Capítulo único
O namorado da minha mãe tentou me estuprar.
Dois anos se passaram desde o ocorrido, para finalmente conseguisse criar coragem para trazer pra vocês a história do que aconteceu.
Meu nome, idade, onde nasci, meus pais e mais será informado ao longo deste conto.
Perdi meu pai e herói com apenas doze anos, recebeu a notícia que seria pai aos dezoito, a namorada com dezenove, no primeiro período da faculdade, porém, não fugiu, levantou as mangas e trabalhou muito para dar o melhor dentro do possível para sua princesinha ou para seu príncipe, seu único desejo, era que viesse com saúde. Trabalhou como garçom, professor de inglês e japonês, vendeu doces na rua com Erika, até que em uma noite chuvosa com trovões, eu, Lauany nasci. Lua, como gostava de me chamar, meu primeiro idioma não foi português como a grande maioria e sim LIBRAS — Língua Brasileira de Sinais — já que fui diagnosticada com surdez moderada — escuto vozes muito baixo como se estivesse abafado — como não tinha dinheiro para aparelhos auditivos, eles aprenderam a língua de sinais para depois ensinar português. Se formou em idiomas, dando aulas particulares, com quase cinco anos, recebi meu primeiro par de aparelhos auditivos fazendo com que escutasse as pessoas perfeitamente.
Todos os dias, falei que amava ele,era o melhor pai do mundo, acho que deveria ter falado mais vezes, quando minha mãe estava na graduação e não tinha tanto tempo para mim, ele me levava junto, os alunos mais velhos faziam a escolta, não era apenas "a filha do professor", mas sim uma pessoa que poderia ensiná-los, isso me deixava muito feliz. Até os alunos mais rebeldes defendiam ele, pois suas aulas cativavam.
O professor é o melhor!
Quero ser como ele quando crescer!
Aprendi japonês com ajuda dele.
Costumavam gesticular constantemente para mim, fazendo-me sorrir. Se tinham dúvidas com libras, perguntavam para mim.
Nos fins de semana, quando saia com seus alunos, me levava junto, nunca me senti deslocada, pois quando os aparelhos incomodavam, eles começavam a gesticular, permitindo-me descansar. O alívio era indescritível, pois os aparelhos incomodavam. Quando era período chuvoso, papai reunia os alunos em casa, em uma espécie de acampamento, ajudava minha mãe a fazer doces, os mais fortes, deslocavam os móveis e as mais velhas ajudavam com a louça. História de diversas culturas eram contadas, principalmente da japonesa, ao qual Leon — meu pai — era apaixonado.
Quando completei doze anos, foi descoberto que ele tinha um tumor cerebral, logo após ir parar no hospital devido a uma convulsão, ali, soube o que era tristeza pela primeira vez. Ele não poderia me abandonar. Minha mãe falou que para ele sobreviver, precisaria fazer uma cirurgia que custava sessenta mil reais. Perguntei se minhas economias davam, respondeu que não, seria aproximadamente o valor de uma casa.
Nunca vi tantos adolescentes e adultos chorando, soluços eram ouvidos no corredor hospitalar, porém, Liara, uma das suas alunas da turma de japonês avançado, teve a ideia de fazer uma vaquinha online, gravar vídeo contando a tragetoria do Leon, pedir ajuda a influenciadores, vender doces, trabalhar na casa dos outros, tudo para que ele ficasse bem. Sem excessão, todos aceitaram. Professores se mobilizaram doando duzentos reais cada um. Deu por volta de dois mil reais.
Pessoas anônimas se mobilizaram doando, alguns influenciadores tiraram do próprio bolso para ajudar nessa causa, porém quando batemos dez mil e duzentos reais, em um mês e pouco, o médico falou que ele tinha falecido. Meu herói perdeu sua primeira batalha.
Ali entendi o que os autores queriam dizer com estar rodeado de pessoas e sentir-se sozinho.
