Capítulo 3
SELENA
As chamas ardiam e a fumaça me cegava, eu estava perdida no meio de todo aquele tumulto, haviam corpos caídos no chão, asas separadas da pele de seus donos... Não... Não foi assim, não era desse jeito, para, para, para!
Acordei em desespero e meu grito assustou Arion a minha frente.
- Senhorita Ris, está tudo bem?
Eu me encontrava inclinada com a cabeça abaixada, os olhos fechados e as mãos tremendo.
"Calma! Não é hora para surtos histéricos, ninguém quer contratar uma mulher louca."
— Sim...eu só... Só preciso me recompor. — falei controlando minha respiração ofegante e erguendo meu corpo antes encolhido, eu sentia os olhos do mago em mim, mas não fazia ideia do que ele estava pensando.
Eu conseguia sentir o cheiro vivido da fumaça, o calor do fogo na minha pele, o abraço apertado da minha mãe, essas memórias voltavam de forma violenta e sem aviso causando dor de cabeça e um medo incontrolável.
— Bebe. — Arion ordenou me entregando uma taça com aparentemente água.
Segurei o objeto pelo cabo e levei o líquido até a boca, enquanto bebia minha respiração se acalmava e por fim coloquei a taça na mesa finalmente me recuperando por completo.
— Está melhor?
— Sim, obrigada...
— Isso acontece com frequência?
— Não, só as vezes quando eu durmo, mas não é nada sério, eu lhe asseguro. — Um leve arrepio me atingiu junto com o pensamento de que eu seria dispensada por conta desses ataques. Eu não podia jogar tudo fora logo agora.
— Enfim... Fico feliz que tenha acordado, pois acabamos de chegar. — Eu me virei para olhar pela janela e me levantei para apreciar a visão.
— Senhorita Ris, bem vinda a Litha.
Estávamos em trilhos altos que davam visão de toda a capital. A cidade não passava de um amontoado de casas, edifícios e outras residências cinzas cobertas por uma longa camada de fumaça que saia de torres tubulares altas e estranhas que dificultavam a visão da cidade com sua névoa branca.
Mas a frente da cidade esfumaçada havia uma imensidão azul gloriosa que se estendia até sabe-se lá aonde. O sol já se punha e o contato da grande bola de fogo com a água deixava o céu em um tom alaranjado deixando aquele deserto aquático ainda mais bonito.
— Isso é o mar? — Perguntei e Arion acenou com a cabeça, voltei minha visão para a vista.
Ouvi dizer que é de lá que os sereianos vieram e é para lá que iram voltar quando este mundo chegar ao fim. Me perguntei como algo tão grandioso e vasto poderia existir e como alguém poderia viver tão próximo e simplesmente ignora-lo ou se acostumar com a vista.
Minha visão foi cortada pois o trem entrou em um túnel deixando nosso vagão totalmente escuro e me sentei de frente para Arion ainda que eu não pudesse vê-lo.
Depois de alguns minutos saímos do túnel e agora a vista do mar tinha sido coberta pela cidade cinza coberta de fumaça espessa e por um alto morro com diversas casas simples posicionadas de forma desorganizada, como se estivessem uma em cima da outra ou se apertando para os lados como se estivessem procurando o mínimo espaço para ocupar. Um amontoado caótico de janelas e telhados.
No momento em que menos esperava o apito da locomotiva me assustou e notei que já havíamos chegado na estação principal de Litha. O local era o triplo da estação de Santo Cipriano com um telhado mais alto, diversas barracas vendendo alimentos e outros produtos enquanto um amontoado de muito maior de pessoas andava para todos os lados, a maioria dos membros da multidão sendo humanos de pele bege feia com alguns trolls e sereias andando isoladamente.
Saímos de nossa cabine e descemos do vagão entrando em uma fila longa para termos nossas bagagens revistadas na qual ficamos por último, olhei para o lado e notei que a fila fae era menor e falei para o homem que me acompanhava:
— Acho que eu vou... — antes que pudesse terminar minha fala o mago avançou para a frente ignorando a fila e senti que deveria segui-lo, foi o que fiz.
Talvez pelo uniforme e pela postura imponente de Arion ninguém se opôs a ele furando a fila, mas eu consegui sentir todos os olhos queimando minha nuca em julgamento.
— Arion! Tudo bem caro companheiro? — o guarda tinha a pele branca, sobrancelhas grossas, e uma barba cheia e negra. Eu nunca entendi como eles conseguem ter pelos faciais como cachorros e bodes, mas aparentemente era algo comum para alguns humanos.
— Olha a fila das fadas é ali do lado e você sabe como o sistema de separação é operado, não tem como eu...
— A minha carruagem está me esperando fora da estação e eu tenho obrigações no palácio então por favor, faça seu papel, pois eu e a senhorita Ris não temos tempo a perder.
— Mas... — Arion apenas levantou uma sobrancelha para a fala do homem.
O guarda bufou e assentiu, pelas roupas escuras e o chapéu coco com símbolo de estrela eu supunha que ele era um policial, então não entendi nada quando ele vestiu grossas luvas de coro e agarrou minhas bochechas com sua mão grande e enluvada.
— O que que é isso? — eu tentei falar com as minhas bochechas sendo pressionadas, mas o homem me interrompeu.
— Abra a boca. — ele disse friamente e eu obedeci ainda confusa, Arion deve ter percebido minha confusão pois imediatamente justificou aquela ação estranha.
— É um procedimento padrão, todo cidadão não-humano, passa por uma inspeção assim — olhei pelo canto do olho e notei um policial subindo em um banco e analisando a boca de uma troll.
“ É por uma questão sanitária, o rei não quer nenhuma "doença-fae" se espalhando por Litha. ” me esforcei para não revirar os olhos, parece que eles esqueceram da epidemia de cólera trazida por marinheiros lysárianos que se espalhou por toda Avalon e que ceifou inúmeras vidas, incluindo a de meus avós que não cheguei a conhecer.
— Arion, você não poderia perguntar a vossa majestade se ele consegue diminuir os preços dos alimentos? Eu terei que ir até o porto das sereias para comprar alimentos se a situação continuar assim.
— Você tem conhecimento que a praga está devastando todos os estoques, não tem o que fazer além de rezar para a Luz.
— Como se esse pagão maldito soubesse alguma coisa da Luz. — ouvi uma voz sussurrando atrás de mim, o mago não pareceu ouvir ou se ouviu não se importou.
— Eu sei, mas não é possível você eliminar um jeito nessa maldita praga com suas habilidades?! — o guarda continuava a suplicar.
— Pois é! — ouvi uma voz na fila seguida por um coro de outras vozes concordando. Pude notar o desespero no olhar do policial, eu sabia como era o temor de não saber como será o amanhã e de ver preços enormes em produtos básicos como alimento.
Eram tempos sombrios para Avalon. A guerra com os faes do norte, somada a essa praga afetando as plantações, parecia que as rainhas estavam punindo Avalon. Me fazia quase sentir arrependimento ao que eu iria fazer, quase é a palavra-chave.
Arion ignorou os questionamentos friamente e após ter meu couro cabelo analisado para ver se eu tinha piolhos, ser perguntada se eu estava grávida, se eu tinha certeza que não estava grávida e ter minha maleta revirada, finalmente eu consegui ser liberada da fila que eu não pertencia. Arion teve apenas sua maleta inspecionada apenas.
No fim andamos pela aglomeração de pessoas deixando suas locomotivas com diversos corpos esbarrando em mim, mas surpreendentemente ninguém pareceu encostar no senhor mago prepotente a minha frente. Descemos as escadas da estação e vi uma bela carruagem preta e coberta com rodas finas e um cocheiro humano de pele preta mais clara que a de Arion segurava seus cavalos altos e marrons pelas rédeas.
Ele tomou a frente abriu a porta para mim e estendeu sua mão para me ajudar a subir no veículo, e por um momento eu me senti importante, como se fosse uma rainha ou algum tipo de duquesa humana, mas logo me pus em meu lugar e subi a carruagem sem pegar na mão do homem e me sentei em um dos bancos e o mago sentou se na minha frente.
Olhei para fora ainda fascinada pela vista daquela cidade, fachadas e mais fachadas de lojas, diversos goblins e fadas levantando bastões compridos com chamas na ponta para acender lampiões estranhos e altos nas ruas e nas fachadas, alguns usando escadas para acender esses mesmos lampiões.
—O que eles estão ascendendo?
O olhar que Arion me deu fez com que eu me sentisse estúpida por um momento, como se eu tivesse feito uma pergunta extremamente óbvia que até uma criança saberia a resposta.
— São postes...
Postes... Acho que já ouvi essa palavra vinda da boca de Willow, não era incomum ele reunir inúmeras pessoas e contar as inúmeras novidades unseelie sendo criadas por toda Avalon e acho que ele havia mencionado esses "postes" em algum momento.
— Você não está acostumada com a modernidade, né? — Ele comentou com uma de suas sobrancelhas grossas levantada e eu mordi minha língua para não responder "E você não está acostumado a cuidar da sua vida, né?"... Talvez eu seja impulsiva mesmo.
— O máximo de modernidade que eu tinha contato era São Cipriano e mesmo assim nunca passei tanto tempo lá, em Aine nós vivemos a base de velas e água do poço.
— Bom, espero que você seja adaptável senhorita Ris, o mundo tem mudado juntamente com essa ilha e posso lhe falar que esse estilo de vida que você possui está datado a pelo menos cinquenta anos.
— Estou percebendo — comentei com os olhos nas ruas, mais e mais ruas com locais cinzentos cheios de torres tubulosas expelindo fumaça, devem ser as tais "fábricas" que Willow mencionou.
— Os tempos da magia foram substituídos pelo tempo das fábricas não é verdade? — finalmente olhei para o homem de tranças ao meu lado e ele respondeu secamente.
— Essas fábricas movem Avalon ou pelo menos metade dele, dentro delas o mais diversos produtos, alimentos e materiais são fabricados do zero. Eu prefiro dizer que a magia se modernizou, o poder agora está no dinheiro e na economia e não em luzes coloridas criadas por rituais pagãos.
— Então é isso que um mago faz? Meche com economia? — perguntei e vi um esboço de reação em seu rosto, sua mandíbula travou e seus olhos encaram um vazio por um momento como se estivesse tendo cuidado com suas próximas palavras.
— Qual foi a função para qual você foi contratada?
— Costureira, mas...
— Exato! Costureira, e não maga, então eu sugiro que foque em suas próprias funções ao invés de tentar de maneira bastante incômoda adivinhar as minhas. — ele disse voltando com sua frieza habitual e por um momento eu quase considerei passar minha adaga em sua jugular junto com a dos herdeiros.
— Sim, senhor. — E assim voltei a analisar aquela cidade completamente estranha repleta de fumaça e residências amontoadas uma as outras.
Aquela cidade era um caos arquitetônico, era como se quem a tivesse projetado tivesse em mente juntar o máximo de construções em um lugar independente se houvesse espaço ou não.
A noite finalmente havia caído sobre Litha e mais... Postes haviam sido acendidos, lojas haviam sido fechadas e diversos moradores de rua deitaram-se sob suas fachadas. E depois de alguns minutos nós paramos.
— O que aconteceu?
— Chegamos ao nosso destino — Ouvi o cocheiro gritar alguma coisa e assim a carruagem andou e passamos por um arco e por portões de ferro alto e negros aberto por dois guardas vestindo uma roupa semelhante a de Arion.
Nosso transporte passava por um belo jardim com esculturas feitas de plantas, estatuas de mármore em poços rasos e estranhos que pareciam apenas jogar água, diversos pavões andando pelo gramado extremamente verde, o jardim era cercado por versões menores dos tais postes iluminando assim o belo ambiente.
A carruagem parou e Arion desceu primeiro dando a volta na carruagem e abrindo a porta ao meu lado e me oferecendo sua mão porque descer escadas com esse vestido não era exatamente a tarefa mais fácil do mundo.
Finalmente pisei no chão de tijolos brancos e olhei o ao redor murado do palácio e por fim olhei a magnífica construção cinzenta a minha frente repleta de janelas e parecendo ser feita de pedras com uma escadaria branca a sua frente com diversos faes em fila cercados por mais guardas.
Tudo isso apenas para apenas cinco pessoas e suas centenas de empregados.
— Seja bem vinda a sua moradia pelos próximos anos, fique confortável e saiba de uma coisa, eu estou de olho em você. — Eu ouvi a voz de Arion falar e quando me virei para questionar o que ele queria dizer, o mago havia desaparecido.
Engoli em seco e apertei a alça de minha mala. Talvez ele seja um problema, eu tinha conhecimento que os guardas seriam uma dificuldade, mas esse homem era uma peça nova e definitivamente perigosa nesse jogo.
— Ei você aí, camponesa. — uma voz nova me tirou dos meus devaneios, era um elfo de pele azul celeste, cabelos pretos que iam até seu pescoço e... Olhos amarelos?
— Posso te ajudar?
— Vai se atrasar para a foto. — Ele pôs a mão na cintura e me analisou da cabeça aos pés. — você não é de Litha né?
- Não, Sou de Aine.
— Aine?... Acho que não conheço.
— Imagino que não, é uma vilazinha perto da fronteira, no Círculo de Fada. — falei e notei como suas roupas eram estranhas, uma calça e uma camisa abotoada de forma que eu nunca vi em Aine.
— Eu sei o que está pensando "Meus deuses eu não sabia que homens podiam se vestir de maneira tão elegante", pois é meu amor pobreza não é sinônimo de feiura. — ri de sua fala e perguntei:
- Tá tão óbvio assim que eu sou de fora?
— Bom os feudos acabaram tem algumas décadas, mas essa roupa com essas maças do rosto e essa trança — ele beijou a ponta de seus dedos e soltou — fica vintage, a camponesa mais chique que eu já vi.
Uma sereia de cabelos pretos longos e vestido, mas com feições masculinas e voz levemente mais grossa. Apareceu atrás do elfo e o chamou:
— Terence! Iremos nos atrasar para a foto.
— Calma Ondine eles não vão tirar a foto sem o rosto mais bonito desse palácio, vem conhecer essa pobre que eu achei. — Notei seu tom de ironia e não me ofendi pois além de ser verdade eu sabia que ele estava sendo amigável... De um jeito estranho.
— Vai lá se apresenta para a...?
— Selena.
— Isso, eu sabia, se apresenta para a Selena.
A sereia não me olhou nos meus olhos, mas ficou a minha frente e começou a falar de maneira estranhamente rápida.
— Saudações, me chamo Ondine, não direi que é um prazer pois ainda não a conheço propriamente. Tenho dezenove anos, sou nativa de Litha, mais especificamente do porto Parnassus na região sul próximo a colina das fadas, não aprovo abraços apenas em situações muito especificas e estou 90 segundos atrasada para a fotografia.
E por fim estendeu sua mão azul junta por membranas e com uma barbatana no antebraço ainda sem manter contato visual. É impressão minha ou ele se referiu a si próprio no masculino e no feminino?
— Mensagem captada, eu também não sou muito fã de abraços.
— Aprecio essa informação.
— Olha só você duas já criando amizade. — o elfo de pele azul colocou um braço nos meus ombros e nos ombros de Ondine - Agora vamos tirar essa porra de foto, preciso ter minha beleza capturada.
— O que é essa tal foto que vocês ficam falando? — cada pergunta que eu fazia para os cidadãos de Litha fazia com que eu me sentisse ainda mais estúpida, pois deviam ser coisas muito óbvias.
— É a captura de imagem através de um aparelho em formato quadrado conhecido como câmera. Como você não tem conhecimento disso? — perguntou Ondine.
— A pobrezinha não está por dentro das últimas invenções, ela vem do interior.
— Ah sim, você é uma migrante fruto do êxodo rural não é?
— Isso é uma palavra chique para pobre? — comentei irônica e Terence riu alto, mas Ondine pareceu ter levado a pergunta a sério e começou a explicar o que era um migrante e o êxodo rural.
— Você é engraçada e bonita, oficialmente pode andar com a gente, espera você conhecer a Eleanor. — Terence falou sorrindo para mim.
Nos dirigimos para a escada cheia de faes dos mais diversos tipos e ao ver as roupas femininas eu entendi o que Terence quis dizer. Eram roupas cinzas presas por botões e não por cordas como as minhas e eu tive certeza que nenhuma das costureiras usava espartilho, coisa que eu nem sabia ser permitido.
Todos se sentaram nos degraus brancos e eu fico no último bem no centro da multidão, esperando sabe-se lá o que.
Quando de repente um humano veio segurando um quadrado sanfonado segurado por um tripé estranho e ficou de joelhos atrás do quadrado e se cobriu com uma manta preta.
— O que é aqui...
— Ei você! A aberração aí do meio, não se meche. — ele falou de maneira severa e eu me mantive parada olhando para o quadrado quando um flash de luz branca surgiu do nada seguida por algumas faíscas.
— Pronto! — o humano comentou e todos os outros faes se levantaram limpando a poeira do chão de suas roupas, mas eu me mantive sentada ainda em choque.
— O que foi isso? — perguntei a Terence que novamente riu e falou:
—Isso minha cara camponesa, foi seu rosto sendo marcado na história desse palácio.
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