Capítulo XXIX
Mais uma vez Said acordou num solavanco, exaurido do pesadelo. Cada vez mais seus sonhos com a guerra retornavam às suas noites e repetidamente se tornavam mais e mais reais e cruéis.
Ainda era dia quando acordou, muito próximo do entardecer. Estava sozinho no quarto e agradeceu por Safira não estar ali presenciando aquela cena.
Levantou-se tonto, quase como se estivesse bêbado de sono e assustado com as imagens que não saiam de sua mente. Seguiu para o lavabo, retirou suas roupas e tomou um banho rápido e gelado o suficiente pra que o acordasse de vez daquela tortura.
Minutos depois já estava vestido e em sua face nenhum vestígio apontava o que outrora estivesse sonhando. Seguiu pra sua saleta de reuniões, encontrando Safira tomando chá com uma das criadas no salão, depositou um beijo na cabeleira loura da esposa recebendo o sorriso tímido de Safira e o olhar angustiado e sedento por notícias de Omã. Então seguiu mais uma vez ao seu destino anterior, tentando encontrar uma saída para aquela situação.
Uma pilha de papéis o aguardava em cima da mesa, documentos referentes às lideranças da Índia, ao comércio de pérolas vindas de Kuwait e alianças comerciais que faria com alguns indianos a fim de manter a paz entre os povos.
Embora tivesse uma quantidade significativa de papéis iguais um em cima do outro não deixou de notar um diferente.
Pegando o que parecia ser um envelope, leu o destinatário indicado.
Para: Said Manum
Não havia nenhum remetende no envolope, nem a localização de origem. Levando a curiosidade de Said se aguçar pra descobrir do que se travava.
Então o abriu, lendo linha por linha de uma longa carta feita a punho pessoal com uma letra bem conhecida do sheik. Embora estivesse sentado sentiu que caia no chão, sendo empurrado e surrado pelo conteúdo da carta.
Era uma carta de Mahira.
*
Said se retirou de sua sala muito tempo depois, quando todos já dormiam no palácio. Estava cansado no entanto não se destinou ao quarto, seguiu para o jardim de lavandas situado atrás da grande cozinha do castelo.
Sentou-se na grama seca, sentindo a escuridão e o silêncio da noite o abraçarem, as lavandas se deitavam pela força do vento levando junto o cheiro suave das flores.
Pensou e pensou. Releu aquela carta tantas vezes quanto podia, amassando com os dedos as partes mais doloridas daquele texto. Sentiu seu coração se comprimir como se um punho o estivesse esmagando e viu o resquício de felicidade que almejava para o futuro se esvair.
Suas lágrimas já prontas para cair rolaram lentamente pela face bronzeada e um choro engasgado se soltou de seu interior.
Não conseguia entender o rumo que sua vida estava levando, muito menos as surpresas que a cada dia apareciam. Seu passado o perseguia como se fosse um foragido, um figutivo, um ladrão no deserto correndo e correndo pela areia escorregadia sem chances de encontrar terra firme ou água para beber.
- Said? - Se assustou ao ouvir a voz suave de Safira e se virou para encontra-la o olhando atentamente - Está tudo bem?
O sheik limpou as lágrimas esperando que já não estivessem mais visíveis e deu o melhor sorriso que podia pra ela.
- Está sim - ele respondeu - Estou apenas observando o céu.
Safira sorriu, seus olhos pareciam estudar Said avidamente mas já não encontravam nada ali. Então estendeu sua mão pra ele.
- Vamos? - disse jogando a cabeça pro lado de um jeito manhoso.
- Vamos - ele respondeu rindo e segurou em sua mão, se deixando levar pela princesa adentrando na penumbra do palácio.
Duas horas depois já descansava ao lado dela, sentindo os dedos de Safira acarinharem seus cabelos negros e o corpo se aninhar no seu como em toda noite.
Cobriu-se com o pesado cobertor e permitiu que o sono lhe consumisse. Esperando que por algum milagre de Allah acordasse no outro dia e descobrisse que tudo não passou de um sonho.
A guerra contra os turcos não era mais seu único problema.
*
Saudade.
Preocupação.
Dois sentimentos que sozinhos causam aflição na vida de quem os sente, mas juntos são capazes de fazer um verdadeiro estrago na mente e no coração de seus hospedereiros.
Conforme os dias se passavam Safira se recusava a comer. Olhando pela quinta vez a xícara de chá e o pão pita em sua frente sentia o estômago embrulhar e o coração ficar apertado demais a ponto de seus pulmões se comprimirem junto dificultando sua respiração. Suas mãos tremiam levemente e a todo instante olhava para as portas na esperança de receber notícias.
- Você precisa se acalmar, Safira - Ouviu Said dizer ao seu lado. - E precisa comer.
