Capítulo IX
O som das trombetas da mesquita cortava o ar daquela manhã chuvosa, despertando a cidade lentamente. Era raro um dia assim nas terras desérticas, e a água que caía do céu deixava as ruas úmidas, o cheiro de terra molhada impregnando o ar. As gotas tamborilavam nos telhados, escorrendo pelas varandas, formando pequenos rios barrentos entre as pedras do comércio. Aquele som parecia embalar a princesa, tornando-a inquieta.
Ela caminhou até a janela e viu que o mercado estava quase deserto. Os poucos comerciantes que insistiam em manter suas barracas pareciam fantasmas envoltos em capas pesadas, protegendo suas mercadorias da chuva. O céu carregado de nuvens dava ao dia um tom de melancolia, mas para Safira, aquele era um convite irresistível.
— Por Alah, Safira! — reclamou Soraia, cruzando os braços. — Está caindo o céu, menina! Não pode andar por aí como uma folha solta no vento.
Safira, entretida em ajustar o hijab, sorriu de lado.
— Sua preocupação é muito bonita, Soraia. — Ela prendeu o véu com delicadeza. — Mas irei mesmo assim. Não se incomode, entendo que não queira me acompanhar. Encontrarei outra companhia.
— Sabes que ninguém irá acompanhá-la nessa loucura! — A criada gesticulou, indignada. — Alah manda que sejamos prudentes com nossa vida e a senhorita joga a sua sorte ao vento o tempo todo!
— Não estou jogando minha sorte ao vento, estou aproveitando minha sorte. — A princesa respondeu com um sorriso vitorioso.
Soraia suspirou pesadamente, sua expressão mudando do desespero para um cansaço profundo.
— Estou cansada, Safira. Muito cansada. — A voz dela tremia entre a frustração e a exaustão. — Cansada de tentar te ensinar, de te proteger, de fazer de você a melhor princesa que Omã já teve. A mais admirada, a mais lembrada. E também... — a criada baixou os olhos — para que seja uma boa esposa. Para que saiba ser a mulher de um sheik.
Aquelas palavras atingiram Safira como uma lâmina fria.
— Soraia...
— Não. — A criada ergueu a mão, encerrando qualquer réplica. — Se deseja sair nesta tempestade para fazer suas compras, vá. Não irei impedi-la.
E então, sem mais uma palavra, Soraia deixou o quarto.
A princesa ficou ali, estática, sentindo o peso da despedida no olhar da criada. O som da chuva se intensificava lá fora, e dentro de si, Safira sentiu algo quebrar. Era verdade. Ela nunca facilitava as coisas. Nunca aceitava a vida que tinha. Nunca quis ser preparada para um casamento que a engoliria inteira.
E talvez... estivesse magoando aqueles que mais se importavam com ela.
Passou boa parte do dia reclusa em seu quarto, observando as gotas escorrendo pelo vidro, formando desenhos aleatórios. Em sua mente, construía cenários, fugas impossíveis, soluções perfeitas... mas todas evaporavam diante da realidade.
Nenhuma de suas alternativas era viável.
Seus pensamentos se voltaram para o futuro sheik Said. Evitava cruzar com ele pelos corredores do palácio, e, nos raros momentos em que o via, sentia um estranho formigamento percorrer-lhe o corpo. Algo dentro dela se revirava sempre que aqueles olhos a encaravam.
E pior: Safira sabia o motivo que o trouxera até Omã.
Mas queria se agarrar à utopia de que, se ninguém falava abertamente, então talvez estivesse enganada. Talvez, só talvez, ainda houvesse uma saída.
Porque um casamento com ele destruiria seus sonhos. Ela queria conhecer o mundo, andar por ruas desconhecidas, fazer amigos, entrar em uma livraria e passar o dia lendo sem que ninguém a interrompesse. Queria ser livre como uma borboleta recém-liberta do casulo. Mas, ao invés disso, sentia-se uma lagarta presa, condenada a rastejar sem jamais voar.
— Uma flor por seus pensamentos?
A voz rouca e familiar de Khalid a tirou de seu devaneio.
— Você tem uma péssima mania de me assustar, príncipe. — Safira o encarou. — Mas lhe darei uma resposta, se me der uma também.
— Ora, ora... temos uma negociadora aqui. — Ele riu.
— Cada um joga com o que tem, senhor Khalid. — Ela inclinou a cabeça. — Diga-me, por que vieram? O que realmente querem?
— Calma, habib, você fez mais de uma pergunta. — Khalid sorriu, mas logo seu olhar se tornou mais sério. — Por que está tão interessada em saber?
— Porque odeio segredos. — Ela suspirou. — Agora, responda, príncipe.
Ele a observou por um momento antes de responder, como se pesasse suas palavras.
— Achei que fosse mais esperta, princesa. Viemos firmar a aliança entre os reinos... e buscar você.
O silêncio caiu entre os dois.
Safira piscou lentamente, esperando que ele desmentisse. Que dissesse que era apenas uma brincadeira. Que sorrisse e acrescentasse algo insignificante.
Mas ele não disse.
E ela soube.
Sentiu a respiração faltar, o coração batendo descompassado. O mundo girou ao seu redor, mas não como antes. Não com a excitação da liberdade, mas com a angústia de uma gaiola se fechando ao seu redor.
— Princesa? — Khalid a chamou, alarmado.
Nada.
— Safira? Me responda!
Ela piscou e, como se voltasse a si, encarou-o nos olhos.
— O senhor já obteve uma resposta hoje, príncipe Khalid. — Sua voz saiu baixa, mas firme. — Agora, por favor, saia do meu quarto.
— Mas...
— NÃO! — A palavra rasgou o ar, tão forte quanto a tempestade lá fora. — NÃO! NÃO!
E então, veio o choro.
Um soluço primeiro, depois outro, e logo o pranto caiu sobre ela como a chuva caía sobre Omã.
Safira se ajoelhou no chão, os ombros tremendo, as lágrimas quentes escorrendo pelo rosto. Ela queria gritar, se libertar daquela sentença que agora era real. Mas não havia para onde fugir.
Ela sentiu braços a envolvendo.
O perfume de Khalid era diferente dos abraços que conhecia — não cheirava a rosas ou especiarias doces. Tinha o aroma de ervas e folhas do campo, algo fresco e reconfortante. E, por mais impróprio que fosse, naquele instante nada importava.
Porque, pela primeira vez em muito tempo, ela se sentiu segura. E foi abraçada por aquele príncipe estrangeiro que ela adormeceu.
Khalid, por sua vez, sentiu o corpo dela relaxar contra o seu, a respiração se tornando suave, lenta. Safira havia adormecido, rendida ao peso de suas próprias dores. O príncipe manteve os braços ao redor dela por um instante a mais do que deveria, como se pudesse protegê-la do destino que a aguardava.
Observou o rosto delicado da princesa, agora sereno, como se a tempestade dentro dela tivesse se aquietado, ao menos por aquele momento.
Então, com um suspiro, murmurou baixinho, para que apenas o silêncio e a chuva pudessem ouvi-lo:
— Se ao menos eu pudesse te salvar disso...
Ficou assim por um tempo, observando-a, antes de cuidadosamente deitá-la sobre as almofadas. Seu olhar deslizou sobre as feições adormecidas da princesa e, pela primeira vez, Khalid se perguntou:
"E se ela não pertencesse a Said?"
Ele afastou o pensamento tão rápido quanto surgiu.
Mas a ideia já estava plantada.
Lá fora, a tempestade persistia.
E dentro dele, algo novo começava a nascer.
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