seus movimentos eram mecânicos, e dava para ver placas rígidas sobrepostas nos seus braços nus. Por essas características robóticas, sempre me referia a ela como a Boneca de Lata.
A outra, a mais alta, era quem mais me assombrava. Sua aparência não era amigável como a da sua companheira. Ela tinha cabelos negros e armados num penteado rebelde digno de Tina Turner, vestia uma blusa preta despojada e um jeans cheio de intervenções punks, como spikes, rasgos, e até mesmo uma corrente pendurada, além de luvas cinzentas que cobriam suas mãos. Mas o que mais me assustava não era seu figurino, e sim o seu físico, já que a metade esquerda do seu corpo estava completamente apodrecida, num estado tão deplorável que nem mesmo os produtos Ivone poderiam rejuvenesce-la. Seu olho esquerdo não existia, deixando no local uma órbita mórbida e vazia. Havia algo fúnebre nessa garota metade humana metade zumbi que me convenceu a conceder-lhe a alcunha de Desmorta.
— Por favor — Victor sabia que eu odiava a expressão "por favor". Eu não costumo fazer favores para ninguém pois quando eu preciso de um favor todo mundo está ocupado demais para me ajudar, e isso me fez ter que aprender a se virar sozinho desde cedo. Ouvir alguém falar "por favor" com tom de súplica me irritava ainda mais.
— Tá bom! — Eu disse, sem vontade de contra-argumentar num conflito inútil que não me livraria daquela enrascada — Você me deve uma, Victor! — Apontei meu indicador no peito dele e o empurrei, mas Victor não se importou, ele entrou na sala e a festa continuou aos gritos animados dos participantes. Em seguida, estampei minha insatisfação com minha melhor expressão ranzinza e dei meia volta, passando pelas minhas acompanhantes macabras — Vamos meninas! — E elas me acompanharam, sem contestar.
Segurei firme as alças da minha mochila e apressei o passo. O bloco onde acontecem minhas aulas fica do outro lado da faculdade, e mesmo conhecendo todos os atalhos eu sempre achava aquela caminhada demorada e cansativa. E ficou ainda mais cansativa com aquelas duas. A Boneca de Lata não parava de falar um minuto sequer, ela tagarelava sobre absolutamente tudo, sempre conectando um assunto no outro de forma completamente aleatória e irritante. A Desmorta não falava tanto, mas sempre que abria sua boca fétida ela falava o óbvio de uma forma tão sarcástica que dava vontade de morrer. Ter elas por perto me deixava irritado, mas não foi isso que me fez evitar o sono, o pior ainda estava por vir.
— Que merda! você fala muito! — Eu disse para a Boneca de Lata quando ela perguntou pela vigésima vez se a gente já chegou.
— É pior do que criança — Desmorta disse enquanto caminhava com os braços cruzados.
— Cala a boca você também! — Apontei para ela.
— Que garoto mais chato — Desmorta comentou com desprezo, revirando seu único olho.
Coberta de timidez e constrangimento, Boneca de Lata começou seu discurso dramático dizendo que tudo aquilo era culpa dela em meio a uma tsunami de pedidos de desculpas. Quando se cansou de se desculpar, ela propôs um jogo para melhorar o astral de nossa jornada. Desmorta retrucou, nos desafiando para ver quem fica mais tempo sem fazer barulho. Confesso que isso me arrancou um sorriso de satisfação, ela arrancou as palavras da minha boca. No final acabamos fazendo umas adivinhações que nos entreteram por alguns momentos, talvez pelo fato de não serem as adivinhações óbvias de sempre. Apesar do prazer momentâneo proporcionado pela brincadeira, eu não queria estar ali com elas, nessas horas eu fazia de tudo para acordar, mas sempre que eu tentava eu acabava cada vez mais preso naquele mundo distorcido. Era como se fosse uma paralisia do sono ao contrário, eu não estava acordado para perceber que não estava.
Enfim, continuamos nossa caminhada, com a Boneca de Lata correndo alegremente à nossa frente enquanto brincava com pássaros e borboletas com um sorriso estampado no rosto, enquanto eu e a Desmorta íamos logo atrás com nossos passos arrastados. Eu me sentia mais cabisbaixo que aquele rato que foi rejeitado pela lua, pela nuvem, pelo vento e por uma parede, e aquela companhia desagradável me impedia de perceber as belezas naturais à minha volta. Nós estávamos atravessando uma passagem a céu aberto suspensa sobre um grande rio rodeado por árvores esbeltas. Tudo continuava calmo, não havia ninguém por perto, sem carros passando ou estudantes debatendo suas ideologias, até as águas daquele rio imundo pareciam calmas. Eu já escutava os sinais de nossa chegada.
