Capítulo Nove
A fumaça subia e se dissipava no ar. Eu estava deitado em um muro baixo, em algum lugar daquela cidade de merda. Menos de duas semana ali e já podia dizer que conhecia tudo de ponta a ponta.
Finalmente Rivers havia entrado em contato. Foi um semi-contato, na verdade, apenas mandou que eu procurasse um lugar seguro para falar. Quartos de hotéis têm paredes finas. Estava esperando sua real ligação naquele terreno baldio há quase uma hora. Levei o cigarro até os lábios outra vez. Seria bom ser feito de fumaça e poder desaparecer. Dei mais um trago, joguei o cigarro para trás e deixei a fumaça sair do meu corpo podre para o mundo podre.
Eu deveria estar aliviado. O serviço finalmente seria feito, eu poderia dar o fora dali em breve, mas o pensamento não me deixou animado. Eu queria voltar para casa, ver minha mãe e aproveitar o dinheiro que iria ganhar, talvez ir para Vegas por um fim de semana. Mesmo assim, a ideia de ficar ali por mais um tempo não era tão horrível quanto quando eu cheguei.
O que havia mudado? Era a diversão de atormentar o velho Leicester? Não, eu sentia mais raiva do que animação estando perto dele. Era Ben? Eu realmente não o odiava. Há quanto tempo não o via? Quatro anos? Cinco? Da última vez ele não passava de uma criança que eu segurava os dedos para conseguir fazer uma nota na minha guitarra. Ele está crescido, agora. Já se mostrava quase um homem. Mas o que ele sabia? Apenas o que o dinheiro do papaizinho pagava para que soubesse. Ben viajou pelo mundo, mas não conhecia o mundo. Sempre ficou em hotéis caros, visitou pontos turísticos com guias e comeu comidas que eu sequer conseguiria pronunciar o nome. O garoto não viu as coisas que eu havia visto, não sentiu na pele o medo de morrer, não viu crianças definhando como ratos à procura de drogas nem nunca soube o que é sentir fome. Não o tipo de fome que te tira as forças e dói. Aquilo era o mundo, não a merda disfarçada que o cercava. Poderia parecer que seu horizonte era enorme, que tinha a oportunidade de ir para onde quisesse, mas Ben estava dentro de um cercadinho que o guiava para onde deveria ir. O garoto tinha sorte, era tanto perfume jogado ao seu redor que provavelmente morreria sem sentir o cheiro da merda do mundo real.
O celular tocou, quebrando meus pensamentos. O número era privado. Rivers.
- Tudo certo, meu garoto? – a voz dele falou antes que eu pudesse abrir a boca. Uma voz madura, mas que ainda guardava os resquícios de um tom jovial.
- Tudo perfeito.
- Ótimo. Vocês irão para o estacionamento da primeira praia, saindo da cidade.
- Quando?
- Na quarta.
- Vai haver um feriado local na quarta, a praia deve ficar lotada. Muitos olhos, muitos ouvidos.
Rivers riu.
- Eu não sou um garotinho que mija no colchão, Hemmings. Estou sabendo, mas vai haver um jogo do campeonato de beisebol na cidade, todos devem ir para lá.
- Pouco movimento também não seria... perigoso?
- Você costumava ser menos tagarela.
Sentei no muro, olhando para os carros que passavam logo a frente.
- Horário?
- Estejam lá às três da tarde. Não procurem, eles encontrarão vocês.
- Qual vai ser a mercadoria? Ashton disse que seria algo pequeno.
- Sim, apenas uma maleta. Algumas .223, na maioria .308.
Munição. Remington e Winchester.
- Fácil e rápido. – sorri.
- Por isso não quero dor de cabeça.
- Não terá.
- Eu ligo na quarta.
Então ele desligou.
As apostas estavam altas. Meus camaradas pareciam satisfeitos com a pilha de fichas de cada um, a minha era a menor. Meu jogo estava uma droga e eu não conseguia armar nenhuma estratégia. A garçonete do lugar voltou a encher nossos copos mas eu não o toquei, sabendo que ficar bêbado era a última coisa que eu deveria fazer antes de recuperar meu dinheiro.
- Garoto, você vai ter que dar outro jeito para comprar suas fraldas. – Duque, o homem com cara de pug, falou, mostrando suas cartas e batendo palmas.
