Capítulo XXIII
O que é capaz de lhe causar aversão? O que é capaz de lhe trazer repulsa e rancor?
Para muitas pessoas alguns crimes bárbaros podem ser perdoados, para outras apenas a morte é a solução. Não há um manual de instruções que diz exatamente o que se passa na mente de alguém que presencia uma cena de violência, também não há um molde que explique qualquer consequência que venha a seguir de ações impensadas.
Ninguém te prepara para o pior.
Ninguém te prepara para viver.
Ou morrer.
- O QUE ESTÁ ACONTECENDO AQUI?
Aquela frase reverberava na mente de Safira no mesmo instante que um alívio lhe percorreu ao escutar a voz do marido. As portas retumbaram mediante a força causada por Said assustando o príncipe que parecia paralisado o olhando. O sheik diante do que viu não pensou muito antes de ir para cima do irmão com toda sua fúria.
Ódio.
Pouquíssimas vezes em sua vida o sheik havia sentido ódio. Ódio esse que o fazia desferir socos incessantes no rosto de seu irmão gêmeo, que fazia a cabeça do outro colidir com o chão inúmeras vezes, que o fazia continuar mesmo quando suas mãos já sangravam também.
A saleta que era reservada para o desjejum da família havia dado lugar para um verdadeiro caos. Um show de horrores que era observado pelos criados e logo depois por Farid, o pai dos gêmeos.
Não ousaram fazer nada para impedir.
O punho de Said encontrava com a cútis já ensaguentada de Khalid inúmeras vezes, sentindo a cada surra o estalar dos ossos da face do irmão se quebrando. Ele não se importava em deixar o príncipe desfigurado, não se importava em arrebentar o rosto daquele que o refletia fisicamente.
Naquele momento Said não se importava em matá-lo.
Safira assim que se viu liberta das mãos de Khalid, se encontrava escondida no canto da sala, atrás das longas cortinas de pano escuro e grosso que cobriam o suficiente de seu corpo para que lhe escondesse ao menos da vergonha de ser vista nua por todos.
Chorava pois nunca em sua vida imaginou viver um momento de tanto terror. A princesa tremia, mas não era de frio. Tremia de medo, tremia porque ao ouvir os gritos deseperados do príncipe que continuava a apanhar de seu marido, ela lembrava de seus próprios gritos desesperados.
Sentia nojo de seu corpo que fora tocado de maneira tão imprópria pelo cunhado. Sentia nojo de si mesma por pensar que fora covarde ao se permitir ser abusada daquela forma. Sentia-se perdida, desolada e profundamente violada.
Khalid não havia lhe tirado a honra, nem mesmo a penetrado como desejava fazer. Mas tinha lhe visto como um objeto, um pedaço de carne que estava prestes a devorar. Se sentiu usada.
Calafrios percorriam por seu corpo ao se lembrar das mãos dele a molestando, tocando e apertando seus seios, beijando sua pele e ainda que por muito pouco tocando-lhe na intimidade.
Viu o olhar confuso e perdido de seu sogro que não entendia o que acontecia. Viu quando o mesmo e mais alguns criados seguraram Said, quando pareciam já fartos daquela cena, tirando-o de cima do irmão, que mesmo sendo visto de longe estava irreconhecível. Cuspia sangue pela boca e urrava de dor.
Não conseguia sentir pena.
Não conseguia sentir nada.
Em uma fração de segundos tudo pode mudar, e por dentro Safira parecia morrer.
*
- Como se sente? - perguntou o sheik enquanto terminava de cobrir a princesa com um cobertor quente.
Suspirou ao não obter nenhuma resposta dela. Safira estava ali naquela cama, mas sua alma parecia vagar em algum outro lugar.
Depois que impediram Said de continuar a bater em seu irmão, o sheik correu em direção a Safira que segurava a cortina com força contra seu corpo. Os olhos azuis da princesa haviam perdido o brilho e pareciam vidrados e alertas o tempo todo.
Com ajuda de sua irmã mais nova Said vestiu a princesa ali mesmo na saleta e a colocou em seu colo. Carregando- a nos braços e levando até o anexo onde ficava a casa deles.
Safira tinha os olhos inchados de tanto chorar, mas nenhuma lágrima escorria mais por seu rosto. A princesa respirava devagar, como se fizesse apenas o mínimo de esforço para sobreviver. O corpo macio dela parecia ainda mais leve. Como um passarinho machucado ela encaixou seu rosto contra o pescoço dele e adormeceu pelo caminho.