E embora estivessem muito próximos naquele momento a voz do sheik parecia ter vindo de outra dimensão, de um lugar longe o suficiente de onde a mente de Safira estava.
- Eu não consigo - Ela respondeu - Eu... não aguento mais ficar sem ter notícias de Soraia, de minha irmã... notícias do meu reino - Fungou triste.
- Estamos tentando contato, habib... infelizmente a Índia é muito distante de Omã, as viagens demoram dias... Eu sei que está nervosa e preocupada, mas não pode viver desta maneira. - Ele falou visivelmente preocupado com a maneira de Safira lidar com sua dor.
A princesa estava apática, não comia mais que o extramente necessário a dias e andava como uma moribunda pelo castelo nas raras vezes que saia de seus aposentos.
- Eu não aguento mais sofrer - Ela falou - Não tive um dia de paz desde que este casamento começou... - suspirou cansada, mas após perceber suas palavras imediatamente seus olhos voaram na direção do marido. - Said.. eu não quis dizer...
- Você quis sim, Safira. - Disse sério se levantando da mesa de chás - Tenho assuntos a resolver. - E se retirou do local deixando a princesa sozinha com os olhos visivelmente culpados.
*
Said odiava se sentir vulnerável, e embora soubesse que o casamento nunca fora algo que a princesa ou ele tivessem desejado, havia se magoado com as palavras dela. Perceber que o casamento só tinha feito Safira sofrer doeu nele mais do que podia imaginar, o sheik aprendeu a amá-la e por ela havia ultrapassado o seus limites, por ela Said renegava e renegaria tudo o que um dia lhe pareceu correto. No entanto, podia ver nos olhos dela que embora ele lhe desse o mundo nunca seria o suficiente pra receber o seu amor.
Passou as mãos nos cabelos puxando os fios negros irritado com tudo o que acontecia. Como se não bastassem seus problemas matrimoniais, uma enxurrada de outros intempéries vinha com força em sua direção.
- Sheik Said? - Um criado chamou sua atenção
- O que? - Respondeu ríspido
- Me perdoe, senhor... não quis atrapalha-lo.. - o servo se desculpou vendo que o sheik estava irritado.
- Apenas me diga o que aconteceu - Ele disse ajeitando sua túnica verde escuro e colocando o turbante que estava guardado em um dos bolsos de sua capa.
- O comandante Zayn chegou - o criado informou - Devo leva-lo até a sala de reuniões?
Said sentiu um grande alívio lhe atingir ao ouvir que o grande amigo havia chegado. Com Zayn seria mais fácil de enfrentar os turcos.
- Sim, o acompanhe até lá. Já estou a caminho - Respondeu, se despedindo do servo que logo saiu apressado para cumprir sua tarefa.
O sheik se encostou na parede do corredor onde se encontrava fechando os olhos por poucos instantes. A mente de Said borbulhava repleta de hipóteses e dúvidas.
Por quê? - Ele se perguntou mais uma vez em dias - O que eles querem? Não faz nenhum sentido persistir nessa guerra sem nenhum prêmio aparente...
*
Zayn observava a saleta com atenção, andando de um lado a outro arrastando sua longa capa vermelha no carpete claro enquanto aguardava Said chegar.
Faziam alguns anos que os dois não se viam. Após a grande guerra contra o império Otomano seis anos antes não demoraram muitos meses para o comandante pegar uma trouxa de roupas e se debandar para Portugal. Serviu como instrutor do exército real da Rainha D. Maria I, muito conhecida como "A louca", tendo como regente de seu império filho João devido ao seu estado de saúde mental. Embora o estilo de vida e o clima gélido da Europa fosse totalmente diferente do que estava acostumado conseguiu sobreviver por alguns anos de maneira confortável na corte, no entanto sentia falta de suas origens.
Ao receber a carta do sheik entendeu que a hora de voltar para o deserto havia chegado, e lá estava ele muito mais velho do que o amigo se lembraria de já o ter visto. A casaca de pelos se desenhava nas formas dos músculos fortes e bem definidos e a barba assim como a de Said estava muito mais volumosa. Os cabelos outrora sempre escondidos no velho turbante cinza caiam compridos e lisos em suas costas presos a uma fita da mesma cor dos fios. Ganhara novas cicatrizes e um par de olheiras profundas e escuras resultantes de suas noites em treinamento. Zayn já não se parecia tanto como os homens árabes, no entanto ainda carregava sua essência em seu interior.
- Meu amigo... - Se virou em direção a porta ao ouvir a voz de Said.
- Está mais feio do que me lembro - Brincou feliz em ve-lo novamente.
Se abraçaram dando os costumeiros tapas nas costas e os quatro beijos no rosto tipicamente árabes.
- Vejo que adquiriu um bom humor nesses anos - Said retrucou a brincadeira, estudando as feições de Zayn decifrando o amigo.