Larguei as fraldas há muito tempo, mas você logo voltará a usá-las, cretino.
Começamos outra rodada e finalmente sorri enxergando uma possibilidade.
- Vejam rapazes, nosso menino perdido sabe mostrar os dentes. – o cara com dente de ouro comentou, me examinando, não lembrava o nome dele.
- O que será que o deixou tão feliz? – Duque quis saber.
- Será que a Betty está por aqui? – Richard gracejou. Betty era a mulher do Duque e a pessoa mais nomeada naquela mesa.
Richard entregou uma carta para um de nós e ele próprio pegou o maior número, se tornando o carteador da vez.
- Vamos lá, façam suas apostas cegas, rapazes.
Era meu turno de ser o small blind. Esperei que o cara de pug apostasse e coloquei o dinheiro na mesa.
- Vejam, o garoto tem colhões. – Richard gracejou.
- E eles são enormes. – garanti, com um sorriso, vendo minhas cartas.
Todos aumentaram a aposta, finalizando a pré-flop. Richard puxou o flop, decidi ficar em check. O jogo se arrastou para um final a meu favor. Consegui algumas fichas de volta e a próxima rodada também não foi ruim. Ashton apareceu enquanto eu dava um gole na tequila.
- Ei, Luke, dá uma olhada pela janela. – falou.
Estiquei o pescoço para conseguir ver por cima da cabeça do cara que não lembrava o nome . A janela daquele lugar estava suja e a fumaça dificultava ainda mais a visão, mas consegui enxergar o que Ashton apontava. Do outro lado da rua, na calçada de um restaurante, estavam o velho e sua família.
- Preciso fumar. – falei levantando.
- Você pode fazer isso aqui dentro, isso não é uma casa de chá para senhoritas. – Duque falou sem tirar os olhos das minhas fichas, ele estava quase babando.
- Prefiro ir lá fora um pouco.
- Eu fico aqui. – Ashton falou, ficando de olho nas minhas apostas.
Atravessei o lugar apertado por mesas e mais mesas de pôquer e saí para a calçada. Puxei um cigarro do bolso e o acendi, meus olhos no restaurante. Os Leicester haviam escolhido uma mesa na janela. Ben estava sentado como um verdadeiro inglês, sorrindo educadamente para o que sua mãe falava. Havia uma moça ao seu lado, alta, morena e bonita. Deduzi ser Jacky, eu não a via desde que éramos crianças. Ben se moveu e eu notei que a sua garota estava do outro lado. Os bancos eram longos, no estilo anos 50, portanto sobrava um lugar vazio ao lado do velho. Por um minuto me imaginei com eles, não fazendo piada sarcástica sobre a comida cara, mas apenas ali ouvindo o que eles falavam e fazendo meus próprios comentários. Precisei de trinta segundos para decidir que preferiria chupar o dente de ouro do cara que não lembrava o nome.
Soprei a fumaça, ela bloqueou minha visão por um tempo, levando embora aqueles devaneios. Espantei a fumaça com a mão e percebi que alguém estava cruzando a rua, em minha direção.
- A garota do meu irmão. – cumprimentei, recuperando o sorriso.
- Você sabe o meu nome. – ela falou.
- Evans.
- Parte dele. – ela balançou a cabeça. – O que está fazendo aqui? - levantei o cigarro para que ela pudesse ver. – Não aqui fora, mas aqui. – ela fez um gesto para a rua.
- Estou jogando um pouco.
Evans olhou para o lugar às minhas costas e fez uma careta.
- E o que você faz aqui? – perguntei.
- É o último jantar em família antes que Jacky se case.
- E porque trocou a boa comida e o conforto pela rua?
- Porque eu vi você. Você parecia triste.
Aquilo me pegou de surpresa. Juntei as sobrancelhas e a encarei.
- Acho que te serviram camarão estragado, garota.
Seu queixo ergueu uma polegada, em desafio.
- Estava sim.
- Bom, o eu presente nessa sua realidade paralela não precisa da sua ajuda, pode voltar antes que seu coquetel esquente.
Evans continuou a me olhar em desafio por um minuto, até que piscou e o que vi em seus olhos foi algo mais brando.
- Eu imagino que deve ser difícil para você, mas...
- O que deve ser difícil?
- Não fazer parte.
Lancei um olhar para a janela do restaurante, examinando outra fez a reunião feliz.
- Eu não sou um deles.
- É claro que é. Você é um Leicester.
- Eu sou um bastardo. – cuspi a palavra, ela estremeceu ao sentir o ácido em minha voz. – Minha mãe é minha família. – emendei, mais baixo.
- Ben gosta de você, de verdade, se ao menos você deixasse ele se aproximar...
- Eu não vim aqui para criar laços, Evans.
Ela parecia estar disposta a falar mais, mas se calou por um momento.
- Por que você se importa? – perguntei, dando outro trago.
- Eu me importo com Ben, sei que ele gostaria de ter uma boa relação com você.
Virei para soltar a fumaça longe dela, então agarrei seu braço e a puxei para mais perto. A menina me olhava com olhos arregalados.
- Já falei, Evans, só tenho relações com mulheres bonitas. – me inclinei, até quase encostar meus lábios em sua orelha. – Como você.
Ela estremeceu e se afastou.
- Eles vão sentir minha falta, melhor eu voltar. – falou, parecendo tonta.
- E eu preciso continuar meu jogo.
- Tudo bem... Ahn, tchau, Luke. Pense no que eu falei, por favor.
Foi a primeira vez que ela falou meu nome, não foi? Sim, por algum motivo eu tinha certeza que teria notado se o tivesse feito antes.
- Tchau, Evans.
Observei até que ela entrou no restaurante, então voltei para recolher minhas fichas, já que a vontade de seguir jogando havia evaporado como a fumaça do meu cigarro.
Senti o frio da cerveja atravessar o vidro e gelar minha mão. Ashton estava contando alguma história para a distração de um grupo de idiotas que nunca vi na vida. Eu em pé, apoiado em uma parede olhando as pessoas ao redor, seus corpos suados balançando no ritmo da música.
Dei o último gole na garrafa e fui até a cozinha procurar por outra.
Sobre o balcão havia uma garrafa de cerveja e uma de licor. Sorri com a ideia de ingerir algo mais atrativo do que cerveja barata e estiquei os dedos para pegar a garrafa mais escura, mas alguém foi mais rápido. Ergui o olhar e vi Ben sorrir debochado para mim antes de virar a bebida na boca. Desde quando a mocinha virou homem? Quis perguntar, mas as palavras não saíram da minha boca. Ben começou a se afastar e eu o segui entre as pessoas, queria saber o que ele estava fazendo ali. Aquele não era seu ambiente, parecia um cervo no meio de uma praia. Paramos em frente ao sofá de couro e, antes que eu pudesse sentar, ele me empurrou e ocupou o lugar, apontando para a poltrona velha ao lado. A situação toda estava começando a me irritar. Pensei em agarrá-lo pelo pescoço e jogá-lo do outro lado da sala, mas fui distraído. Evans apareceu, usando seu vestido preto fantástico e de mãos dadas com Lynn, uma das ladras da outra noite. Lancei um olhar para Ben, vi o que ele pretendia fazer e, daquela vez fui mais rápido em agarrar o melhor para mim. Minha cabeça dizia que Lynn era a garota mais interessante, mas minhas mãos se fecharam nos ombros de Evans e eu sorri vitorioso.
Fui acordado por batidas na porta. Precisei me arrastar para fora da cama com um olho ainda fechado e tentando lembrar a droga do sonho que havia tido. O que havia comigo, que andava sonhando tanto? Devia ser aquele calor da porra fritando meus miolos.
- Entrega para o senhor Luke Hemmings. – um sujeito cheio de espinhas e usando uniforme falou, quando abri a porta.
- Que droga, eu não pedi nada. – resmunguei apertando a nuca. A tequila da noite passada estava cobrando seu preço. Percebi que estava usando só uma cueca. Não me importei.
O entregador me passou um envelope e a prancheta. Minha cabeça doeu quando tentei focar na linha, então acabei assinando em qualquer lugar. Fechei a porta antes que o moleque pedisse gorjeta e abri o envelope. Soltei uma risada ao perceber que era um convite de casamento. – Velho estúpido. – rasguei o envelope ao meio e voltei para a cama.
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