3. hEr
Os primeiros pingos de chuva caíram no momento em que Summer Kaufmann destrancou a porta de madeira do seu apartamento e nem a música alta que explodia nos seus fones de ouvido fora capaz de abafar o som do trovão que pintou o céu cinza.
Ela se livrou dos tênis coloridos de corrida antes de deixar o livro de capa escura em cima da mesa que ficava perto da entrada, louca para retirar a legging preta apertada e a blusa suada graças a caminhada de três quilômetros e meio do Englischer Garten até o seu lugar, em Nymphenburg.
Estava prestes a subir as escadas de madeira até o único banheiro do seu apartado loft, quando percebeu o cheiro de lavanda no ar e as flores roxas em um vaso em cima da mesa que não estava lá quando ela saiu pela manhã.
Summer teria assustado se não soubesse quem era a única pessoa que tinha a cópia da chave do seu loft e que traria flores perfumadas para ela em um domingo chuvoso de agosto.
— Eu não sei se eu estou aliviada ou irritada em ver você, Summer — a voz conhecida brandou da porta de madeira ela tinha acabado de passar, fazendo-a se virar para ver a loira entrar no local. — Você não atende seu telefone, não responde às mensagens e nem mesmo olha o chat do Facebook. Eu tive que sair para tomar um ar ou iria enlouquecer te esperando aqui.
Foi a primeira coisa que Lilie falou enquanto entrou pisando forte no loft, fazendo Summer sorrir com a irritação habitual da irmã toda vez que ela se esquecia de checar o celular de duas em duas horas.
— Eu tive um dia cheio hoje, Lee — respondeu, vendo-a fechar a porta e sacudir o sobretudo preto que tinha recebido gotas de chuva. — E eu ainda tenho um monte de coisa da faculdade para fazer, mas fique a vontade. Eu só preciso tomar um banho antes, e...
— Onde você estava? — Lilie questionou, colocando as duas mãos na cintura. — Passei no café e me disseram que você só passou lá hoje cedo, liguei para Pia, mas ela está em Dresden e não fala com você desde ontem e a Ann disse não tinha tido notícias de você desde ontem depois da aula. Você quer me matar do coração?
— Você está soando como uma irmã mais velha agora...
— Porque eu sou sua irmã mais velha, Sunny, e você não sabe o quanto eu odeio quando você não atende o celular — o tom era mais brando dessa vez, fazendo a outra relaxar os ombros enquanto a observava. — Mas desculpa, eu posso ter exagerado um pouco.
Summer sorriu antes de andar em direção a irmã, envolvendo-a em um abraço apertado de quem não se via há mais de duas semanas.
Ela não estava mentindo quando dizia que tinha sido um dia cheio.
Tinha se mantido ocupada durante todo ele, andando de bicicleta pela cidade antes das oito, fazendo as compras do mês antes do meio dia, atravessando a cidade para almoçar no seu restaurante favorito e sentado na beira do Rio Isar para ler um livro em uma língua diferente da sua nativa, o que fazia seu cérebro exigir mais atenção.
Ela precisava relaxar sua mente que parecia estar a mil desde que recebera o telefonema da sua mãe dois dias antes e sabia que o cenário do Englischer Garten seria perfeito para isso.
— O que você está fazendo em Munique? — Summer questionou, arqueando as sobrancelhas. — Você tem algum cliente por aqui ou só veio me fazer uma visita?
Lilie relaxou a expressão irritada e tirou as mãos da cintura assim que Summer terminou de falar, suspirando.
No fundo, ela desejava que tivesse ido de Frankfurt a Munique só para uma rápida visita para deixar flores, colocar o papo em dia com a irmã mais nova e tomar um café com biscoitos de pistache que só as duas gostavam.
Mas Lilie estava ali para fazer o papel que ela preferia interpretar alguns anos antes, quando os problemas tendiam a ser mais simples.
O de irmã mais velha.
Sempre fora assim na relação das irmãs Kaufmann.
— Ela te ligou também, não ligou?
Summer assentiu lentamente, levantando o olhar para a irmã como se esperasse alguma ideia extraordinária ou alguma palavra tranquilizante sair dali.
Mas diferente dos problemas que elas tinham quando eram pequenas, aquele era diferente.
Summer não precisava de proteção porque alguma criança malvada não gostava do seu nome, ou do fato que ela adorava prender seus lindos cabelos claros como a luz solar em duas xuxinhas. Nem precisava de ajuda para esconder uma nota baixa que tirara dos pais. Ou um pequeno empurrãozinho para falar com o garoto que achava bonito na quinta série.
Diferente dessas, não havia nada a ser dito ou feito naquela situação.
— Ele está piorando, os esquecimentos estão ficando mais frequentes — Summer quebrou o silêncio ao perceber que a irmã não falaria mais nada, apertando os lábios em uma fina linha. — Nós deveríamos ir para lá, Lee.
Quando Summer tinha três anos, as meninas da sua sala do ensino pré-fundamental começaram a questionar o porquê dela ter nome de estação do ano.
As piadas começaram assim e foram evoluindo, aos poucos quase toda a sala de crianças mal criadas a chamavam de Winter, Spring ou Autumn. A pequena não tinha coragem o suficiente de falar para os pais, mas as manhãs que tinha que passar na escola eram as piores que sua mente naquela idade já tinha passado.
Até quando Lilie, dois anos mais velha, ficou sabendo do que estava acontecendo com a irmã.
Ela tinha cinco anos e nenhuma autoridade até ali, mas a forma que ameaçou as outras crianças já entregava sua personalidade feroz antes mesmo dela saber o significado dessa palavra.
Ninguém nunca mais implicou com a garotinha tipicamente alemã com um nome inglês.