Ao retornar a entrada do campus, me deparei com um cenário bem diferente daquele que eu havia deixado há algum tempo atrás. Agora não estávamos mais num humilde jardim adornado por um pórtico, e sim num tipo de shopping. Tinha um corredor geométrico que eu não sabia onde começava e onde terminava, o piso era a típica lajota lisa de shopping, e as paredes tinham a cor de cinza claro entre as fachadas multicoloridas das lojas com lâmpadas de LED. As lojas representavam o que havia de mais estranho na humanidade, ao invés das famigeradas lojas de departamentos e roupas, as desse shopping vendiam animais mortos, livros de magia, armas encantadas, memórias, e outras mercadorias inexplicáveis.
— O Victor disse que a gente acharia a farinha aqui — Boneca de Lata correu em direção a uma loja de fachada vermelha. Quando adentrei na loja, percebi que na verdade era um estúdio de tatuagem todo equipado. Só havia uma pessoa no estúdio, uma mulher velha e esguia, vestida com um macacão vermelho bem justo em seu corpo repleto de tatuagens místicas. Ela tinha longos cabelos brancos que usava amarrados em fitas verdes, e estava distraída arrumando seu material enquanto um rock n' roll dos bons tocava no interior do estabelecimento.
— Com licença, nós... — Eu disse enquanto me aproximava da mulher, que se virou ao ouvir minha voz. Quando vi seu rosto, senti um arrepio percorrer toda a extensão do meu corpo, eu conhecia bem aqueles olhos azuis profundos. Na vida real, a tatuadora velha dos meus sonhos era uma professora de física que tive no ensino médio, uma bruxa que me tirava de sala por conta de conversas paralelas durante as aulas, mas sem perceber que eu era daquele tipo de adolescente que não falava com ninguém. Sempre achei estranho essas versões alternativas de pessoas conhecidas minhas que apareciam nos meus delírios noturnos. Até onde eu sabia, aquela professora não tinha nenhuma tatuagem em seu corpo, mas sua contraparte onírica possuía desenhos até mesmo nas maçãs do seu rosto.
— Olá Rodrigo, eu estava lhe esperando — A velha disse enquanto passava por mim e se posicionava diante de uma cadeira acolchoada com uma mesinha de lado. Ela retirou um par de luvas plásticas de uma gaveta e as colocou, em seguida começou a mexer em potinhos de tinta. Enquanto isso, Boneca de Lata tentava convencer Desmorta a dançar quando uma música que ela gosta chamada "Enter The Sandman" começou a tocar — Devia ter me avisado que viria, mas eu já deixei tudo preparado.
— Preparado para que? — Perguntei cheio de dúvidas. Ela falava como se nós fôssemos próximos, mas eu não via ela há mais de três anos e esperava do fundo do meu coração não ver ela nunca mais.
— Para a sua sessão — A velha se virou, trazendo em mãos uma máquina tatuadora já ligada. Eu me afastei dela cautelosamente, morria de medo de qualquer tipo de agulha e entrava em pânico só de pensar numa. Depois que comecei a ter esse sonho repetidas vezes, ouvi comentários de familiares alegando que eu costumo gritar enquanto durmo, algo que antigamente não ocorria. Acredito que meus gritos aconteçam devido a essa cena perturbadora.
— Eu não quero fazer uma tatuagem! — Respondi, me esforçando para não gaguejar. Meus olhos focaram nas agulhas vibrando na máquina e na tinta que escorria delas. Uma cobertura de suor frio se formou na minha testa.
— Rodrigo, isso não é sobre o que você quer, é sobre o que você precisa fazer — Quanto mais ela falava, menos eu entendia — E já acabamos por aqui — A velha tatuadora fez um leve aceno indicando meu braço direito. Eu levantei a manga da camisa e me deparei com o desenho de uma pena multicolorida tatuado na minha pele branca. As cores se destacavam bastante, formando um arco-íris em meio aos traços delicados do desenho. Nunca pensei em fazer uma tatuagem antes, talvez por causa da minha aicmofobia, mas essa não precisou do processo doloroso, ela simplesmente surgiu no meu braço. Se as tatuagens da vida real fossem indolores como as dos sonhos, com certeza eu já teria feito várias.
— Que linda! — Boneca de Lata comentou, olhando fixamente para a minha tatuagem de pena. Ela estava boquiaberta.
— É a sua cara mesmo, bem brega — Desmorta comentou na sua maneira característica.
— E aqui está — A tatuadora se virou para uma bancada nos fundos da loja e pegou um saco plástico cheio de farinha. Após receber o pacote, passei-o para a Boneca de Lata e deixei claro que ela deveria proteger aquele saco como quem protege a própria vida — E lembre-se, Rodrigo — Ela colocou as mãos nos meus ombros e me encarou profundamente — Sua alma é um balança onde você deve equilibrar seus vícios e suas virtudes.
— É... Tudo bem — Respondi, me afastando da tatuadora. Eu já estava estressado demais para tentar decifrar uma fala que poderia ser um enigma do Mestre dos Magos. Limitei-me a agradecer e puxar as meninas para fora do estúdio.
Nada de interessante aconteceu durante nosso retorno, a não ser o fato de acabar arrancando o saco de farinha das mãos da Boneca de Lata depois dela acabar derrubando três vezes em meio às suas tagarelices.
Retornamos para a sala de aula convertida em salão de festas e encontramos Victor nos esperando na entrada. Assim que me viu, ele arrancou o saco de farinha das minhas mãos e correu para dentro do salão enquanto agradecia com repetidos "obrigados". Essa expressão eu gostava de ouvir, fazia-me sentir útil.
Os foliões estudantes praticamente atacaram Victor em busca dos farelos sagrados. A farinha logo se tornou uma munição usada naquela guerra para saber quem estava mais alegre. Todos jogavam montes de pó branco uns nos outros enquanto riam, cantavam e dançavam. Foi uma visão divertida, e uma alegria momentânea tomou conta de mim.
Victor retornou da farra todo sujo de farinha e com um sorriso largo no rosto após aquele estranho carnaval fora de época.
— Entra aí mano, vamos nos divertir muito hoje — Ele disse, me balançando pelo ombro.
— Não cara, melhor eu ir embora — Respondi, repleto de satisfação pela sensação de dever cumprido — Tô morto de cansado.
— Ele ainda não está literalmente morto — Desmorta sussurrou para a Boneca de Lata, alto o suficiente para que eu pudesse ouvir e trocar meu sorriso de satisfação por uma expressão de desdém.
— Beleza! A gente se fala depois! — Victor disse antes de voltar para a folia.
Me despedi de Victor com um aperto de mão e fui andando pelo corredor em direção a saída. Porém, após alguns passos, percebi que aquela dupla estranha continuava me seguindo.
— Vocês não precisam vir comigo — Me virei para elas e fiz o possível para me estampar o desejo que eu tinha de me livrar daquela péssima companhia — Já conseguimos a farinha, acabou.
— Nós também vamos embora — Desmorta respondeu com arrogância — E vamos pelo mesmo caminho que você!
Dei de ombros e voltei a andar, teria que aguentar aquela aparência horripilante e aquela baixinha de língua solta por mais algum tempo. Mesmo revisitando esses eventos diversas vezes e sempre sabendo tudo o que viria a ocorrer, nunca deixei de me incomodar com a presença dessas garotas, cuja origem também nunca encontrei alguma explicação óbvia.
O que me surpreendia naquele pesadelo irreal era o fato das coisas mudarem muito mais rápido do que o habitual, como se a realidade estivesse se adaptando às perturbações do meu sono. A faculdade antes parecia vazia, e agora nessa segunda caminhada começavam a brotar do nada pequenas aglomerações em nosso caminho.
Boneca de Lata continuava falando, falando, e falando um pouco mais. Dessa vez ela comentava o quanto Victor era um cara legal, e tenho certeza de que ela não teria essa convicção se convivesse diariamente com aquele chato. Por sua vez, Desmorta estampava em sua cara desfigurada o sorriso de satisfação que havia arrancado de mim anteriormente, ela havia percebido que cada palavra de Boneca de Lata era um gatilho para a enxaqueca que surgiu repentinamente na minha cabeça.
Estávamos numa área arborizada antes da passagem fluvial quando algo chamou sua atenção e ela parou de falar. Aquilo havia gerado em mim um breve período de estranhamento, e acabei olhando em volta buscando a razão de seu silêncio. Até Desmorta pareceu assustada.