- E você cabelos brancos - Riu mais uma vez.
- Por favor, sente-se - Said mostrou uma das cadeiras livres próximas a mesa de mapas - Temos muito que conversar.
- Obrigado - Agradeceu - Temos sim... ouvi dizer que se casou - Disse arqueando uma das sobrancelhas.
- Ah sim... bem.. me casei. Sinto que não pode comparecer a festa - Disse desconcertado.
- Eu não viria de qualquer maneira, Said - O comandante riu - Me recuso a ver mais um de meus amigos se casando.
- Só falta você - Said devolveu a sobrancelha arqueada ao amigo - Já não está na hora? Constituir uma família lhe fará bem... vive solitário a muito anos Zayn.
- Prefiro assim - Ele respondeu desgostoso com o assunto - Afinal, o que você fez aos turcos desta vez? - Suspirou esperando uma boa explicação para as insistentes ameaças dos otomanos e a iminente chegada de uma guerra.
- Absolutamente nada - Said deu de ombros, demonstrando que também não entendia - Pensei em vingança pela última guerra... mas não vejo sentido nisso... teriam feito a muitos anos. Talvez queiram conquistar novos territórios, e ainda assim não faz sentido atacar três reinos diferentes ao mesmo tempo. Eu não sei o que eles querem.
- Há prisioneiros? Mortos? Atacaram outra vez além do que me disse em carta? - Perguntou ao mesmo tempo que pegava os mapas e examinava as fronteiras.
- Meus olheiros afirmaram que grande parte da vila em Omã foi feita prisioneira e o castelo foi uma chacina sem igual. O sultão foi decapitado... - Said falou voltando a passar as mãos no rosto - Minha esposa ainda não sabe... eu nem sei como contar isso a ela. Mas não.. não houveram mais ataques
- Melhor não contar nada a ela - Ponderou o comandante
- Eu não sei... me sinto perdido, muitas coisas aconteceram nesses últimos meses e principalmente nos últimos dias. - Said bufou inconformado com os trágicos acontecimentos.
- Há algo a mais acontecendo? - Zayn perguntou
- Muitas coisas... mas não quero me concentrar nisso agora. - Suspirou o sheik - Preciso da sua ajuda, quero que resgate uma pessoa.
- O que? - Perguntou confuso - Quem você quer resgatar?
- Ela se chama Soraia, é criada de minha esposa..
- Ora Said... em meio a uma eminente guerra contra aqueles malditos.. você quer que eu resgate uma criada? - Perguntou exasperado
- Não é apenas uma criada... ela é importante para Safira - Respondeu o sheik com os olhos baixos - Por favor, Zayn.
- Você a ama - O amigo disse
- Não... eu.. - Said tentou dizer desconcertado
- Você a ama, Said - Zayn disse novamente - Do contrário por quê me faria atravessar mar e deserto para resgatar uma criada? - Levantou as sobrancelhas em questionamento.
Said bufou, se levantou da cadeira e começou a andar pela sala indo e vindo como se pensasse no que o amigo disse. Estava muito claro para ele quais eram os seus sentimentos, mas ao ouvir em voz alta que amava Safira fazia sua mente entrar em colapso.
Do outro canto da sala o amigo observava o sheik com certo divertimento. Rendido, Said estava completa e absolutamente rendido aos pés da mulher apenas não tinha coragem o suficiente para admitir.
- Você vai me ajudar? - Perguntou por fim
- Sim, me mostre o mapa e me passe todas as informações que conseguiu - O outro respondeu - Assim que tiver um plano convoco meus homens. Resgatarei a criada e com sorte libertarei outros prisioneiros.
O sheik sorriu com satisfação embora o momento e o assunto não fossem agradáveis.
*
Said e o amigo passaram o fim daquela manhã e mais algumas horas que se estenderam ao chá da tarde elaborando estratégias e diretrizes que os ajudassem no resgate de Soraia.
Durante aquele tempo novas notícias haviam chegado e com elas o paradeiro da criada fora revelado. Saber que a pessoa mais importante para Safira estava sendo mantida como refém no castelo turco fez Said vibrar de raiva.
A cada instante o tudo mudava, como em um jogo de tabuleiro as peças se moviam rapidamente derrubando umas as outras até restassem apenas os reis e suas rainhas. E por mais que Said tivesse força bélica e homens o suficiente para a guerra, sabia que os turcos eram imprevisíveis e por trás do imperador dos Otomanos havia sua rainha.
Fátima Ibrahim era o nome dela, e lembrar da mulher de cabelos vermelhos fazia sua coxa direita doer. Inconscientemente colocou a mão na perna, sentindo a cicatriz sob o tecido da túnica. A faca que um dia estivera fincada ali tinha dona e a turca de seis anos antes parecia ter voltado para o atormentar.