Ajoelhei e ali, pedi com todas as minhas forças a Deus que deixasse ele ficar e me levasse em seu lugar, que meu pai era tudo pra mim, mas, meu pedido não foi ouvido, o médico não voltou para falar que foi um equívoco, que por um milagre ele voltou, nunca pedi nada então decidi dar as costas, o único ser que poderia salva-lo, negou-se, então seria eu por mim mesma. Naquele hospital abandonei minha fé.
O cemitério nunca esteve tão cheio de pessoas desejando os pêsames, me abraçando, seus alunos e colegas, falaram que poderia contar com eles na medida do possível.
Leon Fanton
Nascimento: 02/06/1989
Morte: 08/09/2019
Filho, marido e pai eternos!
Era o que dizia naquela placa, e até hoje, choro só de lembrar.
Tentei devolver o dinheiro, todavia, ninguém aceitou, deixaram comigo, nunca toquei naquela quantia, nem autorizei minha mãe a retirar nada. Iria ser usado para alguma coisa em benefício dos outros e não meu, o dinheiro nunca foi para mim e sim pra ele!
Agora que entenderam a importância que meu pai teve em minha vida e como meu herói deixou esse mundo, posso aprofundar um pouco na frase do início do conto.
Assim que completei treze anos, minha mãe veio me apresentar o Gabriel, seu novo namorado, tivemos uma briga feia pois ninguém jamais iria substituir meu pai e que ela não sofria pela morte dele. Fazia só um ano, será que não doía mais?
Sei que cada um tem sua forma de sofrer, alguns bebem, porém envolver pessoas estranhas, é no mínimo, jogo baixo. Nunca me interessei em conversar com ele, não sabia libras e eu não tinha interesse em usar os aparelhos depois da morte dele.
Ficaram guardados, do que adiantaria usar, se não ouviria sua voz me chamando de "Sua princesa"?
Voltei, tive que sair pois já estava molhando o teclado do notebook com minhas lágrimas e depois de me acalmar, irei prosseguir.
Saia de casa para ir a escola e conversar com Willian ou Will, fizemos amizade depois que ele foi agredido por valentões que se achavam melhores por conta de crenças religiosas. Para mim é ridículo. Não corro de brigas.
Estou te ensinando a lutar, pois princesas também vão para a guerra.
Minha meta é ser faixa preta e dar orgulho a ele. Will, me apresentou Arthur, seu melhor amigo e convenhamos, um pegador de quinta categoria, daqueles que iludem, prometendo ligar no dia seguinte sem ao menos ter pegado seu número. Um dos ex alunos do meu pai, Giovanni, se tornou meu amigo e minha primeira paixonite. Não falei isso, pois poderia ter se aproximado por piedade. E odiaria comprovar que é verdade.
Agora eu estava com quinze anos, Erika, já tinha terminado com Gabriel, não me importei com o motivo e agora namorava Patrick, um cara gentil que me dava livros e chocolate, pedia para que lesse e como incentivo, falava que me traria mais presentes, o único entre todos que coloquei os aparelhos para discutir sobre O morro dos ventos uivantes, que tinha ganhado a um mês. Minha mãe conversou comigo, queria saber minha opinião caso resolvesse se casar com ele, e falei que ele só seria o namorado/marido dela, nada meu. Padrasto seria tipo um substituto para um pai e nenhum pai que é bom e presente, é substituível. Infelizmente, três meses depois, ela chegou em casa falando que tudo tinha terminado e ele trocou ela por uma mulher mais nova e rica. A história ficou muito mal contada, porém não insisti. Só iria estressa-la. Breno foi o terceiro, durou menos de duas semanas, agredi ele porque disse que eu era "Pegavel" e "Seu corpo já aguenta". Nunca tinha me sentido suja ou triste por ser menina. Ele conseguiu fazer isso acontecer. Mas, uma coisa que aprendi, foi a não ficar calada perante isso. Ameacei falar para os amigos do meu pai e ele sabia que não sairia vivo, infelizmente, minha mãe, acreditou nele em vez de confiar na palavra da sua única filha.
O foco dessa história é o quarto, Thiago, apareceu pouco tempo depois que completei dezesseis anos, ela brigava para que eu usasse os aparelhos, querendo me obrigar a conversar com ele, mas, a grande maioria a minha volta falava libras, então não tinha necessidade. Sabe quando logo de cara, não gosta de alguém? Fui eu com ele. Me olhava de cima a baixo, como se fosse um produto em exposição. Comecei a não descer para as refeições, comia qualquer besteira que pudesse pegar da geladeira de madrugada, sabia que não poderia ter essa alimentação por muito tempo, ficar fraca não era opção. Não podia desenvolver anemia.
Mandei mensagem para o Will, contando em partes o que estava acontecendo e ele deu a ideia de uma pequena viagem só nós quatro, no momento pareceu a melhor saída. Qualquer coisa era melhor do que permanecer ali. Arrumei uma mochila, mas, por ser menor de idade, não poderia sair sem avisar ou Giovanni e Arthur poderiam ser acusados de algum crime. Claro que ela autorizou, teria a casa só para ela. Coloquei roupas, materiais básicos de higiene, foto do meu pai, deixei o celular escondido, não queria ela me ligando.
Quando Giovanni veio me buscar, aquele lixo teve a ousadia de falar "Cuida da nossa boneca". Se não puxasse Giovanni para fora, com certeza Thiago estaria morto, só não me arrependo de ter deixado pois não aguentaria ver meu amigo na cadeia. Não suportaria essa culpa. Fomos buscar o Arthur e por último o Will que morava mais longe. Todo equipamento para acampar como barraca, sacos de dormir, isqueiro, comida, estava no porta malas. A viagem durou em média, uma hora e meia. Não nós afastamos tanto da cidade para em caso de emergência, chegar rapidamente ao hospital.
Ali conversamos sobre nossas comidas favoritas, jogos, livros, cantamos, rimos das aventuras do Arthur, não adiantava brigar, ele não tinha solução.
Chegamos e dividimos as tarefas, Will e eu fomos atrás de madeira, os outros dois, ficaram responsáveis pela organização do local. Foi tão bom, poderia ter sido melhor sem os aparelhos, mas como era um lugar novo, preferi ficar com eles. Questões de segurança.
Estava tudo certo até o início da noite quando Thiago apareceu, alegou preocupação porque supostamente tinha esquecido a caixinha para guardar os aparelhos, porém aquela era a reserva e minha mãe sabia disso. Não estava acreditando que ela deixou ele vim e nem ao menos veio junto! Falou que como estava tarde, dormiria ali e quando o dia amanhecesse, retornaria para casa.
Desde sua chegada, não desgrudei dos meninos, ficava de mãos dadas com Will, quando ia fazer suas necessidades, ia para perto de Giovanni. Quando finalmente Will voltou e Thiago se afastou mais, alegando ir tomar banho no rio mais afastado, Arthur teve a ideia de termos um plano.
Posso ser um galinha, mas nunca forcei nenhuma garota à ficar comigo. Esse cara não é confiável.
Foram suas palavras, mas qual seria esse plano? Will por amar músicas, sugeriu usá-las como um pedido de socorro, agora que música nunca cantariamos normalmente?
Ficamos pensando até Arthur sugerir trocar as religiões ou falta delas como um norte.
Eu, Lauany sou ateia, então não cantaria música religiosa.
Escolheram Hallelujah - Pentatonix para mim.
Arthur é católico não praticante, então ficou com música ateísta.
A música escolhida foi: Até Quando Esperar - Plebe Rude
Giovanni é satanista, uma filosofia ateísta, ficou com música umbandista.
Lei da Inquisição - Umbanda
Willian é umbandista praticante, então ficou com música satanista.
Foi escolhido: Legiões Satânicas - Vulcano
Ensinamos rapidamente um trecho da música ao outro, até que ele voltou, dormi perto do Giovanni, como se o mesmo fosse um escudo, desejando que Thiago fosse embora logo. Dava para ter voltado no mesmo dia.
O dia amanheceu e precisávamos comer, não vi Thiago, então, achei que estaria longe àquela altura. Entrei na floresta atrás de alguns gravetos para fogueira, já tinha alguns nos braços quando escutei passos, os aparelhos ajudavam a ouvir, eram passadas cautelosas como se evitassem assustar algum animal, os meninos não fariam brincadeiras de mal gosto comigo, sabiam que tenho pavor de filmes de terror, então…
Cadê você criança, só quero brincar.
O nojo e repulsa me fizeram andar mais rápido tentando equilibrar os galhos, todavia quando ele apareceu na minha frente pegando meu braço, e me olhou de cima a baixo lentamente, puxei com toda força derrubando os gravetos e não pensei na hora, apenas comecei a correr na direção oposta a que ele estava. Cada vez mais me aprofundava naquele lugar desconhecido, até que não vi um tronco caído, acabei caindo, senti algo sair da orelha, não tinha tempo para pegar, usei minha força para pular o tronco e retomar a corrida. As pernas queriam falar, nunca fui amante dos exercícios físicos e esse pode ter sido meu maior erro.
Cadê você boneca? Se não resistir, vai doer menos. Vamos brincar de papai e mamãe.
Não conseguia escutar ele direito, droga, tinha perdido um dos aparelhos. Corro mais até tropeçar em uma raíz, quando me viro ele está próximo. Jamais tentei falar sem os aparelhos, minha voz ficava estranha, ao menos para mim, porém era questão de viver sem um trauma maior.
Quando me viu, acelerou o passo e sem pensar mais, comecei a gritar a letra da música, o mais alto possível.
E não importa onde estiver
No vale ou no monte adorarei
A Ti eu canto glória e aleluia
Aleluia, aleluia
Tentei levantar, senti uma dor incomoda na perna. Se corresse mancando, seria piada e logo me pegaria.
Foi condenada
Pela Lei da Inquisição
Para ser queimada viva
Sexta-feira da Paixão
Giovanni! Sua voz estava mais próxima. Passos como se fosse maratona se aproximaram.
Salve-me!! Tire ele de cima de mim!
Com tanta riqueza por aí, onde é que está
Cadê sua fração?
Arthur! Corre!
Não vão chegar a tempo, tentei me debater muito, Thiago tinha me imobilizado, o medo dominava enquanto tentava me libertar, porém ele logo é jogado para longe de mim.
Meus dois heróis! Lágrimas escorrem freneticamente, enquanto Arthur está em cima dele socando-o sem parar, Giovanni me ajuda a levantar.
Das profundezas das trevas
Os portais do inferno se abrirão.
Cavalguem guerreiros da escuridão
Will aparece cantando enquanto em suas mãos tem uma corda.
Se depender da gente, vai ter justiça por você Lauany! Ele não sairá impune!
Foi o que Arthur disse quando deixou o namorado da minha mãe inconsciente, amarrou seus braços e pernas. Fui para perto do Arthur mancando, enquanto os outros dois carregavam ele. Se não fosse por eles, o pior teria acontecido.
Tinha terra em todo meu corpo, tirei o outro aparelho pois não conseguia mais ouvir as perguntas do Will, sinalizei que não conseguiria ouvi-lo. Concordou, quando chegamos no acampamento, trataram de joga-lo no porta malas, colocando fita em sua boca e amarrando o lugar para que ele não abrisse a mesma. Giovanni ficou ao meu e logo tudo estava nas mochilas, acionar a polícia, levaria tempo devido as explicações que teria que dar.