Nós havíamos nos deparado com um grupo de estudantes que corria aos berros histéricos, fugindo de um zumbido produzido por algum inimigo invisível. A ameaça logo se revelou, a faculdade havia sido tomada por uma infestação de abelhas assassinas. Elas eram bem maiores que uma abelha comum, deviam ter o tamanho de um carrinho Hot Wheels, e pareciam zangadas e perigosas. Logo percebi o grau de periculosidade delas quando reparei que os estudantes fugitivos já haviam sido atingidos por seus ferrões envenenados, trazendo no lugar do ataque um horrendo inchaço arroxeado.
As abelhas voavam em sentidos aleatórios como se dançassem a dança louca das borboletas, e estavam cada vez mais próximas.
Não demorei para fugir, instintivamente, com meus gritos de horror se confundindo com os das minhas companheiras macabras. Meus olhos corriam mais do que meus pés, analisando as possibilidades do cenário em busca de um esconderijo adequado. Quando eu senti a aproximação do limite onde o medo se torna desespero, finalmente encontrei meu abrigo, uma edificação próxima com a porta aberta. Corri até lá, mas a Desmorta foi mais rápida.
— Sai fora pirralho! Esse é meu! — Desmorta disse enquanto roubava o meu esconderijo e trancava a porta.
— Merda! — Praguejei em meio a todo tipo de xingamentos enquanto batia meu punho contra a porta.
Sem esperanças, olhei em volta, temendo a ideia daqueles monstros alados me alcançarem. Por sorte, ou conveniência onírica, encontrei uma ótima cobertura. Era uma pilha de tijolos cercada por outros dois montes, um de areia e um de cascalho, e estava só a mais alguns metros a frente. Corri até lá e me abaixei atrás da pilha de tijolos, e era um esconderijo perfeito, enquanto eu estivesse agachado ninguém do outro lado poderia me ver, e por isso acreditei que as abelhas passariam voando por cima de mim sem me notarem. Eu tentei relaxar, rezando para que aquele inferno acabasse, mas minha meditação foi quebrada pelos gritos da Boneca de Lata, e me dei conta de que eu não vi para onde ela tinha ido.
Na verdade eu não me importava, e adoraria que as abelhas assassinas arrastassem ela para bem longe de mim, mas os seus gritos não paravam. Não eram gritos de quem está despreparado e se depara com o horror, e sim os brados de quem estava correndo perigo mortal. Levantei-me um pouco, me esforçando para não revelar minha posição, e olhei para trás, facilmente encontrei a Boneca de Lata caída, encolhida, e com milhares de abelhas girando em sua volta. Ela morreria imediatamente se todos aqueles ferrões se injetassem em seu corpo ao mesmo tempo.
— Merda! — Comecei a praguejar novamente quando decidi me arriscar para salvar a vida de alguém que eu já odiava.
Ainda não havia entendido a mensagem da tatuadora sobre vícios e virtudes, mas por algum motivo lembrei disso quando deixei meu esconderijo nos tijolos. Tirei minha mochila das costas e deixei na base da pilha junto com tudo mais que eu trazia comigo, ou seja, minha carteira, meia dúzia de moedas e um chiclete. Em seguida, corri o mais rápido que conseguia em direção a Boneca de Lata e aos carrascos artrópodes.
O que aconteceu depois foi inexplicável. Eu me sentia virtuoso enquanto corria, e um brilho começou a se formar em torno do meu corpo, reluzindo nas mesmas cores estampadas no meu braço. Quando alcancei minha companheira mecânica, senti todas as cores saindo do meu corpo e explodindo à minha volta. Penas mágicas surgiram em meio ao clarão colorido como um campo de força, incinerando as abelhas e afastando todo o mal. Assim como a Boneca de Lata, eu estava maravilhado, sem palavras para descrever aquele fenômeno astral. Parecia algo digno da personificação do delírio. Até a Desmorta saiu de seu abrigo para observar minha aurora luminosa com olhar de incredulidade.
Quando tudo acabou, tudo que sobrou das abelhas foram pequenos montinhos de poeira fumegante em meio a um círculo perfeito de penas multicoloridas. Confesso que me surpreendi com o surgimento repentino das penas, mas eu já sabia de onde elas tinham vindo. Observei minha tatuagem com um novo sorriso de satisfação que ninguém poderia roubar de mim. Ajudei a Boneca de Lata a se levantar e avistei Desmorta se aproximando.
— Que belo show, hein? — Ela comentou em meio a um aplauso desanimado.
