Capítulo Vinte e Oito
Ele não a viu.
Ele estava de costas.
Eu não falei com ela.
Não tem como ele saber.
Eu repetia tudo aquilo uma e outra vez enquanto dirigia, tentando me convencer que o cliente de Rivers não poderia ter me associado com Julia. Ele não podia. Em hipótese alguma.
Mas e se... Não.
Meus dedos apertaram o volante com força.
Merda, merda, merda! Se ele a viu...
- Qual o problema? – a voz dela me distraiu. Só percebi o quanto o carro estava quieto quando ela quebrou o silêncio. Já estávamos entrando em San Mateo.
- Por que a pergunta?
- Você está tenso.
Tentei sorri, mas pareceu uma careta, então desisti.
- Tem a ver com aquele homem, não tem?
Suspirei. Por que ela era tão teimosa? Por que não aceitava o que eu dizia e pronto? Merda, seria tão mais fácil.
- Eu já falei para você.
- E eu não acreditei.
Mantive meus olhos para frente, mesmo sentindo que ela me encarava.
- Eu preciso confiar em você, Luke! Droga, por que você dificulta tanto?
- Eu não sei do que você está falando.
- Sabe sim! Você está mentindo! Está escondendo alguma coisa!
Meu primeiro instinto foi voltar a negar, mas a próxima mentira não veio.
- Por que você não confia em mim?
- Você é uma das únicas pessoas em quem eu confio, Julia.
- Então me conte. Quem era aquele homem?
Apertei ainda mais o volante. Meus olhos grudados no asfalto voando por baixo do carro.
- Eu não posso te contar.
- Por que não?
- Porque... porque é uma grande merda.
Ela ficou quieta por um tempo curto.
- Você não entrega quadros. – não era uma pergunta.
Olhei para o painel do carro. Quase dez e meia. Já estávamos em seu bairro.
- Eu já entreguei. Uma vez.
- Eu não entendo.
- Eram falsos.
Quando ela não respondeu, lancei um olhar em sua direção. E lá estava, o olhar de julgamento. Ela já havia somado dois com dois. Abri um sorriso áspero.
- Não era o que você queria saber?
Ela continuou em silêncio. Meu coração estava acelerado, era quase doloroso. Agora ela sabia da ponta do iceberg e na minha mente só havia um imenso foda-se.
- Meu chefe lidera uma linha de tráfico de quase qualquer coisa. Ele paga para caras como Ashton e eu entregarem as mercadorias. Já levei armas, documentos, pinturas, relógios, medicamentos... Tudo o que você conseguir imaginar. – me virei outra vez para ela, por um segundo. – Você está pálida.
- Eu...
- Não imaginava isso? O que pensou que fosse? Algo ruim mas não tão ruim? – eu ri amargamente. – Sinto muito.
- Sente? Pelo o quê? – o tom dela estava baixo, controlado.
- Sinto muito por decepcionar você. Sinto muito por ser pior do que você esperava.
- Eu não...
- Eu nunca quis machucar você, nunca planejei te trazer para perto demais, mas você é a única culpada. Você e essa boca inteligente. Você me atraiu, Julia, como uma luz muito brilhante, e eu fui o inseto estúpido que não conseguiu não se aproximar.
Suspirei, deixando o deboche escorrer da minha cara.
- Eu sinto muito. Não deveria ter me aproximado de você.
Julia não negou. Eu podia ver suas mãos apertarem a barra do vestido. Aquele não era o fim que eu havia imaginado para a noite. Era o fim que eu havia imaginado para a gente?
O prédio dela surgiu quando fiz uma curva. Estacionei e desliguei o carro.
- Me mande para o cacete, mas fale alguma coisa. – pedi.
Ela se moveu para tirar o cinto de segurança. Estava indo embora.
- Por que você faz isso? – ela perguntou, sem me olhar.
- Faço o quê?
- Esse... trabalho.
Coloquei a cabeça para trás e encarei o teto do carro. O lugar parecia diminuir a cada minuto. Eu queria sair dali.
- Eu não sei. Nunca pareceu errado.
- Nunca pareceu errado? Luke, essas coisas... Isso é ilegal.
- Eu sei, quis dizer que nunca me importei. O mundo é uma merda, Julia, então de que adianta tentar ser algo bom? Você vai acabar sujo de qualquer jeito.
- Isso não é verdade. Existem pessoas boas.
- Essas são as mais fodidas pela vida. – vi ela balançar a cabeça. – Veja o velho, veja as vidas que ele arruinou, a da minha mãe, a da esposa dele, a minha. Onde ele está agora? Na sua mansão, em sua cama com lençóis de seda egípcia ou sei lá que merda é aquela. E você? Já fez algo de ruim na vida? Claro que não, mesmo assim um idiota qualquer bateu no carro dos seus pais. Eles também foram pessoas boas, não? Agora estão mortos.
