Capítulo 1
SELENA
Me encarei no espelho por alguns momentos me fazendo as mesmas perguntas várias vezes mentalmente.
"É isso que eu quero?"
"Vale a pena correr um risco deste tamanho?"
"Minha morte vai ter válido a pena?".
E todas as perguntas eram acompanhadas com as imagens daquela noite, com as memórias de todas as palavras horríveis que já nos chamaram, com a memória do dia em que fazendeiros Andurianos quebraram as pernas do meu pai só porque ele ficou bravo com um comentário que fizeram sobre mim e com as lembranças daqueles dias em que a fome me deixava imobilizada na cama de tanta dor, então no fim era sempre um "Sim".
Dei uma boa olhada em minhas asas no espelho manchado de nosso pequeno banheiro. Elas tinham uma leve coloração azul mesmo que ainda transparentes, e suas finas veias expostas pareciam formar alguns desenhos xadrez na maioria das vezes. Já me falaram que no passado a leitura de asas era uma prática comum isso até ser banida por ser considerada bruxaria. Tudo que eles não gostavam era chamado de bruxaria
Segundo meu pai os desenhos nas minhas asas e sua cor significavam coragem... Honestamente acho que ele quis dizer insanidade.
Tirei minha camisola e vesti minha roupa intíma junto com meu corpete especifico para fadas que além de apertar meu corpo e diminuir meu busto, também prendia minhas asas as deixando apertadas em uma longa tira de couro sem poder serem movidas, me pergunto como as mulheres unseelie se sujeitam a vestirem tal atrocidade. Por fim vesti o vestido mais formal, dentro do possível, que eu tinha, um lilás desbotado com detalhes em dourado que ia até os tornozelos e mangas longas e justas que cobriam até meus pulsos.
"Elegante, mas sem parecer uma vagabunda" foi o que a dona Dagda me disse quando eu a mostrei esse vestido, e apesar do linguajar... Peculiar, eu sabia que ela estava certa, aquela roupa se alinhava perfeitamente as regras de bons costumes dos unseelie, sem decote, sem muita pele exposta e nada muito apertado que pudesse definir as curvas do corpo.
As definições unseelie do que uma mulher podia fazer e do que era uma mulher em si me dava vontade de enfiar agulhas nos meus olhos porque pelo amor das rainhas...
Sai do banheiro com a velha porta de madeira fazendo barulho e fui até a cozinha que na verdade também era o quarto que eu e meu pai dividimos que na verdade também era o cômodo principal da casa.
Havia duas camas no meio do cômodo e uma mesa de carvalho na frente das mesmas, e uma lareira que nos aquecia a noite com uma chaminé acima. Um cheiro de vegetais cozidos pairava o ar e na mesa havia pães de ervas duros e...
- Mingau de leite! - exclamei ao ver a sobremesa na vasilha de barro, o doce creme branco coberto com mel era apenas a melhor comida avalonesa possível, e qualquer fada concordaria comigo nisso... Qualquer fada com menos de onze anos no caso.
— Eu sei que é seu favorito então que dia melhor para fazer minha princesa feliz do que no último dia dela em Aine? — disse o homem de pele verde e asas caídas e douradas para mim, ele parecia cansado e eu não fazia ideia de quando ele tinha acordado, mas era teimoso demais para me ouvir e me deixar cuidar da casa.
Algumas fadas como ele tinham a pele verde como a grama e os cabelos das mais diversas cores, já outras eram como eu, totalmente brancas como o mármore desde a pele até os cabelos sendo a única cor em nossos corpos nossas íris amarelas.
— Papai, por favor eu já tenho vinte um, não precisa me chamar de princesa. — comentei sorrindo mesmo sabendo que ele não pararia com o apelido.
— Mas é como se chama alguém da realeza, ou eu preciso te lembrar...
— Aí minhas rainhas. — apertei a ponte do nariz com o indicador e o polegar já sabendo aquela frase de cor.
— "Que nenhuma estrela no céu e nenhuma flor na terra se compara a beleza de nossa majestade Selena Ris." — nós dissemos em uníssono enquanto ele abraçava meus ombros.
Quando eu era mais nova eu morria de vergonha desse apelido e dessa frase brega, mas hoje eu entendo. Meu pai me chama de princesa, porque minha mãe era a rainha dele.
— Mas como você conseguiu o leite?
— Roubei uma vaca e agora ela vai morar aqui dentro comigo enquanto você estiver fora, pensei em chamar de Betty o que acha?
— Haha muito engraçado, Seu Beltrane, você sabe quanto que tá custando o leite? Você devia tá gastando dinheiro nos seus remédios e não pra fazer um doce.
— Ei, ei, ei — ele pegou nos meus ombros e me olhou diretamente nos olhos. — eu agradeço a preocupação, mas não vamos esquecer que quem tem que cuidar de você sou eu, não o contrário.
— Se não fosse tão teimoso eu não me preocuparia, preciso lembrar quando você achou uma boa ideia consertar o teto do templo?
— Nós temos asas, que diferença faz?
— Quando foi a última vez que você voou? — ele apenas deu de ombros e voltou seu olhar para a fornalha.
— E quando a gente mesmo tendo dinheiro pra comprar uma roda nova pra carroça, você insistiu em fazer uma do zero.
— Eu sou manual, eu não aguento ficar parado.
— Você não tem mais idade pra isso.
— Eu não tenho duzentos anos ainda. — ele claramente se divertia com a situação.
— Só se cuida tá, eu não quero saber de você inventando moda depois que eu for embora.
— Tá, tá, mãe! Só se acalma ok? Eu sei me cuidar sozinho. — ele voltou a se dirigir a mim e me deu um beijo na testa. — Agora vai comer vai.
Me sentei na mesa e olhei a sobremesa, acho que eu tinha direito de saborear um mingau pela última vez. Talvez aquele fosse meu prato preferido porque quando tudo que você come é sopa, pães velhos e de vez em quando uma carne seca de bode, a única coisa doce acaba parecendo um banquete.
E só de lembrar de toda essa miséria eu me motivei ainda mais para realizar aquilo.
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Pus minha mala no bagageiro da carroça e olhei para a população atrás de mim, fadas, trolls, elfos e sereianos, todos de diferentes povos de diferentes regiões, que mesmo com todas as tragédias da invasão unseelie, conseguiram erguer uma comunidade.
Aine era uma vila isolada a duzentos quilômetros da cidade mais próxima, criada por refugiados de diversas partes do país, tinha apenas 600 habitantes, uma economia movida basicamente de agricultura familiar, casas de madeira e estradas de terra.
Pode não ser uma metrópole luxuosa, mas aquelas pessoas, mesmo com as diferentes culturas, diferentes línguas e diferentes costumes me criaram e acolheram a mim e meu pai quando ninguém mais acolheria.
— Ajeita essa postura, menina. — dona Dagda comentou se aproximando de mim. A velha troll de pele cinza usava suas joias falsificadas pelo seu corpo, a mulher tinha uns três metros e como qualquer troll possuía uma corcunda em suas costas.
— Para de ser chata por uns minutos, se cuida tá bom querida. — disse Boudicca, a esposa de Dagda.
As duas trolls foram o mais próximo que eu tive de avós na vida, me pergunto se elas chorariam quando eu fosse executada, se elas sequer saberiam do ocorrido.
— Você ama me questionar né?
— Aí para de ser dramática. — Boudicca deu um beijo na bochecha de sua esposa e eu sorri ao olhar as duas. Eu queria que alguém me amasse como elas se amam ou como meus pais se amaram, é uma pena que não vai mais acontecer.
— Obrigada por tudo, eu quero que saibam que eu amo vocês duas. — eu peguei nas mãos de ambas enquanto sorria e pude ter certeza que os olhos de dona Dagda marejaram.
Elas se afastaram de mim após trocarem mais algumas palavras e entre mais e mais frases de apoio e tapinhas nas costas, senti um aperto ao redor da minha cintura.
— Oh meu bem...
— Você vai voltar né? — perguntou o jovem elfo, mesmo com apenas seis anos ele já batia na minha cintura o que não era exatamente surpreendente considerando que elfos podiam chegar aos dois metros e fadas não eram exatamente altas ainda que eu tivesse uma altura relativamente alta comparada as outras.
O jovem Oberon tinha a pele lilás, cabelo cinza e orelhas pontudas muito mais longas do que as minhas ou que a de qualquer outro fae. Ele também tinha o coração mais meigo que uma criança poderia ter, eu me lembro de ter cuidado dele quando seus pais tinham que trabalhar no campo, eu me lembro de cantar para ele dormir, eu fiz o mesmo com todas as crianças de Aine.
Eu li para elas, eu brinquei com elas, eu chorei junto com seus pais quando elas morriam de fome ou de alguma doença cujo remédio não era vendido para faes.
— Eu vou escrever todos os dias. — falei segurando minhas lágrimas.
— Eu não queria que você fosse...
— Vai ficar tudo bem, eu juro. — menti para ele, eu nunca mentia para ele.
— Se eles ficarem bravos com você, canta pra eles, você tem uma voz linda. — assenti e acariciei sua pequena cabeça
Por fim o menino se afastou a pedido de sua mãe e diversas outras crianças vieram se despedir de mim em lágrimas e os pais delas que me agradeceram por tudo, depois de tantas despedidas emocionadas contendo frases como:
"Vê se costura direito ein, tem que impressionar a princesa"
"Se alimenta direito lá, você tá muito magrinha"
"Você vai ficar muito rica, vê se traz presentes"
"Será que você vai conhecer o rei?
Chegou a vez do meu pai, estávamos apenas nós dois já que dona Dagda deu um jeito de nos dar um momento a sós.
— Bom... Esse dia finalmente chegou.
— Pois é, quem diria né? — imediatamente ele envolveu seus braços ao meu redor juntamente com suas asas douradas, para nós fadas não há forma de amor maior que essa. Você está envolvendo alguém em suas asas e mesmo quando se soltarem as asas ainda estarão lá para proteger a pessoa que você ama.
— Se cuida tá.
— Ah agora decidiu ativar o modo pai protetor, seu Beltrane?
— Eu tô falando sério, toma cuidado, Litha não é nada parecida com Aine. - agora eu via a preocupação genuína em seus olhos, então apenas assenti sentindo uma leve culpa pelas minhas futuras ações.
— Por favor não responda eles, eu sei como você é! - você faz algumas crianças choraram na infância e te taxam de encrenqueira sua vida toda. Assenti novamente.
— Se tiver que se ajoelhar e implorar misericórdia a um unseelie, faça isso por favor filha, não deixe seu ego ficar na frente da sua vida.
— Pai! Calma, eu vou ficar bem, eu já sou grandinha, sei me cuidar.
— Eu sei, eu sei, mas é que só de imaginar você sozinha na cidade grande cercada por todos aqueles garotos unseelie, se algum deles por as mãos em você eu juro pelas rainhas que...
— Ninguém vai me machucar, e lembra eu nunca vou estar sozinha, a mamãe tá sempre comigo lembra?
Ele assentiu de olhos marejados, beijou minha testa e em seguida a encostou na minha.
— Minha princesa cresceu e virou uma rainha agora. — ele falou ainda com a testa encostada na minha e a essa altura eu não segurava as lágrimas mais.
Nos afastamos e eu finalmente subi na carroça. Willow o goblin que conduzia a carroça de unicórnios me olhou e perguntou:
— Pronta pra viagem?
Na hora doeu ter que me despedir de minha casa, de minha comunidade, de minha família, mas só de lembrar de tantos dias de fome, de missionários unseelie invadindo a vila e incendiando o templo por ser considerado "paganismo", de namorados e namoradas tendo que se alistar naquela maldita guerra do norte e daquela noite, eu soube o que tinha que fazer.
— Nasci pronta.
Ele bateu as rédeas dos unicórnios e o transporte seguiu em frente. Enxuguei meu rosto molhado e me lembrei do porque tudo isso estava sendo feito.
Tantas vidas foram perdidas por causa da coroa, e agora eu iria arrancar a cabeça daqueles que a usavam.
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Olá caros leitores, bem vindos de volta para aqueles que leram a antiga versão e boas vindas aos novos que estão conhecendo Selena e Avalon só agora.
Como já deu para perceber houve algumas mudanças na história e agora é uma vibe mais século XIX ao invés de um mundo contemporâneo como era na primeira versão.
E sim a Selena tem vinte um ao invés de catorze anos agora, mas isso é para dar uma maturidade e uma liberdade maior na escrita dela. ( E também pra escrever p*taria óbvio)
Também vai ter inspirações históricas já que eu sou uma grande Nerd de história então estou bem ansiosa pra escrita apartir de agora e quero ver se alguém vai pegar as referências.
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