Said havia descarregado toda sua raiva e desprezo no irmão e olhando para sua esposa ferida daquela maneira, ele se culpou. Se culpou por ter saído durante aquela manhã, se culpou porque deveria ter ficado com ela, mas era covarde o suficiente para admitir isso. Se culpou porque nenhum problema governamental era mais importante que Safira e ele a havia deixado sozinha.
Se culpou por não perceber quem Khalid era, se culpou por não ter dado ouvidos a sua intuição. Deixou que o irmão se aproximasse dela como um gavião prestes a atacar, pronto para agarrar sua presa sorrateiramente.
Sentiu um nó na garganta quando chegou ao quarto, sentiu suas lágrimas que quase nunca eram vistas rolarem lentamente por sua face, sentiu um misto de emoções desconhecidas por ele ao colocar Safira na banheira ainda vestida com a camisola e dormindo profundamente.
Ele acarinhou o rosto dela, vendo a vermelhidão que era pintada em uma das bochechas e o corte na lateral dos lábios. Rangeu os dentes ao ver os hematomas causados por Khalid. Os braços de Safira tinham marcas dos apertos, tinham diversos arranhões causados pelas unhas, tinham as digitais do príncipe gravadas ali.
Said nunca se perdoaria.
Ela acordou tão lentamente, quase não conseguindo abrir os olhos. Se encolheu ao sentir ele tocando em seus cabelos e virou o rosto para que não pudesse ve-lo.
Estava com medo.
Said a banhou, esfregando a esponja molhada com água e sabão por todo o corpo. Limpou-a com a água quente que constantemente se misturava com as lágrimas que deixava cair.
E então secou, cada parte, cada membro do corpo. Penteou os cabelos e a vestiu outra vez.
Ela não esboçava qualquer reação. Estava paralisada. Se deixava ser conduzida por ele, como se o seu corpo obedecesse roboticamente os comandos. E ali, agora deitada naquela cama continuava com o olhar perdido.
Said sabia que ela não falaria absolutamente nada, estava traumatizada e ferida.
Odiou o irmão ainda mais.
- Posso me deitar com você? - perguntou mesmo sabendo que não teria resposta mais uma vez.
O sheik se arrumou no lado direito da cama, ajeitando os travesseiros e se cobriu com outro cobertor. Puxou Safira para si cuidadosamente, tentando não assusta-la com seus gestos. A colocou deitada sob seu peito e a abraçou, fazendo carinho nos caracóis dourados do cabelo da princesa até sentir que a respiração dela havia se tornado regular e o corpo tinha descansado.
Passou aquela tarde acordado, como se precisasse protege-la do mundo. Como se precisasse manter seus olhos atentos e suas mãos preparadas para enfrentar qualquer perigo que ameaçasse a atingir.
Estava machucado, as juntas de suas mãos ardiam, seu coração parecia se comprimir dentro de seu corpo. Mas qualquer ferida ou dor sua, eram irrelevantes naquele momento.
Riu sozinho ao se lembrar de dizer a seus irmãos que não se importava com a princesa, que se casaria apenas pela obrigação, pelo dever. Dizendo que ela não seria parte da família.
Não podia estar raciocinando bem naqueles tempos.
Safira era sua família agora, era tudo o que ele tinha de mais precioso. Uma jóia rara encontrada no deserto. Um oásis, uma miragem. Um presente de Allah.
- Eu vou te proteger, eu prometo minha princesa - ele disse sabendo que ela não podia escutar. - Eu prometo. - Beijou o topo de sua cabeça em forma de carinho.
Ainda era muito cedo para o amor.
*
- NÃO! NÃO! - Said que havia inevitavelmente adormecido foi acordado pelos gritos da princesa que estava aos prantos.
Lá estava ela encolhida, abraçando suas pernas junto ao seu corpo, os olhos assustados vagavam pela meia luz do quarto que a escuridão da noite ainda não havia consumido.
Said podia sentir o desespero que emava dela, como se pudesse tocar a dor que ela sentia. Como se doesse nele também.
- Ei.. - ele a chamou - Está tudo bem, eu estou aqui, foi só um pesadelo. - disse a abraçando mais uma vez - Foi só um pesadelo...