Julia se encolheu e eu quis chutar a minha própria bunda.
- Desculpe. Inferno, desculpe, eu...
- Você nunca quis... parar?
- Não. Eu prefiro pensar que a razão é o dinheiro fácil, que me mantém por meses até ter que fazer de novo. Mas, a verdade é que...
- Você tem medo? Digo, eles fariam algo com você?
- Não, não acho. Nós, entregadores, estamos no escuro. Não sabemos nomes, nem endereços, nem rostos. Apenas lidamos com outros entregadores que tampouco têm informações.
- Então?
- O que mais eu seria, Julia? Quer dizer, olhe para mim. – ergui as mãos, soltando outra risada absurda. – O que eu sou está impregnado em mim. Isso aqui me segue a todos os lugares. Todos me olham desconfiados, como se eu fosse colocar uma arma em suas cabeças. – cravei meu olhar no dela. – Você me olhou assim. Na primeira vez.
Sua boca se abriu, então voltou a se fechar. Ela baixou a cabeça. Ficamos quietos até percebermos que já não havia o que falar.
- Eu preciso dar uma volta. – falei, por fim.
- Eu vou com você.
Balancei a cabeça, olhando pelo parabrisa.
- Eu quero ir sozinho.
- Luke...
- Por favor, Julia.
Ela hesitou antes de pegar a sua bolsa. Segurei seu braço antes que ela abrisse a porta do carro. Me inclinei para deixar um beijo em sua testa.
- Feliz aniversário.
- Obrigada.
Eu a deixei ir e mantive meus olhos nela até que desaparecesse dentro do prédio. Liguei o motor e movi o carro.
Eu nunca havia ligado tanto para praia, mas aquele parecia o lugar que me atraía sempre que precisava descarregar os pensamentos.
Me peguei outra vez sentado na areia, encarando o mar escuro que, com o passar das horas, foi mudando de cor. Eu sabia que não era a água em si, e sim a luz que dava aquele efeito. Talvez eu fosse o mar e Julia o meu sol.
O que eu vou fazer com você, menina? Aquela não foi sempre a pergunta de um milhão? Antes eu estava tão ansioso para chegar até ela que deixei passar o pequeno detalhe do depois. Havia tanto para dar errado, por que fui burro o suficiente para investir naquilo? Por que não dei o fora antes de me envolver demais?
Deitei na areia, abrindo os braços o máximo possível. O céu já estava bem claro, o sol esquentava levemente meu rosto.
Ela sabe da verdade, agora. E eu nem tive tempo de entregar o seu presente. Ela havia ido embora, e era diferente daquela vez. Não havia chances de correr atrás. Esperanças zero. A partir de agora seriam apenas eu, minha sombra e todos os meus arrependimentos. Se eu não estivesse metido até o pescoço naquela merda, talvez ela ainda me quisesse por perto, talvez eu pudesse mudar. Mas eu a teria conhecido, se fosse assim? O que eu havia dito no parque era verdade, foram os meus erros que me levaram até ela.
Fiquei mais um par de horas na praia, até que os primeiros banhistas apareceram, então levantei, tirei a areia das roupas e voltei para o carro.
Minha noite como eremita não havia ajudado muito. Eu ainda não sabia o que fazer. Não sabia para onde ir, não sabia qual seria o próximo passo, não sabia se deveria vê-la mais uma vez. A parte mais difícil era saber a hora de partir.
Devolvi o carro alugado com algumas horas de antecedência. Peguei um táxi e fui para meu apartamento. Tirei as botas na entrada, parecia que meus pés haviam crescido alguns centímetros durante a noite, foi um alívio sentir o chão frio enquanto caminhava até o elevador.
Quando as portas se abriram no meu andar, imediatamente notei um filhote de cachorro amarrado a uma das portas. Levei um segundo para perceber que ele estava amarrado na minha porta. Cruzei o corredor encarando aquele ser minúsculo, gordo, branco e marrom. Ao me ver mais próximo, o bicho começou a latir e abanar o rabo loucamente.
- Mas que diabos você faz aqui? – perguntei para o cachorro, esquecendo minha regra de não falar com animais, a menos que fosse o Ka-zar.
Olhei ao redor, como se o dono fosse aparecer a qualquer momento, mas não havia ninguém. Notei que ao lado do meu olho mágico havia um pedaço de papel grudado. Eu o arranquei dali e li enquanto o filhote cheirava os meus pés.
Muitas pessoas acreditam que os buldogues são malvados, pela cara que têm, mas eles são amáveis e leais.
Também pela cara, são escolhidos para guardarem a casa, mas logo se descobre que são cães sociáveis demais para isso.
Essa gracinha aí é uma cachorrinha, mas tem o nome de uma flor: Petunia.
Viu? Você não precisa ser o que as pessoas esperam que você seja.
Julia.
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