Vou na frente com duas mochilas e os meninos atrás com as outras coisas, bem apertado, Giovanni acelerou e uma viatura nos encontrou no meio do caminho, Arthur gesticulou apontando para o celular, que tinha falado com eles.
Thiago foi transferido do porta malas para a viatura policial. Fomos direto para a delegacia onde, com ajuda do Giovanni, consegui acusar o namorado da minha mãe de três crimes e um deles de natureza grave.
Foi dada voz de prisão em flagrante e ele ficou na cadeia, eles não me deixaram voltar para casa então fomos dormir na casa do Will, a recepção foi tão calorosa, sua mãe chorou quando soube do ocorrido, me deu um abraço que não sentia desde a morte do meu herói.
Se dispôs a me acompanhar no tribunal e me sugeriu procurar algum ex aluno do meu pai que tenha se formado em direito. Os contatos estavam no celular, não quis ir buscar, Will e Arthur foram já que Giovanni é mais explosivo. Lembro que o delegado perguntou se minha mãe sabia do assédio, respondi que sim, que falei e ela não acreditou em nenhum momento.
A pessoa que te deu a vida, duvidar da sua palavra, é um das piores sensações que já senti.
Talvez ela acreditasse que todos eram bons como meu pai, coisa que não ocorreu. Se em algum momento duvidou de mim, não poderia contestar, afinal testemunhas detalharam o ocorrido.
Eles voltaram com celular, carregador e uma mochila de roupas, estava tomando chá de camomila pois não conseguia parar de chorar.
Choro de raiva, ódio, revolta, nojo, medo.
O que leva uma pessoa a querer violar o corpo de outra? Até hoje não sei e pretendo ficar sem saber.
Acabei dormindo e quando acordei, o celular estava carregado, busquei e enviei a seguinte mensagem em um grupo que estavam todos os alunos para não perder o contato que tínhamos antes do falecimento do meu pai.
Alguém por favor… é formado em direito? Me ajuda, por favor.
Minhas mãos tremiam ao digitar, a cena ficava se repetindo.
Liara foi a primeira a responder e tenho o print até hoje.
Sou advogada voltada à defesa de crianças e adolescentes.
Jairo foi o próximo a se pronunciar, não sabia que ele ainda estava no grupo.
Advogado especializado em divórcio. O que aconteceu neném?
Neném, ele é sete anos mais velho e por isso me tratava quase como filha. Chamei Liara no privado e pedi a mesma para vim ao meu encontro, ficou marcado para o dia seguinte. Não sei como ainda tenho lágrimas, acreditava que tinham acabado no velório do meu pai, mas não acabaram. E possivelmente não vão acabar tão cedo.
O dia seguinte foi cheio pois contei tudo para Liara, ela tirou fotos, colheu depoimentos e os três estavam dispostos a depor contra ele e a meu favor.
Seu pai sentou comigo e conversou diversas vezes, me deu o apoio que não recebi de ninguém e hoje, mesmo ele não estando entre nós, gostaria que eu fizesse o impossível para te proteger. Então é isso que farei.
Pedi para não sair do tribunal quando ele entrasse, mesmo tremendo de medo, ia encarar esse fantasma. Preciso, por mim, ver ele sendo condenado e algemado.
O pior não foi a tentativa de abuso, mas, minha mãe invadindo a casa da família Guimarães, exigindo que eu retirasse a queixa contra seu namorado, que sua vida não deu certo por minha causa, que ela engravidou cedo, o amor dela morreu e seu namorado estava na cadeia. Acredito que só não fui agredida pois Liara se colocou na minha frente e ordenou que saísse e mantivesse distância.
Que culpa tenho? Não pedi para vir ao mundo.
Métodos contraceptivos existem, agora culpar uma inocente por causa do mal caratismo do seu namoradinho, é baixo para uma mulher adulta. Sua prioridade deveria ser a segurança de uma adolescente que ainda por cima tem surdez. Farei você perder a guarda dela, com Liara Guedes ninguém brinca. Agora rua!