A princesa se agarrou a ele num gesto puro de proteção, e chorava. Chorava incansavelmente.
Said fechou seus olhos tentando se conter. Tentando suportar aquilo junto dela, tentando ao menos imaginar o sofrimento que ela sentia em sua alma.
Naquela manhã se ele não tivesse cancelado seus últimos compromissos e reuniões. Se não tivesse sentido saudades dela. Se não tivesse cavalgado o mais rápido que podia. Ele não teria chegado a tempo.
Demoraram cinco segundos pra que sua mente absorvesse a cena que via. E muito menos que isso pra que suas mãos tirassem Khalid de cima dela e menos ainda para que o primeiro soco na cara fosse dado.
Ele havia se cegado, como se em seus olhos apenas uma cor rubra fosse vista, o vermelho do sangue do príncipe que manchava suas mãos.
Não precisava raciocinar demais, precisava apenas destruir Khalid da mesma maneira que ele havia destruído Safira. Sentindo sua princesa tremer de medo colada em seu corpo como um animal indefeso, ele soube ali que ainda não havia terminado seu acerto de contas com o irmão.
Ele havia apenas começado.
Ninguém é o que parece ser, lembrou-se de ter dito aquelas palavras a Safira semanas antes. Nunca fora tão real até aquele momento.
Khalid o príncipe engraçado e carismático, não tinha por dentro essa mesma versão.
E Said, pela princesa deixaria o pior de si aparecer. Deixaria, por ela e apenas por ela, a escuridão fria e cruel que carregava consigo vir a tona.
O sheik que aprendeu a ser, o verdadeiro. O homem que não tinha qualquer piedade, que não sentia qualquer remorso, que matava com as próprias mãos. Aquele homem havia despertado de seu sono mais profundo e depois de sua fúria alimentada, nada o pararia.
- Estou com medo, muito medo - Foram as primeiras palavras ditas por Safira depois do acontecido.
Said teve certeza que sentiu como se uma aljava o tivesse atingido.
- Eu estou aqui.. nada vai te acontecer - ele garantiu, a cobrindo novamente com o cobertor.
- Não me deixe sozinha.. - ela pediu ainda soluçando - Por favor..
- Não te deixarei Safira, eu prometo - e voltou a fazer carinho nela, ora tocando levemente na face límpida e jovial, ora nas melenas douradas que se ondulavam em suas mãos. - Durma princesa.. apenas durma.
*
Muito mais tarde naquela noite Said se levantou de sua cama, vestiu-se com o primeiro traje que encontrou. Pegou sua espada e a prendeu na cintura.
Olhou apenas mais uma vez para a princesa. Ainda dormia, tão serena e frágil. Como se nada tivesse acontecido.
Pensou em quantas mulheres passavam pelo mesmo, quantas pediram por socorro e não foram ouvidas, quantas escondiam suas dores por trás do véu.
Cada vez que colocava seus olhos sob Safira, podia sentir sua ira pelo príncipe multiplicar. Como? Ele se perguntava. Como alguém poderia fazer aquelas coisas? Como machucaria uma mulher pelo puro prazer de se satisfazer?
Existia uma linha tênue entre o prazer e a dor, Khalid tinha seus pés nos dois lados. Beirando muito mais para a dor, para o sofrimento que causava em suas vítimas. Safira não fora a primeira, e nem seria a última. Seu prazer estava em inflingir dor, numa mistura vil e insana que era disfarçada por seu carisma exacerbado.
Said se retirou do quarto, e então desceu as escadas, passou pela porta principal e seguiu pelo corredor do anexo entrando no palácio.
Não precisava procurar demais, sabia onde encontrar Khalid.
Subiu escadaria que era iluminada pela luz da lua, com uma rapidez desconhecida e logo chegou a porta que o separava do irmão.
A mesma porta que anos antes ele entrava trazendo um farto pedaço de bolo e chá encondidos quando o príncipe ficava de castigo. A mesma porta que entrava quando os pesadelos o assolavam pelas madrugadas e encontrava abrigo ao lado de Khalid.
Tudo havia mudado.
Depois de Safira, tudo havia mudado.
Ele tocou a maçaneta e a girou, silenciosamente, e a lâmparina acessa dentro do cômodo revelou o príncipe que estava deitado em sua cama, com diversas faixas de curativos em seu rosto, que naquele momento já estavam enxarcados de sangue. Said não viu quando os criados o levaram até o quarto e cuidaram daqueles ferimentos, porém pouco importava. Em seu interior vibrava satisfação por ter restado muito pouco da beleza de Khalid.