— É, foi bem inesperado — Respondi, ainda com o sorriso no rosto, arrancando dela resmungos de raiva. Parece que o jogo virou, não é mesmo?
— Ah! Rodrigo! Você salvou a minha vida! Eu vou ser eternamente grata! Pra sempre! Sempre! Sempre! — Minha alegria durou pouco, a Boneca de Lata voltou a tagarelar. Eu nem reparei que ela, finalmente, havia ficado em silêncio — E o que foi aquilo!? Aquela luz, as penas... Foi tão lindo! Eu amei. Você pode fazer de novo? Você pode né?
Retornei a minha caminhada rumo ao desconhecido conhecido, onde eu já sabia o que esperar, mas não sabia como viria. Dessa vez, Boneca de Lata foi na frente, com seus comentários sobre as abelhas, o céu azul sem nuvens daquele dia, as penas mágicas, minha tatuagem e minha empreitada no altruísmo.
Estávamos de volta na passagem sobre o rio, onde Boneca de Lata se aproximou de uma das margens para apreciar das águas à sua própria maneira. Agora eu estava cansado de ouvir ela falar, minha cabeça voltou a doer, dessa vez a cada nova sílaba que saía de sua boca delicada.
— Você quer né? — Desmorta sussurrou para mim, aproximando-se — Eu sei que você pode acabar com tudo. Vai lá, sem medo, basta querer. Nada vai acontecer com você se você fizer o que quiser. O que te impede, Rodrigo? Vai lá.
Fui tomado pelos meus vícios reprimidos ao ouvir aquelas palavras, como Héracles hipnotizado pela deusa Lissa. Num impulso, caminhei em passos pesados por trás da Boneca de Lata, sem que ela percebesse, e a derrubei no rio com um chute certeiro no seu quadril. Quando dei por mim, seu corpo já afundava lentamente em meio às águas.
Fui tomado pelo arrependimento, sem entender o que eu havia feito, tinha matado alguém que eu acabara de salvar. A balança da minha alma pesava sobre meus ombros, me deixando ofegante e enlouquecido. Senti a mão gélida da Desmorta deslizar pelos meus ombros, agora mais do que nunca eu queria ficar longe dela, mas estava tão chocado pelos meus atos que não conseguia mais me mover. A força oculta que rege todos os sonhos e pesadelos me prendia naquele ponto da existência.
Era ali onde tudo acabava, com tudo sumindo ao ser sugado pela órbita vazia no rosto da Desmorta. Eu acordava ainda com medo, com aquele rosto diabólico preso na mente, me encarando no escuro do meu quarto.
Novamente eu estava no banco traseiro do Cadillac com Morpheus e seu motorista risonho. Meu sono entorpecedor havia sumido, agora eu estava desperto o suficiente para perceber que o carro estava parado em frente a minha casa. O mais estranho é que eu não estava com medo, eu me sentia em paz, como se tirasse um peso das minhas costas.
— É um caso complicado — Morpheus disse enquanto analisava os fatos que até hoje não entendi se foram assistidos, narrados ou lidos — Mas não se preocupe, Rodrigo. Agora você poderá dormir sem preocupações.
Saímos do carro e nos despedimos com abraços, o sono voltava a me embalar novamente, e confesso que depois disso tirei a melhor soneca da minha vida. Enquanto o carro sumia no horizonte, percebi os tons avermelhados do nascer do sol cruzarem o céu, enfim eu estava em casa, e poderia descansar em paz.
De fato, essa foi a última vez que sonhei com a Desmorta e com a Boneca de Lata. Tudo sumiu tão repentino quanto apareceu, e no meu sono não me deparei mais com festas, sacos de farinha, tatuagens e abelhas mágicas. Até tentei contatar psicanalistas para entender o que essas imagens significam, mas nunca cheguei em nenhum resultado produtivo. Talvez algumas coisas não devam se explicar, assim como a humanidade não deva conhecer as forças perpétuas que regem o universo.
Eu escrevo esse relato para registrar aquilo que desaparece aos poucos, sem deixar nenhuma lembrança ou moral de sua história.
Às vezes, até penso em encarar minha fobia e tatuar de verdade a pena colorida em meu braço. Quem sabe ela me seja útil na realidade.
***
— Você acha que sua irmã pode estar envolvida nisso? — O motorista perguntou enquanto guiava a carruagem camuflada para fora do plano físico por estradas que ninguém mais via.
— A Morte não se revela antes do momento adequado — Morpheus respondeu — É só mais um truque do Desejo.
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