Os meninos deram um passo a frente e a mesma saiu, rogando praga pra mim. Foi o que traduziram depois, dei de ombros, ainda me pergunto como meu pai aguentou essa louca.
Liara entrou com o processo por lesão corporal, ameaças, assédio e tentativa de estupro. Por ser menor de idade, entrava o ECA — Estatuto da Criança e do Adolescente — em ação.
Um mês se passou e não sai da casa deles para nada, tive professores compreensivos ao caso, se não teria reprovado no segundo ano. Will trazia minhas atividades, não estava com os aparelhos, não tinha condições de comprar novos, então a família aprendeu libras, o básico para se comunicar comigo, o que foi super gentil da parte deles.
Fui proibida de acessar redes sociais depois das mensagens que recebi.
Ele tem boa índole, é só mais uma adolescente mimada que não aceita que a mãe siga em frente.
Se a mãe diz que a filha está mentindo, eu vou acreditar na mãe.
Só quer chamar a atenção.
Ela pediu, olha que saiu para "acampar" com três homens.
Uma puta querendo dinheiro.
Se arrependeu depois do ato né?
Você merece morrer por querer destruir a vida de um homem de bom coração.
Vadia! Puta! Lixo! Escrota!
Essa é só mais uma mentirosa entre tantas!
Aproveitadora!
Jairo, Jailson, Liara e Fabrício, vieram me visitar constantemente. Ganhei um ursinho de pelúcia do Fabrício, que aliás, está aqui do meu lado enquanto escrevo.
O dia do julgamento chegou.
Medo era a palavra que me definia.
Demorou quase seis meses, pois precisavam disponibilizar um intérprete para mim, o processo seguiu em segredo de justiça até a audiência porque envolvia uma menor de idade, no caso, eu.
Botas, calça jeans e jaqueta, uma pulseira bem final com o símbolo do infinito, foi o que escolhi para vestir, fui percebendo nesse meio ano, que a minha eu sociável, carismática e conversadeira, estava morrendo, odiava esse fato. Fui em um carro com minha advogada e Giovanni até o tribunal.
Fique decepcionada com algumas pessoas, como sabiam que sou surda, escreveram cartazes.
Só mais uma pirralha querendo ferrar o cara.
Justiça por Thiago.
Ela fez e agora se arrepende, por isso tá aqui.
Pessoas não tem senso, falar isso para uma adolescente de dezesseis anos? É cruel.
Liara falou que eu poderia pedir para depor separadamente, porém, não aceitei. Esse tempo que fiquei trancada, recebi apoio psicológico a distância, o que foi essencial para ter coragem de estar aqui.
Policiais fizeram minha escolta, entramos e todos já estavam posicionados em seus lugares. Estou ao lado da advogada e o intérprete toca meu ombro, olho para ele que sinaliza a seguinte mensagem.
Todos pé, juíz chegar!
Estava na hora, fiquei em pé, assim como todos, o juíz entrou e assim que sentou-se, falou algo que não entendi.
Todos sentar!
Obedeço, e o intérprete começa a traduzir tudo, o juíz falou do que se tratava, todos deram seus depoimentos, em libras narrei o ocorrido, respondi perguntas que foram contestadas, outras, do porquê fui sozinha acampar com meninos. Me senti pequena lá dentro.
Giovanni, Willian e Arthur depoem a meu favor, Willian conta que isso não é de hoje, que minha mãe é negligente em relação a minha surdez, que não tinha condições de manter minha guarda pois estava ciente dos assédios, mas dava cobertura para os namorados. Apesar da boa imagem, sabia que ele não era um bom cara, pois nenhum homem que realmente se desse ao respeito, iria fazer comentários a respeito do corpo da filha da namorada. Que quando contei dos comentários, sobre falar que meu corpo "já aguenta", foi a gota de água para ele, então chamou todos para acampar.
E quem garante que a mesma já não tinha tido relação com meu cliente e tentou acusa-lo?
Graças a um pedido de Liara, fomos ao IML — Instituto Médico Legal — e fiz um exame que constatou minha virgindade. O que já derrubou a pergunta do advogado do réu.
Ficamos horas e mais horas lá dentro, entre intervalos e depoimentos, perguntas, protestos.
O esgotamento psicológico é imenso, foi contestado minha palavra, as fotos, meu depoimento, pois o advogado do Thiago, alegou que já que minha mãe não me apoiava, poderia ser mentira, seria uma falsa acusação, portanto falso testemunho.
Leitor, não sei se consigo me alongar mais aqui, mas, tentarei, é que apesar de ter se passado um tempinho, as lembranças ainda são muito presentes.
Todavia, falar que todas as testemunhas presentes estavam mentindo, não era procedente. O julgamento demorou muito, teve o intervalo para o juíz com os jurados, decidir a sentença.
Liara pediu para que permanecesse calma, não quis água, nem nada assim.
Todos pé!
O juíz voltou depois de um angustiante recesso, todos sentaram e após minutos de silêncio, pediu que o réu se levantasse para ouvir sua sentença.
Ele ficou olhando para mim, meu mundo parou naquele momento, e se Thiago fosse considerado inocente? E se eu tivesse que voltar praquela casa? E se as provas e depoimentos não tiverem sido o suficiente para colocá-lo atrás das grades?
Foram tantos "E se…" que senti um leve toque no braço, olhei para Liara que apontou discretamente para o intérprete.
Réu ser condenar acusar cometer crimes
O réu, no caso Thiago, foi condenado por todos os crimes que foi acusado, minha mãe indiciada e culpada como cúmplice disso.
Na hora não acreditei e quando ele tentou vir pra cima de mim, gritando que sua vida tinha chegado ao fim por minha culpa, abracei o intérprete que assustado me acolheu em seus braços, o juíz pediu para os policiais entrarem em ação, logo foi controlado e levado para o presídio, deveria cumprir a sentença determinada.
Mesmo assustada, soltei o intérprete e pedi para o mesmo traduzir para o juíz a seguinte mensagem.
Meritíssimo, eu, Lauany Albuquerque Fanton, agradeço do fundo do coração, que tenha ouvido meu pedido de justiça, através da minha advogada, entendo as contestações sobre as provas, mas de todo jeito, não existe palavra em qualquer idioma que possa usar, se não, obrigada. Obrigada por ter feito as leis entrarem em ação para minha proteção e que o réu tenha sido tirado de circulação.
Foi traduzido que o juíz falou, que o trabalho dele é ouvir e não tinha como a decisão ter sido diferente pois as provas apresentadas eram irrefutáveis.
Em relação ao pedido de emancipação da menor Lauany Albuquerque Fanton, foi negado pois a mesma não trabalha então por decisão dos jurados, sua guarda será passada para à família Guimarães Rocha, que apresentou instabilidade, compromisso e condições financeiras de cuidar de uma pessoa com deficiência. Então está estabelecido que a menor presente, ficará sob tutela da família citada, até os dezoito anos.
Não acreditei na hora, tanto é que corri até o Willian e abracei o mesmo já chorando, eles não acreditavam que tinham conseguido minha tutela. Amor transbordava daquela família.
Você vai ser minha irmã, sempre estarei aqui por você.
Fiz questão de sair de cabeça erguida daquele tribunal, a gritaria continuava, revoltados.
Não aceitamos a decisão do juíz!
Juíz só condenou o cara porque a menina tem um rostinho bonito!
Condenaram um inocente!
Pedi para os meninos me ajudarem a falar a seguinte frase.
Para que o mal triunfe basta que os bons fiquem de braços cruzados.
Edmund Burke
Eles pediram justiça pela pessoa errada e eu nunca poderia ter ficado calada perante a quase consumação de um ato cruel.
A cidade estava dividida, afinal um homem bom não poderia ser tão cruel não é? Errado, nesse tempo que cheguei na casa dos Guimarães, aprendi que monstros existem e eles não são os das histórias infantis, e sim humanos que podem conviver com a gente dentro de casa.
Consegui colocar o assunto da escola em dia, infelizmente tive que fazer tratamento psicológico e psiquiátrico contra ansiedade e depressão que me acompanham até hoje, não é brincadeira e podem fazer alguém desistir da vida.
Quando o ano letivo terminou, a família decidiu se mudar para garantir minha segurança. Fomos para outro interior, em um estado distante do atual. Não reclamei e até gostei, tudo que precisava estava ali. Os ex alunos do meu pai, deram total apoio para à mudança.
Thiago mudou de advogado diversas vezes, para tentar contestar a decisão do juíz e em todas as tentativas de hábeas corpus, prisão domiciliar e sair do regime fechado para o semi aberto, foram negadas. Ele foi pego em flagrante, o que deixou-o sem escapatória.
Pessoas falaram desse caso nas redes sociais, a favor e contra ele. Os ataques não pararam, por isso deletei redes sociais, pois as pessoas não sabem o significado de limites e respeito.
Dentro de casa, passei a dar aulas de libras, aprendi a fazer doces para fora e pensei seriamente em ser advogada, para garantir os direitos de jovens que assim como eu, não pediram para vim ao mundo assim ou que devido a alguma fatalidade do destino, ficaram com sequelas, recebendo o laudo de PcD — Pessoa com Deficiência — para terem acesso ao ensino básico e superior.
Mas vi que os tribunais não eram o meu lugar, me sentiria muito sufocada de passar horas lá dentro e queria uma profissão que não me obrigasse a usar aparelhos auditivos quase vinte e quatro horas por dia, gostaria de ajudar as pessoas, melhorando a qualidade de vida delas, tanto que presto trabalho voluntário em um hospital infantil. Converso com as mães de crianças surdas e é incrível que elas não tenham acesso a um curso básico para educar o filho. Relatava o aconteceu comigo, para pais e mães, que ninguém é completamente bom ou mal.
Atualmente tenho dezoito anos, apresentei um plano de inclusão na prefeitura e depois de diversos debates, orçamentos, pesquisas e alguns desentendimentos, foi aprovado. Aceitaram colocar libras como disciplina obrigatória em uma escola, para um plano piloto. Devemos mostrar as pessoas a importância de ter libras e braille como disciplinas obrigatórias para acessibilidade e não somente impor as mesmas.
O prefeito queria que eu comandasse o projeto, porém, recusei, não sou formada em nenhuma área e o melhor seria diversos profissionais como psicólogos, pedagogos e professores se unirem, para quem sabe um dia, nosso país ser o primeiro a ser lembrado quando a pauta inclusão vier a tona.
Escrevo para vocês, como uma forma de libertação e despedida, consegui uma bolsa em uma universidade inglesa, aprenderei BSL — Língua de Sinais Britânica — pois pretendo trabalhar com a inclusão de jovens, o curso, bem é complicado, talvez traduzir músicas, jogos, filmes e peças de teatro para levar a cultura para todos.
Por favor, peço do fundo do coração que não sinta pena ou dó de mim, ele deixou marcas talvez irreversíveis, todavia, o poder que Leon me deu, é mil vezes maior. Meu pai estaria muito orgulhoso de mim nesse momento.
Lembra que falei que o Giovanni foi minha primeira paixonite? Ele só vai saber quando for publicado, pois o mesmo namora uma garota linda, todos conhecem por Isa. Carismática e tem um sorriso lindo.
Will já chorou horrores, os Guimarães não queriam me deixar ir para a Europa por medo. Entretanto, as pessoas esquecem que surdez não significa invalidez, quero crescer e mostrar que minha história vai além de um trauma, julgamento.
Fiquem em paz!
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