Lilie a convenceu que ela era especial, e para explicar isso a deu o apelido que até hoje era utilizado por quem tinha alguma intimidade com ela. Sunny, como o sol.
Já que Summer Kaufmann sempre foi tão brilhante quanto o astro que ficava no céu.
— Nós achamos que nunca teríamos que nos preocupar com isso, não é? Com o fato do nosso pai poder esquecer quem nós somos.
Summer riu quando terminou a falar, mas não de felicidade. Era como se estivesse rindo do próprio desespero.
Ela nunca tinha mesmo pensado que algum dia teria medo do que seu pai responderia após ela dizer seu nome no telefone.
Pelo menos não até ela descobrir o significado de Alzheimer.
Para Sunny, uma doença ridícula que roubava as memórias e os melhores momentos das pessoas que eram assombradas por ela. Sabia que cientificamente deveria ter um significado mais específico, mas não se importava.
Alzheimer só era a vilã que tinha começado a tirar as memórias do seu pai três anos antes. E continuava a roubar cada pedacinho da sua vida dia após dia.
— Ele está tomando os remédios, nós só precisamos torcer para que eles consigam diminuir a velocidade da progressão da doença — Lilie falou, negando. — Nós nunca poderíamos adivinhar, Sunny... E por favor, me diga que você não está pensando em voltar para lá.
O olhar de Lilie caiu nos papéis empilhados em cima da mesa de madeira, os mesmos que ela tinha dado uma boa olhada quando entrara no apartamento, e a resposta de Summer viera em forma de um longo suspiro cansado.
— É só uma proposta, Lee — Sunny murmurou, engolindo a seco. — Eu vou me formar próximo ano e eu não sei como o Papa estará até lá. Talvez se eu voltasse... — sua voz falhou, fazendo-a pigarrear. — Eu poderia tentar criar novas lembranças para que ele não pense que está sozinho ou...
— Nós temos uma vida longe, Sunny. Eu vou me casar nos próximos meses com um homem em Frankfurt, você tem o café do Opa aqui e você ama esse lugar... — usou o apelido, andando até que ficasse de frente a irmã. — Nós podemos ir a Dresden no próximo fim de semana porque é isso que está ao nosso alcance. Mas nós não podemos nos mudar de volta pra lá e você não pode cogitar uma proposta de venda para o café que o Opa deixou para você... O Papa nunca ia querer que você fizesse isso.
— Lee, ele sempre fez tanto por nós duas... Não é só isso que está ao nosso alcance.
Summer fungou ao falar isso, inevitavelmente se recordando de tantas situações que o colo do seu pai parecia o lugar mais seguro do mundo.
Nos primeiros dias da escola, quando tudo o que ela queria era que ele pudesse ficar ao seu lado até o último sinal tocar e apesar de ficar por mais minutos que os outros pais, ele a passou tranquilidade antes que a deixasse sozinha.
Quando ela teve seu coração partido pela primeira vez, confessou que tinha medo de ficar sozinha pelo resto da vida e ouviu dele que ia chegar o momento, e o homem, certo.
Na primeira vez que fora a um jogo de futebol no auge dos seus cinco anos, assustada com os fogos e o barulho da torcida, mas sentindo segurança ao lado de Viktor, que torcia empolgadamente para que o time de roxo empurrasse uma bola no fundo do gol.
Recordar-se disso, porém, também a fazia perceber que talvez ele não se lembrasse mais de nenhum daqueles dias.
Foi quando Summer preferiu fechar os olhos, com seu coração doendo de uma forma que ela nunca conseguiria explicar para outra pessoa.
Ela adorava contar e ouvir histórias.
Talvez por isso que quis tanto ficar com o café do seu avô quando ele já não podia mais tomar de conta. Cada vez que uma pessoa diferente passava pelas portas de vidro do local, uma história nova estava ao seu alcance.
Quando um casal entrava no lugar, pensava em maneiras que eles podiam ter se conhecido. Imaginava se alguma vez eles já tinham feito bagunça na cozinha ou andado de bicicleta na beira do Rio que passava pela cidade. Se eram dois irmãos, deixava sua mente vagar ao imaginar se algum dia eles já tinham discutido pelos presentes debaixo da árvore de natal ou pelos ovos de páscoa escondidos. Se era alguém que possuía uma aliança grande no dedo, pensava no casamento...
Nunca pensou que teria que usar sua nata mente criativa e vontade de ouvir e contar histórias para recordar seu pai da sua própria vida. Relembrando-o de como tinha sido a formatura sua da escola anos antes e a segunda inauguração do café que ela tinha herdado, já que era isso que ele sempre questionava.
Era o tipo de história que ela preferia ouvir dele.
— Eu sei, Sunny, mas... Eu não posso deixar que você deixe Munique. Não quando você gosta tanto desse lugar e...
Ela puxou o ar antes de continuar, negando.
— Você está sempre tomando conta de todo mundo — Lilie murmurou, passando as mãos pelos fios loiros da irmã ao perceber seus olhos marejados. — E tem um peso muito grande nas suas costas. Você precisa se colocar em primeiro lugar agora, só assim as coisas vão voltar aos seus lugares.
— Você acha? — questionou, passando os dedos pelos cantos dos olhos.
Era uma versão adulta do 'promete' que ela costumava lançar à irmã anos atrás.
— Eu tenho certeza.
Lilie sabia que era algo que ela não podia prometer, mas podia pedir secretamente que fosse verdade enquanto assentia e apertava a irmã mais nova em um outro abraço.
As coisas iriam dar certo para a família delas.
As coisas iriam dar certo para Summer.
Ela só precisava acreditar e deixar que a maré fizesse o resto.
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