Não restaria muito mais depois.
Ele entrou, prontamente segurando sua espada ainda na cintura e caminhou até chegar o mais próximo da cama. Khalid ouviu seus passos e de maneira falha tentou abrir seus olhos inchados e cheios de secreção.
Said por instantes viu o desespero lhe correr pela íris castanha.
Puxou sua espada, e o metal faiscou ao se arrastar pelo cinto de couro, fazendo o príncipe se mexer na cama ao ver o objeto.
Novamente segundos separavam Said de suas próximas ações. Segundos que o fizeram refletir sobre tudo, que o fizeram relembrar de momentos até então esquecidos. Ele sabia quem o irmão era, no fundo ele sabia. Os anos passados lhe deram a oportunidade de ver que onde Khalid tocava havia destruição.
Inveja e obsessão.
Said pensou na mãe, no quanto ela sofreria por perder mais um filho.
Pensou no pai que ficaria sozinho governando o reino.
Pensou nas irmãs que estariam desprotegidas, pois logo ele também não estaria mais ali.
E por fim, pensou em Safira. Na vida que teria com ela, nos traumas e pesadelos que teriam que conviver. Na vergonha que ela estaria sentindo, no abismo que o príncipe a havia jogado.
Aqueles instantes foram suficientes para que entre a razão e a emoção, entre o amor e o ódio, a espada atravessasse o coração de Khalid. E nos seis segundos antes da vida lhe abandonar, o príncipe deixou uma lágrima cair.
- M-me perdoe - ele disse.
E então tudo se apagou.
*
Não houve remorso.
Não houve arrependimento.
O sentimento era pertubador a ponto de Said não saber o que sentia, mas estava feito. Em Khalid não havia mais qualquer sinal de vida, qualquer sopro, fôlego que o trouxesse de volta.
Não alarmou ninguém.
Pegando o lençol da cama enrolou o corpo do príncipe até que nenhuma parte pudesse ser mais vista.
Não o lavaria com água limpa, não oraria a Allah para que tivesse misericórdia, não lhe daria honras ou um enterro digno.
Said carregou o pesado corpo em suas costas, sendo protegido pela escuridão noturna e saiu do palácio. Andou e andou até chegar às margens do mar, as ondas batiam fortes na faixa de areia e o vento gelado da noite lhe arrepiava.
Em um de seus bolsos havia sempre uma corda que usava para enlaçar os cavalos e naquele momento ela teria outra serventia. Largando o corpo do príncipe na areia, foi em busca da maior pedra que conseguiria carregar. Amarrou uma parte da corda nela e a outra nos pés de Khalid que estavam cobertos pelo lençol.
A adrenalina fazia parte de seu ser e somente por conta dela conseguiu arrastar o príncipe até o mar e o levou no mais fundo que podia, o suficiente para que ele afundasse e seu corpo fosse impedido de emergir sob as águas.
Poucas pessoas entenderiam, o chamariam de assassino, diriam até que não merecia entrar no paraíso. Pra ele não importava mais, Khalid também não teria um harém de virgens no céu.
E se, seu destino fosse o inferno, lá o mataria mais uma vez.
Ele mentiria, para todos. Até mesmo para seus pais. Não mereciam a dupla dor que seria receber a notícia que um dos filhos matou o outro.
Khalid fugiu - eles pensariam quando não encontrassem o princípie em sua cama durante a manhã.
Ele mentiria mesmo sabendo que era pecado, pois o pecado maior já estava feito. Allah sabia dos seus motivos, caberia a Ele julga-lo no dia do juízo final.
Por algumas pessoas valia a pena. Por Safira valia a pena, pela princesa ele faria tudo outra vez.
Ainda é cedo para o amor?
*****
Eu sei, ninguém esperava por essa!
Bom, sabemos que hoje em dia existem outras soluções para punir pessoas que comentem essas atrocidades, mas como Safira se passa no século 18 e estamos nas arábias, não me restou dúvidas que o único destino de khalid seria esse.
Prometo que os próximos capítulos serão mais leves, vou deixar vocês respirarem aliviadxs por algumas semanas.
Espero que vocês tenham gostado, e não fiquem chateadxs quando os personagens sofrerem, faz parte da história.
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