Se Fátima e o turco estivessem trabalhando juntos e tudo indicava que sim, o sheik sabia que não seria fácil vence-los. No entanto não tinha muitas opções e precisava arriscar resgatando a criada e os prisioneiros de maneira que não alarmasse os turcos.
Logo os membros do conselho indiano chegaram e a reunião prosseguiu durante o resto da noite.
Duzentos homens seriam chefiados por Zayn no que chamaram de emboscada noturna, que consistia no resgate durante a madrugada silenciosa, o trabalho todo seria feito sem que qualquer pessoa fosse morta, fariam tudo apenas imobilizando os possíveis soldados e guardas do império que estivessem fazendo a segurança dos prisioneiros no calabouço.
No mapa todo o esquema fora desenhado, de acordo com os olheiros os prisioneiros haviam sido levados ao subsolo localizado na ala norte do castelo, tendo saída direta nas margens da fronteira do reino. Soraia estava presa na ala oeste, num pequeno quarto situado em anexo aos aposentos do turco. E embora fosse quase irrelevante naquele momento, mas não seria quando estivessem lá, os corredores do castelo eram protegidos por uma espécie rara de guepardos que haviam sido domesticados pelos otomanos.
Prepararam as armas, as trouxas com alimentos e roupas, os cavalos e as tendas para partirem no dia seguinte. A viagem deveria durar pouco mais de dez dias e contavam com a sorte e providência de Allah que durante aquele período nada acontecesse.
Said não iria, depois da insistência do amigo em dizer que de nada valeria a ajuda dele na emboscada e que a presença dele na Índia era muito mais valiosa resolveu ficar. Mesmo que ainsa estivesse magoado pelas palavras de Safira, não podia deixa-la sozinha.
Muito mais tarde naquela noite quando já se encontrava exausto do dia de trabalho seguiu para os seus aposentos se despedindo dos conselheiros e de Zayn que já havia se instalado em um dos quartos de hóspedes.
Entrando no quarto desprovido de qualquer iluminação de lamparinas, viu apenas o contorno do corpo de Safira iluminado pela pouca luz da lua. Tomou um banho rápido e se aconchegou ao lado dela, parando para observa-la em mais uma noite de sono.
Acarinhou a face jovial com delicadeza, acompanhando o ir e vir da respiração da princesa. Dormia profundamente e ao que parecia seu sono era livre dos costumeiros pesadelos.
Said suspirou cansado e deixou-se descansar a cabeça sob o travesseiro macio. Antes de se render ao sono que já chegava depositou um cálido beijo na testa de Safira e disse:
- Eu te amo, habib
E então fechou os olhos e naquela noite mais uma vez a guerra ousou o atormentar com os gritos ininterruptos e choros de desespero, o galope veloz dos cavalos em fuga e o choque das espadas se chocando. Cada instante daquela guerra era vivo em sua mente e durante aquele pesadelo pode ver a mulher sorrindo acachada próxima a ele segurando a barra do vestido com uma das mãos completamente sujo misturado a areia e água, os longos fios vermelhos que batiam no chão fofo e a outra mão que fincava a faca cada vez mais em sua coxa.
- Sheik Said... eu estava esperando por você
Aquelas palavras foram as últimas que ele ouviu antes do massacre na tenda começar e sua mente outrora alucinógena se apagar.
Said acordou dias depois sendo arrastado por Zayn no sol escaldante do deserto. O cheiro de sangue seco e corpos em decomposição era forte e com muita dificuldade tentava abrir os olhos. Sua garganta estava seca e não sentia sua pernas, tudo o que tinha consciência era de o amigo o levava a algum lugar.
Fique acordado!
Ouviu muitas vezes aquelas mesmas palavras e embora tentasse se manter ali logo um limbo de escuridão o chamava e ele apagava mais uma vez.
Said não lembrava de mais nada daquela guerra exceto do que contaram a ele e dos acontecimentos posteriores a vitória dos Kuwaitanos. No entanto nos dias em que ficou apagado grandes coisas aconteceram.
Assim como naquele ano tinha medo do campo de batalha, dessa vez Said tinha medo de perder a batalha. Perder - naquele momento - significava perder Safira.
Ele faria de tudo para ganhar.
*
Eeeeita que vem bomba por aí 💣
Fiquei até cansada com tanta coisa acontecendo nesse capítulo hahaha
Said chateado com Safira, poxa 💔
E não é que a Mahira resolveu dar as caras? Ou melhor... a carta? O que será que tava escrito lá que fez o nosso sheik chorar? 😬🤔
Gente... e esse plano de resgate, será que vai dar certo?
Deixem seus comentários e apertem na estrelinha 🌟
Até domingo que vem 😚
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro